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Sucessão de erros

Criminoso estrangeiro solto por engano vira símbolo da decadência do Reino Unido

Depois de checar ao Reino Unido em um barco, imigrante foi preso por crime sexual e solto por engano.
Depois de checar ao Reino Unido em um barco, imigrante foi preso por crime sexual e solto por engano. (Foto: Reprodução/Crown Prosecution Service)

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O Reino Unido não é mais o mesmo.

Um imigrante ilegal condenado por crimes sexuais foi solto por engano e perambulou por Londres durante vários dias até ser capturado. Hadush Gerberslasie Kebatu tornou-se, em poucas horas, um símbolo da decadência administrativa de um país que já foi modelo de eficiência burocrática e segurança pública. 

Kebatu chegou ao Reino Unido em 29 de junho, vindo da França em um pequeno barco pelo Canal da Mancha. A travessia ilegal tem se tornado comum entre imigrantes que chegam ao continente europeu. O etíope de 38 anos pediu asilo e foi levado a um hotel em Epping custeado com recursos públicos. Essa seria a sua casa enquanto a solicitação tramitava.

Oito dias depois, entretanto, o imigrante protagonizou uma sequência de episódios que revoltaram os moradores da cidade: fez comentários de teor sexual a uma menina de 14 anos que comia pizza com uma amiga, tentou beijar uma mulher adulta no dia seguinte e, pouco depois, abordou novamente a mesma adolescente, tentando beijá-la à força.

Ele foi preso e, no mês passado, condenado a 12 meses de prisão. O etíope foi enviado à penitenciária de Chelmsford, de onde deveria ser transferido para um centro de detenção de imigrantes antes de ser deportado.

Mas não foi o que aconteceu. Por razões que ainda não estão claras, ele foi solto por engano em 24 de outubro. Nem Kebatu pareceu entender o que estava acontecendo. Durante uma hora e meia, uma testemunha viu o etíope “confuso” indo e voltando à entrada da prisão, sem saber o que fazer. Ainda assim, as autoridades não se deram conta do erro. Ele foi direcionado a uma estação de trem.

As câmeras de segurança mostraram Kebatu andando, aparentemente sem destino, até que ele foi preso no domingo em Finsbury Park, no norte de Londres, após uma operação policial. O caso, contudo, já havia provocado uma onda de indignação.

Uma sucessão de erros

O caso de Hadush Kebatu virou um escândalo nacional porque a libertação indevida ocorreu notadamente por falha humana. “Houve uma falha inaceitável na comunicação entre departamentos”, admitiu um porta-voz do governo, explicando que o erro aconteceu durante um processo rotineiro de liberação de presos, quando Kebatu deveria ter sido transferido para a custódia da imigração. 

O ministro da Justiça, Alex Chalk, declarou que a libertação “não deveria jamais ter acontecido” e prometeu “revisar urgentemente todos os protocolos de transição entre o sistema prisional e o departamento de imigração”. Segundo ele, a falha foi resultado direto da “pressão extrema sobre um sistema sobrecarregado”. 

“Estamos lidando com cadeias lotadas, pessoal reduzido e procedimentos que não acompanharam o crescimento da demanda. Não é apenas um erro individual — é um sintoma de algo muito maior”, reconheceu Chalk em entrevista à BBC. 

Depois de recapturado, criminoso ainda recebeu dinheiro do governo 

Se a libertação de Kebatu foi um choque, o que veio depois foi afrontoso. Pouco antes de ser deportado, o criminoso recebeu £500 (cerca de R$3.300) como “pagamento discricionário” do governo britânico. O departamento de imigração justificou que queria evitar resistência durante o embarque e “facilitar a remoção voluntária”. 

Ainda que o erro da soltura tenha sido corrigido, o anúncio do pagamento ao criminoso provocou fúria entre parlamentares e cidadãos. Deputados conservadores classificaram o pagamento como “recompensa a um criminoso”. A oposição, por sua vez, exigiu a renúncia de altos funcionários do Home Office, acusando o governo de “perder o controle da segurança e da moral administrativa do Estado”. 

A ministra do Interior, Yvette Cooper, tentou conter o dano político. “O pagamento não foi um prêmio, mas uma medida operacional excepcional para garantir a deportação rápida de um indivíduo perigoso”, justificou. Mas suas palavras não bastaram para conter os protestos. Em Londres, Manchester e Birmingham, manifestantes exigiram reformas urgentes no sistema prisional e migratório. 

As redes sociais britânicas foram tomadas por mensagens que sintetizavam o sentimento de frustração: “um país que paga para criminosos irem embora é um país que perdeu a noção de justiça”. 

Dados oficiais da crise 

A libertação de Kebatu não foi exceção. Segundo dados oficiais divulgados em julho, 262 prisioneiros foram libertados por engano no Reino Unido entre abril de 2024 e março de 2025, um aumento de 128% em relação aos 115 do período anterior. O número, divulgado pelo próprio Ministério da Justiça, ilustra o colapso administrativo de um sistema que há muito opera no limite. 

A questão de imigração não autorizada — especialmente as dezenas de milhares de pessoas que atravessam o Canal da Mancha em barcos lotados — subiu ao topo da preocupação política na Grã-Bretanha. Mais de 36.900 pessoas fizeram a perigosa travessia da França para o Reino Unido até agora neste ano, superando o total de 2024. 

Nigel Farage, líder do partido político de direita Reform UK, disse a respeito dos dados oficiais que o país está próximo da “desobediência civil em grande escala.” O governo, por sua vez, prometeu impedir que os imigrantes tentem chegar à Grã-Bretanha através do Canal da Mancha e acabar com a prática de alojá-los em hotéis, que se tornaram focos de tensão. 

Mesmo assim, a vice-primeira-ministra Angela Rayner afirmou que a Grã-Bretanha é “um país multiétnico e multirreligioso bem-sucedido”, e que o governo deve mostrar que tem “um plano para abordar as preocupações das pessoas e oferecer oportunidades para que todos floresçam”.

Debate sobre imigração 

O caso Hadush Kebatu é um entre vários que expõem a crise de imigração no Reino Unido. A direita, conservadores e o partido Reform UK enxergam a imigração em massa como ameaça direta à segurança, à coesão social e aos cofres públicos. 

Pesquisas da Ipsos, uma das maiores empresas de pesquisa de opinião pública do mundo, indicam que 67% dos britânicos acreditam que o número de estrangeiros que entram no país é “alto demais”. Os conservadores, pressionados por esse avanço, propuseram a criação de uma “Força-tarefa de deportação” inspirada no Serviço de Imigração e Fiscalização Aduaneira americana, com poder para deportar milhares de imigrantes por ano. 

No governo, o Partido Trabalhista de Keir Starmer tenta equilibrar o discurso humanitário com a crescente insatisfação popular. Desde 2024, o governo endureceu políticas migratórias, elevou exigências de idioma e ampliou prazos para residência e cidadania.

Como não seria diferente, a medida gerou atritos dentro do próprio partido, com deputados mais radicais acusando Starmer de adotar “retórica da extrema-direita” e de ceder à pressão populista. Ignorando as críticas do próprio partido, o governo argumenta que o aumento no fluxo migratório pressiona serviços públicos, como saúde, habitação e educação, e precisa ser contido. 

O caso gerou debate também no Parlamento Europeu. Deputados de partidos conservadores e nacionalistas citaram o episódio como exemplo do “fracasso do modelo liberal de imigração britânico”.

Um parlamentar francês resumiu a situação: “Se até o Reino Unido, que era símbolo de pragmatismo e controle, está perdendo o rumo, o que sobra para o restante da Europa?”.

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