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Censura e controle: como o identitarismo herdou o pior da esquerda

O bilionário progressista George Soros no Fórum Econônico Mundial: organização impulsiona a "anomalia" do identitarismo.
O bilionário progressista George Soros no Fórum Econônico Mundial: organização impulsiona a "anomalia" do identitarismo. (Foto: EFE/EFE/Jean-Christophe Bott)

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Em um cenário onde termos como woke, “lacração” e justiça social dominam o debate público, poucos se perguntam o que está por trás da obsessão identitária.

No livro “Mais Iguais que os Outros: Demolindo o Identitarismo a Partir de Suas Falácias” (selo Avis Rara), o jornalista e biólogo geneticista Eli Vieira desmonta essa ideologia peça por peça, a partir de um olhar informado tanto pela ciência quanto pelas humanidades.

Ex-editor da Gazeta do Povo, Vieira apesenta a política identitária como uma visão de mundo que trata os grupos sociais como blocos homogêneos em permanente conflito. No trecho a seguir, o autor revela as raízes desse pensamento e como ele transforma a busca por justiça em um mecanismo de controle ideológico.

Alguns marxistas se posicionam como críticos do identitarismo, como a cúpula do Partido da Causa Operária (PCO), no Brasil, e o escritor e educador americano Freddie deBoer. Segundo esses críticos, os identitários construíram sua doutrina pela obsessão do indivíduo com sua própria natureza, negligenciando sua conexão com o coletivo.

Conforme expressado por Freddie deBoer, o identitarismo “centraliza ‘o pessoal é político’ no coração de toda a política e trata a ação política como uma questão inerente de higiene moral pessoal”.

Esses críticos também destacam o quanto grandes agentes do “capitalismo” aderiram ao identitarismo via iniciativas como ESG (sigla para “governança ambiental e social”), que representa uma tendência a deslocar o foco no lucro das empresas em benefício dos acionistas para o foco nas partes afetadas ou interessadas nas atividades empresariais.

Essa abordagem sugere um desvio de finalidade, uma vez que a imagem e a excelente comunicação da empresa passam a ter mais importância que o próprio produto. A própria falta de ênfase no lucro dos acionistas evidencia que há algo fora do comum no funcionamento da liberdade econômica.

Essa anomalia é impulsionada principalmente pela pressão de entidades influentes como o Fórum Econômico Mundial e, nos Estados Unidos, por ONGs poderosas como a Human Rights Campaign.

Além disso, as empresas que “abraçaram a lacração” são em grande parte grandes corporações que participam do jogo do “capitalismo de compadrio”, um sistema caracterizado por uma relação promíscua de influência mútua entre grandes empresários e o Estado, que conta com um consenso de desaprovação entre liberais e marxistas.

Não é difícil perceber que muitas companhias mantêm departamentos de comunicação e marketing robustos, capazes de evitar que qualquer notícia verdadeira, mas desfavorável, seja divulgada a seu respeito.

A influência marxista no identitarismo é perceptível não apenas por seu foco na igualdade de resultados: basta aplicar a retórica marxista de defesa dos “proletários” contra os “burgueses” e substituir pela dicotomia relevante para cada seção identitária: “negros” vs. “brancos”, mulheres vs. homens, “LGBTQIA+” vs. “heteronormativos”, “plus size” vs. magros, deficientes/neuroatípicos vs. “normais”/neurotípicos, colonizados vs. colonizadores.

O vocabulário utilizado frequentemente permanece idêntico: um identitário falará em opressor versus oprimido da mesma forma que fez o pedagogo marxista Paulo Freire.

A similaridade não se restringe às dicotomias. Elas, de fato, também podem ser observadas no liberalismo, em autoritários vs. coagidos, Estado vs. indivíduo. O ponto importante, que evidencia o parentesco intelectual entre marxistas e identitários, está em como a interação entre um polo e outro de cada dicotomia é interpretada.

Jogo de soma-zero

Essa interpretação sustenta que a principal ou única interação entre os dois lados é o jogo de soma-zero, ou seja, um jogo em que o ganho de um corresponde exatamente à perda de outro.

O principal argumento do marxismo é que, se o “burguês” está rico, é porque se apropriou do valor excedente gerado pelo trabalho do “proletário”, descontando apenas o salário. O principal argumento do identitário é que, se há menos negros que brancos numa empresa do que há na sociedade em geral, por exemplo, só pode ser por racismo e para o benefício dos brancos da empresa — evidências não são necessárias.

Todavia, essa preocupação com disparidade estatística é meramente performática: se, por exemplo, as políticas dos identitários resultarem em uma maioria desproporcional de mulheres em uma orquestra, isso é considerado apenas justo e reparação de injustiças históricas.

Nesse contexto, alguns grupos são considerados “mais iguais” que os outros. Portanto, a análise de “representatividade” (como eles chamam essa pseudoestatística) subordina-se à predefinição ideológica de quem é oprimido e quem é opressor.

