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A esquerda tem uma relação longeva e intensa com o antissemitismo. Para ser preciso, Karl Marx, alemão de ascendência judaica, escreveu um estudo chamado "A questão judaica", no qual defende que a identidade judaica seria incompatível com a lealdade à causa da emancipação da humanidade.
Marx se inscreve numa tradição de antissemitas inaugurada por Voltaire que teve notável seguimento em Nietzsche. Em geral, os antissemitas odeiam os judeus por eles terem rejeitado o Cristianismo.
Já Voltaire, Marx e Nietzsche os odiavam por eles terem inventado o Cristianismo. Veja-se o que Marx diz, no final do seu mencionado estudo:
O Cristianismo é o pensamento sublime do Judaísmo, assim como o Judaísmo é a aplicação prática vulgar do Cristianismo. Porém, essa aplicação só poderia chegar a ser geral quando o Cristianismo, como religião acabada, levasse a termo, teoricamente, a autoalienação do homem de si mesmo e da natureza. Só então pôde o Judaísmo impor seu império geral e alienar o homem alienado e a natureza alienada, convertê-los em coisas venais, em objetos entregues à sujeição da necessidade egoísta, à negociação e à usura.
O egoísmo cristão da bem-aventurança se transforma, necessariamente, em sua prática acabada, no egoísmo concreto do judeu, a necessidade celestial na Terra, o subjetivismo na utilidade própria. Não explicamos a tenacidade do judeu a partir da religião, mas do fundamento humano de sua religião, da necessidade prática, do egoísmo. O judeu se tornará impossível tão logo a sociedade consiga acabar com a essência empírica do Judaísmo, com a usura e suas premissas.
O judeu será impossível porque sua consciência carecerá de objeto, porque a base subjetiva do Judaísmo, a necessidade prática, se terá humanizado, porque se terá superado o conflito entre a existência individual-sensível e a existência genérica do homem. A emancipação social do judeu é a emancipação da sociedade do Judaísmo.
Desconexão com a realidade
O que Marx está a dizer, com todas as letras, é que a existência do Judaísmo — e consequentemente dos judeus — é incompatível com a existência de uma sociedade livre e igualitária. Ecos desse tipo de pregação, divorciados de qualquer conexão com a realidade, são sentidos até hoje no pensamento da esquerda.
Entretanto, a União Soviética foi o primeiro país a reconhecer a independência de Israel e a antiga Tchecoslováquia, autorizada por Josef Stalin, foi o principal país a fornecer material bélico e equipamentos de defesa a Israel durante a Guerra de Independência (1948-1949).
Uma significativa parte das lideranças do movimento sionista que levou à proclamação da independência era de esquerda, e Israel nasceu sob a promessa de se tornar um país inclusivo e igualitário.
Os sistemas de saúde e educação israelenses são públicos e os kibutzim (fazendas coletivistas) são inspirados no modelo soviético. Com o tempo, porém, a União Soviética e os países do bloco comunista passariam a fazer forte oposição a Israel.
Inimigos do regime soviético
A Guerra dos Seis Dias, em 1967, costuma ser apontada como o marco temporal da virada, embora o processo de afastamento já estivesse em curso. A Guerra Fria e o alinhamento de Israel com os Estados Unidos é que seriam as suas principais causas.
O sionismo passou a ser tratado nos meios intelectuais russos como inimigo do regime, e Israel como braço do imperialismo norte-americano no Oriente Médio. Os velhos estereótipos do período czarista foram reavivados e robustecidos pela polarização ideológica do mundo.
Em 1975, como resultado de um movimento orquestrado pela União Soviética e por países do bloco comunista, a ONU aprovou uma resolução que classificava o sionismo como uma forma de racismo. Estranhamente, o Brasil, cujo presidente era o general Ernesto Geisel (1974-1979), votou a favor dessa resolução.
Somente nos anos 1990 essa resolução seria revogada, com o reconhecimento de que o sionismo é um movimento legítimo orientado a concretizar o direito à autodeterminação do povo judeu.
