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Fantástico Circo e Safari Encantado: linhas de cosméticos consideradas “em desconformidade com a lei” pelo Ministério Público de Minas Gerais.
Fantástico Circo e Safari Encantado: linhas de cosméticos consideradas “em desconformidade com a lei” pelo Ministério Público de Minas Gerais.| Foto: Reprodução/ Facebook

Depois de o Ministério Público da Bahia causar revolta com a decisão de impor uma dieta vegana para crianças da rede pública de ensino de Serrinha, região pobre do estado, agora é a vez de o Ministério Público de Minas Gerais usar seu poder para impor uma visão muito particular de mundo.

Dia 11 de novembro, os promotores de Justiça Júlio César Luciano e Luciana Imaculada de Paula orgulhosamente assinaram um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com a empresa de cosméticos Granado, com sede no Rio de Janeiro. O problema é que, de acordo com os promotores, reagindo a uma denúncia do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal e do Movimento Mineiro dos Direitos dos Animais, as embalagens de duas linhas de cosméticos da empresa estavam em desconformidade com duas leis.

As leis em questão são a Lei Estadual nº 21.159/2019 e a Lei Federal 5.197/67. A primeira proíbe a prática circense que submeta espécies animais a abusos e maus-tratos. A segunda é a que proíbe a caça, “incluindo o safari”, no território nacional.

A embalagem da primeira linha de cosméticos, chamada “Fantástico Circo”, mostra, com uma estética e tipografia típicas do fim do século XIX, um circo. Em primeiro plano, há um palhaço e uma dançarina. No canto esquerdo da embalagem, vê-se um simpático elefante se equilibrando sobre uma bola vermelha. Como isso configura “prática circense que submeta espécies animais a abusos e maus-tratos” é um mistério.

Já a embalagem da segunda linha, chamada “Safari Encantado”, consegue a proeza de ser ainda mais prosaica. Em primeiro plano, vê-se um carrossel com alguns animais típicos da savana: um elefante, um leão e uma girafa. Na lateral, há o desenho de uma roda-gigante, um pipoqueiro dando pipoca para uma menina e um casal que admira inocentemente o carrossel. Mas não consta que nenhum elefante, leão ou girafa tenha sido caçado para figurar na caixa de perfume.

Nos termos do TAC, a Granado se comprometeu a não vender os cosméticos das linhas Fantástico Circo e Safari Encantado em Minas Gerais e a não fazer publicidade dos produtos com essas ilustrações. Mas não só isso. A empresa deve manter, por seis meses, “materiais de conscientização sobre a importância do apoio às causas de proteção animal”.

O acordo envolve ainda dinheiro, claro. A Granado terá de pagar R$55 mil em reparações indiretas – R$20 mil apoiando um projeto de educação ambiental direcionado a alunos do ensino infantil e fundamental e o restante (R$35 mil) na forma de “doação” à ONG Asas e Amigos da Serra, na região metropolitana de Belo Horizonte.

Procurados para explicar a aplicação draconiana (e bastante questionável) das leis, os promotores não responderam aos pedidos de entrevista. Também procurada para comentar o caso, a Granado não respondeu à reportagem.

Os limites do TAC

Num artigo em que fala sobre os limites de atuação do Ministério Público e dos Termos de Ajustamento de Conduta, o jurista Leonel Costa diz que o TAC “é meio excepcional de transação, somente cabível nos casos expressamente autorizados pela lei, com o intuito de permitir ao potencial agressor de atender e se adequar ao interesse tutelado” e alerta para o uso indevido do instrumento legal, que pode ferir a liberdade individual, de trabalho, de livre exercício da atividade econômica e a liberdade de pensamento.

No artigo, o jurista expressa o temor de que os TACs deem ensejo a “idiossincrasias pessoais” por obrigarem uma das partes a assinar um acordo “sob a ameaça de processo judicial para cobrança de obrigações de fazer, não fazer e multas”. Ou seja, ele teme que o TAC possa servir como instrumento de coação do Estado contra empresas e indivíduos.

Costa cita outro caso em que o Ministério Público usou o TAC de forma no mínimo questionável. Em 2007, o Ministério Público Federal assinou um acordo com a Federação Espírita Brasileira exigindo que as publicações da editora viessem com uma nota de esclarecimento sobre o potencial “conteúdo discriminatório ou preconceituoso” das obras.

“Questiono até que ponto o referido acordo estaria carregado de subjetividade e uma axiologia particular e o quanto ainda invadiria a liberdade de criação do autor, o direito editorial, sem se falar ainda da liberdade de pensamento e de manifestação e qual seria, de forma concreta, o interesse difuso ou coletivo a merecer regulação, proteção ou prevenção”, escreve o jurista.

Em outro caso mencionado pelo autor, uma empresa de eventos teve de assinar um TAC e pagar multa por não ter instalado câmeras numa “rave”. A ideia era que as câmeras desestimulassem o uso de drogas e outras práticas ilícitas no lugar da festa. O problema é que, sob o mesmo pretexto, o Ministério Público poderia exigir a instalação de câmeras em ambientes privados como quartos de hotéis e motéis, se transformando, assim, num verdadeiro “Big Brother”.

Questões

Muitas questões além do poder aparentemente ilimitado do Ministério Público envolvem o TAC assinado entre a instituição e a empresa de cosméticos. A primeira delas diz respeito à própria legitimidade do acordo. Afinal, para que haja medidas de reparação, supõe-se que alguém tenha se sentido de alguma forma prejudicado pelos desenhos. Mas como um desenho estilizado de animais pode prejudicar os animais de verdade, a fauna, o meio ambiente? Seguindo este raciocínio, o desenho animado Dumbo, um clássico da Disney, também deveria ter sua exibição proibida?

Da mesma forma, como o uso de uma palavra – safari – pode se transformar na ação em si? E como a palavra impressa num rótulo de perfume para evocar não a matança de animais selvagens, e sim certo cenário até idílico, com um quê de “pureza natural”, pode ser considerada nociva a quem cometa a ousadia de comprar o perfume por causa daquele simpático leão ali retratado?

Vamos abolir, então, a palavra “safari” do dicionário, ignorando que um dos significados dela é “expedição de observação de animais selvagens”? Na esteira dessa medida extrema, proibiremos também as agências de vender pacotes de viagens para a África do Sul que incluam a observação dos animais selvagens?

Em nome da coerência, o Ministério Público de Minas Gerais, reagindo a uma denúncia sem qualquer fundamento de uma entidade qualquer, pode também pedir a retirada de circulação dos romances de Ernest Hemingway (um famoso defensor da caça a animais selvagens como símbolo da masculinidade), bem como a destruição dos quadros de Toulouse Lautrec e das litografias de Marc Chagall.

Quanto ao aspecto mais econômico da medida, que impacto ela pode ter do ponto de vista da empresa? Afinal, a elaboração de uma embalagem implica custos muito maiores do que os R$55 mil pagos como reparação por danos abstratos. Como isso afeta até mesmo o processo criativo dos publicitários, receosos de usar qualquer imagem e até mesmo palavras capazes de ferir suscetibilidades?

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