Nenhuma das duas ideologias considera que as duas partes envolvidas (ainda que possivelmente não sejam apenas duas) podem estar comprometidas com ganhos mútuos, o que explicaria, preliminarmente, por que estão ali, interagindo e convivendo, em vez de em outra situação.

Analisar os ganhos mútuos implicaria, por exemplo, propor que o patrão possui mais dinheiro que o empregado em virtude dos riscos assumidos, ou que é uma tolice achar que o valor econômico é determinado pela quantidade de trabalho: tal lógica recompensaria o carpinteiro incompetente que levasse dois anos para construir uma cadeira.

Essas explicações são papo de liberal; ou então propor que o “branco” e o “negro” não consideram a sua cor relevante por estarem voluntariamente reunidos em uma mesma igreja ou comunidade, onde partilham laços que conectam “os mortos, os vivos e os ainda não nascidos”, o que seria caracterizado como um discurso conservador.

Defesa da censura

Outro aspecto que evidencia o caráter antiliberal do identitarismo é observado nas novas estratégias voltadas a promover a censura. Os identitários redefinem meras palavras em “violência”, para amplificar o dano atribuído pela ofensa subjetiva e demandar que as autoridades silenciem mais pessoas.

Seu jargão nessa área, como “discurso de ódio”, é repetido por ministros do Supremo Tribunal Federal, que estão, neste momento, recorrendo à censura, com o pretexto de garantir segurança.

Mesmo comentários aparentemente inofensivos contra os grupos selecionados, com potencial subjetivo e acidental de serem mal interpretados (como, por exemplo, perguntar “de onde você é?”), são passíveis de sanção, classificados como “microagressão”. Curiosamente, entretanto, não se propõe, em resposta, uma “micropunição”.

Poucas ideias ofendem mais os clássicos dos liberais que a defesa da censura. Em “Areopagítica” (1644), John Milton compara a supressão de livros a um ato de assassinato em que se mata “uma imortalidade, em vez de uma vida”, e explica que na Grécia Antiga a censura era aplicada apenas ao ateísmo e à difamação, enquanto opiniões controversas, como a de Epicuro, que sustentava que os deuses não interferiam na vida humana, circulavam livremente.

John Stuart Mill, em sua renomada obra “Sobre a Liberdade” (1859), defende que “deve existir a liberdade mais plena de professar e discutir, como matéria de convicção ética, qualquer doutrina, não importa o quão imoral ela seja considerada”.

O novo ânimo censor, na falta de lastro intelectual entre os grandes filósofos liberais, precisou, através de uma tirinha com grande repercussão, deturpar o assim chamado “paradoxo da tolerância” de Karl Popper, no livro “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1945). A insinuação é que Popper teria endossado inovações moralistas como a censura contra o “discurso de ódio”, “fake news” ou “desinformação” — termos que incluem em sua ambiguidade os limites clássicos à expressão, mas o interesse principal está em expandi-los.

O verdadeiro autor da ideia da tirinha, como veremos adiante, é Marcuse, e seu nome não é “paradoxo da tolerância”, mas “tolerância libertadora”

No original, Popper colocou o paradoxo em uma nota de fim de capítulo (logo, algo periférico ao texto central) que trata do princípio da liderança. Nesse contexto, complementava uma crítica à ideia de filósofo-rei de Platão.

No corpo do texto, Popper introduz o conceito “Paradoxo da Liberdade” — a ideia de que pessoas livres podem escolher ser governadas por um tirano, usada por Platão na defesa do autoritarismo. Na nota, Popper deixa claro o que ele quer dizer com “intolerante”: “Nessa formulação, não sugiro, por exemplo, que seja necessário suprimir a expressão de filosofias intolerantes; enquanto pudermos responder a elas pelo argumento racional e mantê-las sob controle pela opinião pública, a supressão certamente seria muito insensata”.

Nada de novo

Quando essas filosofias extrapolam os limites? Quando ensinam seus seguidores a responderem a argumentos “pelo uso de seus punhos ou pistolas”. Assim, o limite proposto por Popper não apresenta nada de novo: é o limite clássico de restringir expressões que levem diretamente à violência, mas não restringir opiniões preconceituosas.

Embora alguns liberais autointitulados, frequentemente influenciados pelo ambiente político das universidades e pela hegemonia cultural do progressismo, tenham passado a aceitar os limites identitários recentemente impostos à liberdade de expressão, poucos temas são tão consensuais entre liberais, sejam eles clássicos ou contemporâneos, quanto a firme oposição à censura.

Enquanto isso, os identitários procuram censurar obras como um livro da jornalista Abigail Shrier que argumenta sobre a ocorrência de um contágio social de disforia de gênero entre meninas. O caso ganhou força censora quando uma professora do Departamento de Letras da Universidade de Berkeley incitou seus mais de 30 mil seguidores nas redes sociais a roubarem exemplares das livrarias e queimarem o livro.

Se o identitarismo é, de fato, filho do liberalismo, ele não tem a cara do pai e demonstra um caráter parricida. Assim, no que diz respeito às semelhanças de ideias, vocabulário e ação política, é o marxismo — e não o liberalismo — que mantém ligações quase que diretas com o identitarismo.

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