Condenação constrangedora
Com o conflito em Gaza, deflagrado pelos ataques terroristas promovidos pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, houve um recrudescimento do antissemitismo em governos e partidos de esquerda mundo afora. Não se trata, por evidente, de considerar as críticas legítimas ao governo de Benjamin Netanyahu como manifestações antissemitas.
Mas a postura de tratamento discriminatório (ou duplo standard [dois pesos e duas medidas]) a Israel, quando comparada ao tratamento dado a outros países, revela um viés antissemita presente em parte da esquerda.
No terceiro governo do presidente Lula, alguns de seus próceres têm adotado posições que considero antissemitas. A hesitação inicial em classificar os ataques do Hamas como um atentado terrorista e em condenar de forma veemente a carnificina de bebês, crianças, jovens, mulheres (inclusive grávidas) e demais civis inocentes foi constrangedora.
Vale lembrar que este foi o pior ataque a judeus desde o Holocausto. Superada essa dificuldade, a anódina posição em relação à libertação dos reféns israelenses — tratados em condições bárbaras — e a imediata condenação da contraofensiva de Israel foram indícios de uma postura parcial do governo brasileiro.
Populismo exacerbado
Qualquer país atacado tem o direito de se defender e contra-atacar o autor das agressões, segundo o direito internacional. As perdas civis devem ser evitadas sempre que possível, embora por vezes sejam inevitáveis num cenário de guerra. A situação se agravaria muito tempo depois para uma crise humanitária, mas naquele momento ainda não.
Nada justifica, senão um populismo exacerbado, que o presidente do Brasil, àquela altura, comparasse a ação das Forças de Defesa de Israel ao que houve no Holocausto. Os nazistas mataram 6 milhões de judeus, sendo 4 milhões entre 1942 e 1945 — nada na História contemporânea se aproxima disso. Tampouco o presidente do Brasil poderia ter equiparado a ação terrorista do Hamas à contraofensiva israelense.
Outro exemplo de duplo critério foi a calorosa recepção dada por ele aos brasileiros de origem palestina resgatados de Gaza pela Força Aérea Brasileira, destoando da indiferença dispensada pelas autoridades do país aos judeus brasileiros trazidos de Israel. O resgate dos dois grupos foi, evidentemente, necessário e justo, mas o tratamento discriminatório me pareceu odioso.
Desprezo aos judeus
Ainda: a determinação da saída do Brasil da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA, na sigla em inglês) foi uma demonstração simbólica da posição antissemita do governo do presidente Lula.
Primeiro, porque a preservação da memória coletiva quanto à gravidade do Holocausto não deve ser condicionada a quaisquer críticas que governos possam fazer ao governo de Israel. Segundo, porque o combate ao antissemitismo — razão principal da existência da IHRA — também nada tem a ver com eventuais erros ou excessos cometidos por Israel num conflito armado.
Terceiro, porque a Constituição de 1988 estabelece, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o combate a todas as formas de discriminação, o que inclui o antissemitismo, como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal. Quarto, porque, como tento demonstrar, as definições de antissemitismo da IHRA não são vinculantes para seus membros, funcionando como fontes informativas que dialogam com o direito interno de cada país, de acordo com suas próprias opções legislativas.
Quinto, a ausência de uma motivação expressa e clara por parte do Itamaraty revela uma decisão arbitrária, desprovida de fundamento legítimo no plano do direito interno e internacional, inspirada, provavelmente, em razões subalternas de vindita política.
O que isso tem a ver com antissemitismo? Uma ação de Estado — num Estado democrático de direito, não numa autocracia — deve pautar-se pela razão pública. A democracia, como diria [o filósofo italiano Norberto] Bobbio, é o governo do interesse público, articulado em público.
Nesse caso, com o devido respeito, não há interesse público. Apenas desprezo a uma minoria — os judeus. Possivelmente porque, para as autoridades em questão, eles não importam.
Advogado e professor, Gustavo Binenbojm ficou conhecido por defender causas ligadas à liberdade de expressão no STF — entre elas a que liberou as biografias não autorizadas e a que derrubou a censura ao humor e à crítica jornalística em períodos eleitorais. O texto acima é um trecho do livro "Antissemitismo Estrutural", recém-lançado pela editora Intrínseca.
Conteúdo editado por: Omar Godoy






