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O ser humano do futuro poderá ser muito diferente do atual por causa dos avanços tecnológicos. Resta saber se isso será bom ou ruim | /BigStock
O ser humano do futuro poderá ser muito diferente do atual por causa dos avanços tecnológicos. Resta saber se isso será bom ou ruim| Foto: /BigStock

Yuval Noah Harari pode se distinguir de outros grandes pensadores da humanidade por sua compreensão global da vida como nós a construímos aliada a uma escrita leve e, ao mesmo tempo, sofisticada. Se em “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, sucesso estrondoso que lhe rendeu a fama que colhe hoje, o autor explora a evolução da espécie até o presente momento, em “Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã”, publicado pela Companhia das Letras, Harari faz de seu exercício de futurologia um mosaico complexo de novas soluções e novos problemas que enfrentaremos sem muita alternativa.

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É importante que se diga que a projeção do autor não parte de devaneios oníricos sobre o mundo do amanhã, como alguém que um dia pensou o desenho dos Jetsons, por exemplo. O que Harari faz é se debruçar sobre nossos objetivos presentes e analisá-los com base em valores caros ao ser humano hoje em dia, em especial o ímpeto irrefreável por melhoramentos tecnológicos e científicos e a questão humanista – colocada por ele como forma de religião moderna, que dispensa Deus e coloca a vida humana acima de qualquer outra coisa, justificando o domínio sobre o planeta.

Dessa maneira, Homo Deus começa narrando as conquistas do homem sobre seus principais cavaleiros do apocalipse: a fome, a peste e a guerra, e como foi possível praticamente erradicar esses males do planeta, restringindo-os a casos pontuais de motivação principalmente política. Unindo história política, cultura pop e dados científicos, o autor prossegue explicando como esse domínio sobre o globo eventualmente levará a espécie a um novo patamar divino, onde, assim como Deus, o Homo sapiens será capaz de criar, destruir, amar e dominar em uma escala muito maior do que hoje em dia. E por fim, como essa condição de divindade, entretanto, custará o nosso humanismo, e nos obrigará a repensar nossos próprios paradigmas. Uma coisa é certa: nossa busca por solucionar problemas atuais criará outros problemas ainda maiores. Não será uma viagem fácil.

O mundo segundo Yuval Noah Harari

Imortalidade

Os avanços na medicina eventualmente curarão doenças e é pouco provável que os cientistas se deem por satisfeitos em suas pesquisas. Porque a vida é a coisa mais preciosa do universo para nós, o impulso para frear o seu inevitável fim deixará de ser uma excentricidade científica e passará a ser uma aposta séria já no Século 21. Harari conta, por exemplo, como o estudioso e inventor Ray Kurzweil integrou a equipe do Google em uma subdivisão da empresa chamada Calico, que tem a missão assumida de “resolver a morte”. Que uma empresa grande como o Google esteja investindo pesado em questões como essa, o autor diz, é sinal de que não devemos subestimar a existência de uma fórmula da imortalidade em um futuro não muito distante. Isso cria outros problemas, entretanto.

Estão incluídos aí uma redistribuição do nosso tempo de aprendizado e de trabalho e linhagens sucessórias de poder que podem demorar muito mais para realizar sua alternância. Além disso, os humanos que conseguirem regenerar seus tecidos velhos e viver por mais de 500 anos certamente sofrerão de algum tipo de ansiedade paranóica, sabendo que podem ainda morrer em acidentes ou atentados. A razão pela qual saímos e nos arriscamos hoje em dia é a noção da própria finitude, explica.

Automação

Que os robôs fazem hoje muitos trabalhos que outrora eram feitos por força laboral orgânica não constitui exatamente uma novidade. O que o autor prevê é que o processo de automação da vida continuará vida adentro e chegará a áreas que os humanos consideram irreproduzíveis, como as artes. Ele cita exemplos, como o computador Deep Blue, da IBM, que venceu o enxadrista russo Garry Kasparov em 1997, e o programa EMI (Experiments in Musical Intelligente), criado pelo professor de musicologia da Universidade da Califórnia, David Cope, que em um único dia compôs cinco mil peças para coral ao estilo do compositor barroco Johann Sebastian Bach, graças à análise de suas composições.

O grande problema, como é possível prever desde já, será o que faremos com nosso tempo livre quando os robôs estiverem fazendo tudo, de processos agrícolas a sinfonias complexas. Assim como os cavalos perderam a importância com a criação de automóveis, teremos uma população de humanos obsoletos e inúteis, que não saberão cuidar dos nossos robôs ou fazer algum outro trabalho necessário. Pior: a última revolução robótica será uma facada em nosso conceito humanista. Como a vida pode ser o nosso bem mais valioso se não fazemos mais do que sentar e desfrutar de criações automatizadas? Harari sugere que assim como a humanidade suplantou a necessidade de um Deus, as máquinas podem se valorizar em autossuficiência. Nosso único propósito nesse planeta, portanto, pode ter sido criar máquinas que vão explorar o universo e continuar a existir muito tempo depois que a humanidade desaparecer.

Fusão homem-máquina

Antes de otimizar nossas máquinas, os cientistas provavelmente irão tentar resolver problemas de ordem interna em nosso complexo maquinário orgânico. Quanto mais a neurologia e outros campos pioneiros da medicina avançarem, melhor saberemos como lidar com falhas químicas que incapacitam e deprimem. O autor relata o caso de Sally Adee, jornalista da revista New Scientist, que testou capacetes neurais usados por atiradores de elite para suprimir o medo e a ansiedade do combate.

Ela conta que, colocada em um simulador de combate sem o capacete, não conseguiu acertar os inimigos virtuais que ela bem sabia não serem reais. Com o capacete, porém, acertou todos eles e não sentiu nada além de um leve formigamento e gosto metálico na boca. Outros objetivos poderão ser alcançados com o desvelamento da misteriosa rede neural que faz nosso cérebro funcionar. O autor ainda contrapõe essa perspectiva com a nossa ilusão de livre arbítrio, e como os algoritmos do Google e do Facebook já induzem nossas escolhas, não importa o quão livres acreditamos ser.

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Dataísmo

“O Universo consiste num fluxo e dados e o valor de qualquer fenômeno ou entidade é determinado por sua contribuição ao processamento de dados”. Assim Harari define o dataísmo, a religião que substituirá o humanismo quando a reunião e processamento de informações atingir um determinado nível de excelência. Algoritmos que circulam hoje pela internet se tornarão parte indissociável da nossa vida e isso moldará não apenas nossa noção de livre-arbítrio, mas terminará por reprogramar a vida em sociedade.

Como trabalhamos, como nos deslocamos e o que comemos, tudo será processado por um grande banco de dados. Para muito além de conceitos eugenistas do século 20, o acesso a informações sobre genes familiares e históricos de doenças não será uma questão de opção, por exemplo. Mais do que isso, o dataísmo pregará o fluxo livre de informação, incluindo aí o acesso irrestrito a cultura e a informações consideradas sigilosas hoje em dia. Por fim, o novo paradigma valorizará não a experiência humana, mas a quantidade de informação que se encerra em cada coisa. Tempos difíceis para quem precisa colocar os sentimentos acima de tudo.

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