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Harry Frankfurt
Filósofo Harry Frankfurt (1929-2023), em 2017.| Foto: American Council of Learned Societies (ACLS)

Faleceu no último domingo (16), aos 94 anos, o filósofo americano Harry Frankfurt, professor emérito de filosofia na Universidade Princeton. Ele dedicou sua carreira a temas como a análise de como as pessoas emitem falsidades, a conciliação da ideia de livre arbítrio com um universo governado por leis fixas, e — tema com garantia de ganhar menos menção nos obituários — o erro de se pensar que a desigualdade material é em si um problema.

No primeiro tema, Frankfurt alcançou fama com um livro de 2005, “On Bullshit” — em tradução livre, “Sobre o papo furado”. Sua análise do papo furado começou em um ensaio de 1986. Enquanto o mentiroso engana duplamente, ao trocar o sinal da verdade e ao fingir que acredita no que está dizendo, o emissor de papo furado busca impressionar com afirmações cuja veracidade ou falsidade simplesmente não lhe importa. O mentiroso se importa com a verdade o suficiente para invertê-la, o emissor de papo furado não se importa, sendo potencialmente mais imoral por minar o respeito pela verdade. A ideia tem consequências não apenas sociológicas e políticas, mas até neurobiológicas: o papo furado é uma forma de enganar que é menos custosa para o cérebro que a mentira.

No campo do livre arbítrio, Frankfurt fez uma contribuição à posição conhecida como “compatibilismo”: que é possível haver livre arbítrio (e responsabilidade) em um universo determinado por leis fixas. A posição contrária, o incompatibilismo, usa como um de seus argumentos o “princípio das possibilidades alternativas”: um agente é responsável por uma ação somente se tal agente pudesse ter feito diferente. Em 1969, o filósofo propôs contraexemplos em que um agente é responsável por suas ações ainda que não tenha liberdade de fazer diferente. Os contraexemplos ficaram notórios ao ponto de ganhar seu nome.

Frankfurt sempre foi discreto a respeito de suas posições políticas, de modo que não é fácil classificá-lo com os rótulos comuns. Em 2015, ele voltou seu arsenal analítico, em um livro curto (“On Inequality”, trad. livre “Sobre a desigualdade”), contra uma ideia que pode ser considerada um pilar sustentador de toda a visão de mundo de esquerda, progressista ou socialista: o combate à desigualdade.

Com clareza característica, Frankfurt rejeitou categoricamente “o pressuposto de que o igualitarismo, de qualquer variedade, seja um ideal com qualquer importância moral intrínseca”. Isso não significa que ele estivesse inclinado a endossar ou a ser indiferente a desigualdades prevalentes, explicou. Porém, o real problema a ser combatido é a pobreza. Em outras palavras, até o ponto em que devemos intervir na organização da sociedade, isso deve ser feito para que as pessoas tenham o suficiente para viver, e não para que suas rendas ou condições sejam uniformizadas, equalizadas. Afinal, a desigualdade de renda entre Gisele Bündchen e Mark Zuckerberg é gigantesca, mas, apesar de tanto papo furado a respeito dos males da desigualdade, ninguém se importa com isso.

Como diversas pesquisas empíricas mostram que o fator que realmente tira as pessoas da pobreza e eleva o desenvolvimento humano (não apenas o econômico) é a liberdade econômica, não necessariamente favores do Estado, Frankfurt, mesmo que possivelmente a contragosto, por pura empreitada analítica imparcial, se afastou da esquerda, que insiste que é papel do Estado reduzir ou eliminar desigualdades. Como dizia o filósofo britânico Sir Roger Scruton, se a meta da esquerda é combater a desigualdade, isso gera uma pergunta irrespondível: “como é que pararemos os ambiciosos, os enérgicos, os inteligentes, os belos e os fortes de ficarem na frente, e o que devemos nos permitir fazer para pará-los?”

Sem Harry Frankfurt, o mundo perde um de seus ambiciosos, enérgicos e inteligentes.

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