Os intelectuais podem até torcer o nariz, mas a verdade é que, hoje, são os comediantes, e não mais escritores, dramaturgos, poetas e filósofos, que detêm a capacidade de observar o mundo e expressá-lo numa linguagem que as massas entendem e pela qual se interessam. De Danilo Gentili (na realidade brasileira) a Ricky Gervais, passando por Larry David e Louis CK, eles desempenham um papel que um dia foi ocupado por gênios como William Shakespeare, Leon Tolstói e Machado de Assis.
E entre os comediantes que com mais perspicácia, inteligência, leveza e até um quê de poesia observam e comentam os detalhes que compõem a vida compartilhada por todas as culturas está Jerry Seinfeld, protagonista da antológica série homônima e que acaba de estrear o espetáculo “23 Hours do Kill” na Netflix.
Se estou querendo dizer que Seinfeld é tão genial quanto Shakespeare? Não. Estou querendo dizer que, se vivesse no pandêmico século XXI, Shakespeare, pentâmetros iâmbicos à parte, estaria provavelmente escrevendo sitcoms e estrelando stand-up routines nos serviços de streaming.
O ridículo da abundância
Antes de qualquer coisa, é preciso apontar para o incômodo de assistir a um especial de Jerry Seinfeld em meio à pandemia, com seus decretos ou recomendações de isolamento social e com a ameaça de crise econômica sem precedentes. Talvez a Netflix tenha lançado o espetáculo agora justamente para que os espectadores encontrassem uma válvula de escape.
Mas a normalidade dos assuntos tratados por Jerry Seinfeld soa tão anormal nos dias de hoje que o especial em alguns momentos parece até mesmo datado. Já logo no começo, ao falar de amigos que combinam a ida ao show dele, Seinfeld, para depois, quem sabe, dar uma esticadinha num restaurante badalado de Nova York, passa a impressão de que Seinfeld está falando de um outro mundo. E, de certa forma, está mesmo.
Por enquanto, contudo, e para efeitos de análise, em “23 Hours do Kill” Jerry Seinfeld fala deste nosso mundo atual. Onde, apesar da pandemia e dos muitos problemas, vivemos numa inegável abundância. Uma abundância tão absurda, tão impensável há apenas cem anos, que transformou praticamente todo mundo em criança birrenta com uma só palavra no vocabulário: quero.
Curioso, isso. Jerry Seinfeld em nenhum momento anda pelo caminho falsamente difícil do politicamente incorreto. Ele não bate de frente com transgêneros ou minorias raciais. Ele tampouco fala de Donald Trump ou de mudanças climáticas ou de religião ou qualquer outro assunto fácil que pudesse gerar aquele riso politicamente tão virtuoso quanto indignado.
Na primeira parte do show, Jerry Seinfeld fala apenas deste estado quase permanente de irritação que acomete toda a Humanidade. Esse incômodo estranho, com um quê de metafísico, de ter comida à mesa todos os dias, de ter um teto sob o qual dormir e de poder se comunicar instantaneamente com praticamente qualquer pessoa do mundo.
Poderíamos estar levantando as mãos para o céu e agradecendo por todas essas possibilidades, inclusive a de, com meia-dúzia de apertões no controle-remoto, poder assistir a Jerry Seinfeld no conforto do lar. Mas preferimos, sabe-se lá por quê, nos irritar. O ridículo disso não escapa ao olhar do comediante, assim como os caprichos da sociedade russa não escaparam ao olhar de Tolstói em Guerra e Paz e as disputas de poder não escaparam ao olhar de Shakespeare.
Superego
Na segunda parte do espetáculo, ao falar de si mesmo, Jerry Seinfeld assume outro papel que os comediantes “usurparam”: o de psicanalista. E, se na primeira parte rimos da nossa irritação com as coisas mais triviais, nesta percebemos que somos viciados não na realidade coletiva, como as redes sociais nos fazem crer, e sim na realidade individual e teoricamente inacessível que se desenrola na cabeça de cada um.
Bebendo de temas como a tormentosa relação familiar, algo que na boca de um comediante menor cairia naquele riso forçado do lugar-comum, Seinfeld compõe um retrato em cores vivas, mais uma vez, do nosso ridículo e da nossa pequenez. Mas não são um ridículo e uma pequenez insignificantes. Pelo contrário, é desse ridículo e dessa pequenez que nasce o ser humano maior, geralmente anônimo, com o qual todos nos sentimos divinamente identificados.
Estão lá em “23 Hours do Kill” todos os trejeitos que fizeram de Seinfeld talvez o mais bem-sucedido comediante de todos os tempos: uma interpretação canastrona, o humor físico meio tenso, o tom de voz que às vezes atinge umas notas altas demais. E sobretudo o texto que reflete essa capacidade absurda de ver o mundo por um prisma mágico que, por uma hora, não mais do que isso, contradiz a sabedoria budista segundo a qual a vida é só sofrimento.
Não é pouca coisa.
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