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Desde muito cedo, ensinam-nos nas escolas que o Brasil do denominado “período colonial” (1500-1808) era um mundo de gente iletrada, um mundo em que se lia pouco e se escrevia menos ainda. Desprovidos de escolas, carentes de impressos e de impressores, os colonos, vez ou outra, até publicavam uns poucos versos e sermões, mas, em geral, o “gênio nacional” estava sufocado pelo descaso de Portugal e pela mão pesada de sua censura.
A ideia, embora ainda habite os livros didáticos e não didáticos do país, não é nova, na verdade, ela remonta ao período posterior à Independência, quando, para explicar a pobreza em que se encontravam as ciências e as letras da jovem nação, a intelectualidade do país sacou de seu arsenal o argumento do “descaso e da opressão vividos no período colonial”, um argumento com tinturas iluministas: o conhecimento liberta da opressão, e Portugal, ciente disso, tratou de evitar que os colonos conhecessem. Foi dele que lançou mão Francisco de Sales Torres Homem para, em 1833, justificar, diante dos distintos membros do Instituto Histórico da França, o atraso cultural do Brasil: “Imaginai uma nação obrigada a permanecer imóvel nos seus elementos de humanidade e se absorver profundamente na unidade de um despotismo sistematicamente opressor, e compreendereis qual tenha sido o estado das ciências no Brasil durante três séculos. Nenhuma academia, nenhuma instituição literária, no meio desse mutismo da inteligência popular, no seio desse torpor com que o despotismo da metrópole gravava todos os espíritos; somente a poesia se fazia ouvir”.
A carência de meios e de interesse
Mas terá sido mesmo como descrevem Torres Homem e seus contemporâneos? É certo que os meios para se produzir e consumir artigos de cultura na colônia eram escassos: o ensino atendia a poucos e dependia inteiramente das ordens religiosas (jesuítas, beneditinos, franciscanos e carmelitas); as faculdades não desembarcaram por aqui antes do século XIX; os impressores praticamente não existiram até o desembarque de D. João, em 1808; os vendedores de impressos eram raros; e os impressos, todos vindos da metrópole, ou de uma outra parte qualquer do Velho Mundo, custavam caro e interessavam a uma parcela diminuta da população. Tudo isso é verdade. No entanto, é preciso ter cautela: nem a pobreza cultural era tão pobre como se apregoa por aí, nem o suposto Estado opressor português foi o grande responsável por essa conjuntura – afinal, uma metrópole inculta, mesmo que queira, não tem meios para criar uma Atenas nos trópicos.
O que se tinha à disposição
Ainda que concentrados nas cidades mais ricas do litoral – Recife, Salvador, Santos, Rio de Janeiro – e em quantidade pouco expressiva, escritores, livros e leitores não estavam ausentes do mundo colonial. Dos autores, por exemplo, ao menos daqueles que atuaram no Rio de Janeiro entre os séculos XVI e XVIII, uma centena deles, sabe-se que 70% vinham do clero e os que não vinham tinham obtido a sua formação em algum colégio religioso. A quase totalidade dos escritores ativos na cidade e por extensão na colônia – onde a situação se repetia – gravitavam, intelectualmente e, na maioria dos casos, materialmente, em torno da Igreja Católica, o que deu contornos próprios aos escritos que produziram, todos marcadamente cristãos.
Os leitores, por sua vez, não diferiam muito dos escritores. A maioria deles estava concentrada nas instituições religiosas (mestres, alunos e demais membros das ordens), e os que não estavam eram poucos: um ou outro militar dedicado às letras; burocratas mais ou menos graúdos com hábitos de leitura e, no caso de metropolitanos, interessados em conhecer um pouco mais a colônia que passaram a habitar; boticários instruídos, curiosos do seu ofício; bacharéis egressos de Coimbra, bem poucos; capitães de navios cultivados; médicos ou cirurgiões atuando numa ou noutra cidade do litoral; e um punhado de senhores de engenho interessados em apurar-se moralmente e intelectualmente durante o tempo que os negócios de sua propriedade não lhes roubava — como o historiador Rocha Pita, por exemplo. Esses e alguns outros tipos – não muitos, é verdade –, somados aos frequentadores dos colégios religiosos, constituíam, em linhas gerais, todo o público leitor da colônia.
