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Revolta virtual

Leitura emasculada de “Dom Casmurro” transforma livro em tendência improvável

Capitu interpretada por Maria Fernanda Cândido em adaptação de 2008: os famosos olhos oblíquos, de ressaca. (Foto: Divulgação)

Na última sexta-feira (13), levei um susto ao me deparar com a personagem mais famosa e emblemática de Machado de Assis, Capitu, entre os trending topics. Para quem não sabe, trending topics é aquela parte do Twitter que concentra os assuntos do momento e que acaba por direcionar o pensamento das pessoas que frequentam o ambiente hostil das redes sociais. Geralmente ocupados por celebridades, por referências para mim obscuras a um tal de KPOP e por disputas políticas, na sexta-feira os trending topics exibiam a dúvida que é assim uma espécie de “ser ou não ser” da literatura brasileira: em Dom Casmurro, Capitu traiu ou não Bentinho?

Tudo porque um YouTuber chamado Leon Martins escreveu que "Toda essa revolta das pessoas que não aceitam que a Capitu traiu o Bentinho é por conta de, hoje, quererem pintá-la como uma heroína protofeminista a frente de seu tempo. No livro, ela é uma jovem manipuladora e mentirosa que estraga um garoto inocente. Ela não é heroína". Parece que Martins, mais do que qualquer professor de literatura do ensino médio, é mesmo capaz de fazer com que millennials e a Geração Z discutam Machado de Assis.

A discussão literária nos tempos das redes sociais é algo ao mesmo tempo maravilhoso e deprimente. Maravilhoso porque a gente se dá conta do quão diverso é o mundo e de como as pessoas podem ter olhares distintos sobre uma mesma coisa, ainda mais se tratando de uma obra necessariamente ambígua como Dom Casmurro. Deprimente porque o mais comum é encontrar argumentos que fariam um aluno da oitava série do primário (isto é, de quando havia essa coisa de “primário”) corar ou, pior, receber um redondo e humilhante zero no canto superior direito da prova.

Lendo Machado de Assis em tempos de progressismo

Por conveniência política, a leitura progressista de Machado de Assis ignora o anacronismo da coisa toda e vai logo atribuindo ao narrador os rótulos da moda. Bentinho não só é homem branco, cristão e de classe média como também não é ostensivamente abolicionista nem tampouco cometeu a ousadia a que Millôr Fernandes fazia referência quando falava do carinho todo especial que Bentinho nutria por Escobar.

A leitura progressista de Capitu segue na mesma linha. Para uns, ela é uma protofeminista dona da própria sexualidade e uma vítima da misoginia do narrador, isto é, de Bentinho, isto é, do próprio Machado de Assis – até porque os leitores progressistas contemporâneos são incapazes de conceber uma narrativa em primeira pessoa que não seja a voz narcisista do escritor.

Para outros, contudo, ela é o exemplo a não ser seguido. Submissa ao marido ciumento, Capitu morre em desgraça e tem sua imagem para sempre atrelada à vilania moral da traição porque foi uma espécie de Maria da Penha que não teve a coragem de denunciar para as autoridades da época a violência psicológica inequívoca de que era vítima.

E ainda há aqueles para os quais Capitu merece todos os castigos do mundo justamente por não ter tido a coragem de queimar seu espartilho em praça pública, se revoltar contra o patriarcado, liderar uma revolta de escravos e talvez montar uma comuna em Petrópolis. Ela não passava de uma burguesa estigmatizada pela burguesia e para a burguesia, como uma espécie de história de advertência do que pode acontecer se você se render ao discurso falocêntrico.

Leitura inovadora e emasculada

A leitura do YouTuber Leon Martins que deu origem às manifestações sobre Capitu na mais improvável das arenas virtuais, o Twitter, tem alguns méritos. O primeiro justamente é de ver o clássico (que a maioria das pessoas conhece apenas pelo resumo apressaram que leram para passar no vestibular) sendo discutido fora dos entediantes círculos acadêmicos ou de intelectuais pedantes nos bares da vida. Um feito e tanto.

Depois, em seu tuíte original ele fala em “revolta”. Acredito que seja uma hipérbole, mas talvez não seja. Tomara que não seja. Imagine que maravilha viver num país onde as pessoas se revoltam com a caracterização e o destino de personagens criados no século XIX, e não por alguma coisa que um político ou jogador de futebol ou cantora de funk disse ou fez!