Tal público, se é que se pode tratar assim um grupo tão restrito, para obter o seu objeto desejado, o livro, o impresso, estava inteiramente dependente de Lisboa, dependente de um mercado livreiro atendido por tipografias pobres e com vida curta, de tiragens pequenas e de distribuição muitíssimo limitada, o que dificultava enormemente o acesso aos impressos. Era possível adquirir livros na colônia e constituir uma pequena biblioteca pessoal, todavia, pelas notícias que se têm, essa não foi uma prática corrente. Livros impressos em Portugal, que vinham devidamente aprovados pela censura, ou eram adquiridos das mãos dos próprios autores, quando por aqui residiam, ou encomendados a um vendedor de livros, melhor, a um vendedor de artigos diversos do reino, entre os quais, livros; podia-se também, no caso de uma obra estrangeira, proibida ou não em Portugal, adquiri-la das mãos de um tripulante de um navio qualquer ancorado no porto, ou solicitar de um conhecido advindo da Europa que a trouxesse consigo; enfim, havia umas tantas possibilidades para se adquirir impressos, mesmo impressos proibidos no reino, mas isso não era nem fácil, nem barato, tampouco corriqueiro.
Ao que parece, do mesmo modo que no tocante à educação formal, os colonos leitores, leigos e religiosos, dependiam todos das livrarias (bibliotecas) das ordens religiosas. Os colégios jesuítas do Grão-Pará e Maranhão, por exemplo, dispunham de um conjunto de livrarias que, somadas, abrigavam 12.000 volumes; o colégio jesuíta do Rio de Janeiro, por volta de 1750, contava com mais de 4.000 volumes nas suas dependências, rivalizando com o dos beneditinos, com 3.000, 3.500 volumes; isso numa cidade com não mais do que 35.000 habitantes. O quadro, ao qual se devem acrescentar as livrarias dos franciscanos e carmelitas — muito mal documentadas —, repete-se em outras cidades da colônia, e não parece ser tão desolador.
O que se tinha à disposição, é certo, não primava pela variedade, ao contrário. Os dois catálogos completos de livrarias religiosas coloniais que temos disponíveis, um do colégio jesuíta da cidade de Vigia, no Pará, com 1.000 volumes, e outro do mosteiro beneditino do Rio de Janeiro, com cerca de 3.200, ambos do século XVIII, ilustram essa pouca diversidade. Malgrado o número de autores e obras, os gêneros variam pouco e as temáticas estão todas circunscritas ao universo religioso — são, afinal, livros de ordens religiosas, localizadas numa colônia católica da América. O carro-chefe dessas livrarias são, sem dúvida, os sermões, incluídos aí os panegíricos, discursos e orações, que certamente também deveriam ser as obras mais consultadas pelos utentes.
As bulas papais, os comentários aos Evangelhos, às bulas e às obras dos doutores da Igreja, os livros de horas e da boa morte, os cursos de filosofia e de teologia, os códigos e comentários aos códigos de direito canônico e romano, as vidas de santos, santas e mártires da igreja, as narrativas edificantes e as histórias das ordens religiosas compunham outra parcela substantiva desses acervos.
Obras de Aristóteles havia algumas, um ou outro Cícero, Sêneca, Ovídio, Horácio e muitos comentaristas católicos dos filósofos antigos, gregos e romanos. Os denominados doutores da Igreja estavam muito bem representados nesses acervos. Em maior ou menor número, marcavam presença nas estantes das ordens São Gregório, São Jerônimo, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Basílio de Cesareia, São Gregório de Nazianzeno, Santo Atanásio, São Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo, Santo Isidoro de Sevilha, São Bernardo de Claraval, São Francisco de Sales, São Beda, São João da Cruz, Santo Alberto Magno e Santo Antônio de Pádua.
Livros de poesia eram poucos, poucos também eram os livros de gramática portuguesa; em maior número eram as peças de teatro, impressos de leitura leve e agradável, voltados tanto para educação quanto para o desanuviamento dos espíritos; os volumes contendo dramas e comédias edificantes, ao lado daqueles contendo sermões, deviam figurar entre as obras mais consultadas das livrarias. As histórias de algumas casas reais europeias também marcavam aí presença, do mesmo modo que as obras dedicadas à agricultura, à medicina e à cirurgia. Em linhas gerais, o que se dispunha na colônia eram impressos que remetiam a um universo estritamente cristão e, em larga medida, catequético, onde predominavam sobretudo obras voltadas para a conversão e a moralização dos eventuais utentes das livrarias.
Eis o quadro, não é muito rico, nem muito variado, mas também não retrata um cenário de opressão metropolitana e completo obscurantismo colonial. Era o que se tinha numa colônia portuguesa católica, de poucos recursos, onde a luta pela sobrevivência se impunha de uma maneira imperiosa sobre o interesse, gosto ou admiração pelo mundo das letras.