Outro mérito foi fazer com que pessoas como eu se levantassem, fossem até a estante, pegassem a edição surrada de Dom Casmurro e a colocassem na mesinha de cabeceira “para reler um dia desses”. Não que reler Machado de Assis não seja sempre um prazer. É. Mas a vida conectada tem dessas coisas e muitas vezes nos impede de nos concentrarmos no que realmente vale a pena. E se tem uma coisa que vale a pena nessa vida é saborear cada frase de Machado de Assis em Dom Casmurro.

O quarto mérito da leitura do crítico literário travestido de YouTuber (e vice-versa) é saber que, passados mais de cem anos da publicação do romance, ainda é possível se fazer uma leitura inovadora da história narrada pelo velho Bento. Não que eu concorde com a leitura de Martins. Longe disso! Porque a leitura dele, além de ser anacrônica, é surpreendentemente emasculada e consegue transformar Capitu numa bruxa manipuladora que corrompeu o pobre, ingênuo e puríssimo Bentinho.

Mas essa é mesmo a graça do romance e é por isso que ele merece ser chamado de obra-prima. Machado de Assis criou uma obra em aberto, que permite múltiplas leituras – até as estúpidas. Algumas pessoas lerão Dom Casmurro obrigadas pelos professores e não quererão nem saber quem traiu quem, se traiu. Outras defenderão o ponto de vista de Bentinho. E outras exaltarão Capitu.

Em se tratando de uma obra de arte que jamais pretendeu se ver transformada em estopim de guerra ideológica, que nunca almejou o status de dogma, todas as leituras, até mesmo a emasculada, são possíveis e admiráveis, desde que bem argumentadas.

Dom Casmurro é um livro-espelho

Há anos defendo a tese de que Dom Casmurro é um livro-espelho. Isto é, independentemente da “verdade” por trás do que aconteceu entre Capitu, Bentinho e Escobar, ele tem o poder de revelar muito do próprio leitor.

Quem lê e chega à conclusão de que Capitu traiu Bentinho com base naquele olhar de ressaca, por exemplo, é porque tende a acreditar em narradores e, mais importante, tende a ter uma visão bastante oblíqua das pessoas ao seu redor. É um leitor que desconfia muito dos outros e confia muito (talvez demais) na própria percepção do mundo. Não por acaso, essa é a leitura mais comum entre os intelectuais.

Já quem acredita que Capitu não traiu Bentinho (de jeito nenhum, ela seria incapaz disso!) é porque desconhece ou faz questão de fechar os olhos para a natureza humana, para a bendita falibilidade humana. Não por acaso, a maioria dos leitores progressistas, isto é, aqueles que veem Capitu como vítima do patriarcado e da “sociedade”, inocentam de antemão a personagem. É uma leitura que expressa certo “autoritarismo bem-intencionado”, porque vê as relações humanas de forma maniqueísta. É também uma leitura infantil que reproduz a dicotomia simplista do bem contra o mal.

Quanto a mim, Dom Casmurro revela meu lado “diferentão”. Porque, depois de meia-dúzia de leituras, a última delas já há bons dez anos, cheguei à conclusão de que a dúvida sobre a traição ou não de Capitu é uma dúvida vulgar e inútil, uma espécie de distração moral que desvia a atenção do leitor para um aspecto muito mais importante do livro: Dom Casmurro é (e isso está até no título e naquele maravilhoso capítulo que o explica!) um romance sobre o ressentimento.

Sobre os ressentimentos que acumulamos ao longo da vida por aqueles que mais amamos e as mentiras que contamos aos outros e a nós mesmos para justificar nosso ressentimento; sobre as incríveis cambalhotas morais (a maior parte inconsciente, quero crer) que damos para explicar os pecados e pecadilhos que nos levaram a agir de certa forma em determinada encruzilhada; sobre os caminhos tortuosos que pegamos e inventamos, geralmente trilhas assustadoras por bosques escuros, úmidos e mal-assombrados, para chegarmos à conclusão de que a vida, o mundo, o destino está sempre contra nós.

Não está.

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