• Carregando...
A imagem engana: o que parece assédio quase custou a carreira de um inocente | Reprodução
A imagem engana: o que parece assédio quase custou a carreira de um inocente| Foto: Reprodução

Antes de mais nada, assista ao vídeo abaixo. 

A imagem não deixa dúvidas do que está acontecendo, certo? É um homem, usando a expressão vulgar, “passando a mão” na repórter Fabíola Faria Andrade, da TV Globo. 

Foi assim que este vídeo foi compartilhado nas redes sociais: como um caso de assédio horrível, agravado pelo fato da repórter estar trabalhando, concentrada, e pelo autor estar tão ciente da impunidade que não se importou em praticar o ato na frente de um estádio inteiro, cheio de testemunhas e câmeras, como a que registrou o momento acima. 

Gravado durante a partida entre Corinthians e Vasco do último sábado (17), pelo Campeonato Brasileiro, o vídeo provocou reações fortes. 

O perfil oficial do Corinthians se manifestou afirmando que “se solidariza com a repórter Fabíola Faria Andrade, vítima de assédio (...)”. O perfil do Movimento Deixa Ela Trabalhar, que reúne jornalistas esportivas que lutam contra o machismo e o assédio, também se apressou a manifestar “profunda indignação” pelo ocorrido. 

Um jornal carioca chegou a publicar uma matéria com o título “Vídeo mostra momento em que repórter da Globo teria sido vítima de assédio”. Outro site publicou: “Repórter da Globo sofre assédio de colega da emissora ao vivo; confira o momento”.

A eles juntaram-se milhares de anônimos, todos igualmente indignados, certos de que estavam ao lado do bem, compartilhando, curtindo e replicando o vídeo pela internet. 

Só havia um pequeno problema no linchamento virtual do assediador. Não houve assédio. 

Veja, com calma, este outro vídeo. 

Nele é possível perceber que o “monstro assediador” na verdade está segurando os cabos para a repórter trabalhar. É comum essa função em qualquer transmissão esportiva. Ele está lá para evitar que a repórter, na confusão que é cobrir uma partida ao vivo, tropece nos cabos do microfone ou da câmera. 

O vídeo ainda não é conclusão suficiente? A própria Fabíola Andrade afastou a hipótese de assédio em sua conta no Facebook, de forma bastante enfática. 

“Conversei com o meu colega que trabalha comigo há cinco anos. Ele me procurou várias vezes hoje. Pra mim não aconteceu assédio ou abuso. Ele estava manuseando o cabo de áudio que fica preso à minha roupa durante a transmissão, situação comum em dias de jogos”, esclareceu. 

A TV Globo e a Sportv também se manifestaram, afirmando que as imagens foram analisadas com cautela, por vários ângulos, e mostraram que não houve assédio. 

A conta oficial do Corinthians se retratou.

Este foi um final relativamente feliz para uma história que poderia ter acabado bem pior, seja com a demissão injusta do profissional ou até um linchamento real. 

A disseminação de histórias falsas já arruinou vidas antes no Brasil, em graus variados. A enfermeira gaúcha Adriana Klein, de 44 anos, foi vítima de uma corrente de Whatsapp que a caracterizava como traficante de órgãos e assassina de crianças, conforme mostra esta reportagem da BBC

A postagem trazia os nomes dela, do namorado, a marca de seu carro, a identificação das placas e até o endereço de sua residência. Sua casa foi apedrejada. Ela ficou abalada e teve que sair temporariamente da cidade onde mora. Seu namorado precisou se ausentar do trabalho e tiveram que parar de usar o carro, identificado nas mensagens mentirosas. 

A pessoa que inventou a mentira e usou informações privilegiadas para prejudicar Adriana Klein certamente sabia que estava praticando algo errado quando inventou que a enfermeira era traficante de órgãos. Mas as pessoas que passaram adiante a mensagem falsa o fizeram imbuídos de um bom sentimento. O mesmo se aplica ao episódio de assédio: quem viu o vídeo e compartilhou estava movido por uma indignação justa. 

Por que, então, os resultados poderiam ser tão danosos? Por que pessoas boas compartilham conteúdo sem comprovação? 

Leia maisCinco linchamentos que revelam a era do ódio virtual 

Em um país com mais de 60 mil homicídios por ano, milhares de outros crimes graves como roubos e estupros, e uma taxa de resolução de crimes abaixo dos 10%, mesmo quando se trata de homicídios, o contrato social vale muito pouco para uma extensa parcela da população. 

O contrato social é o acordo tácito entre os cidadãos e o Estado pelo qual aceitamos limitar nossas liberdades e entregar uma substancial parte do que ganhamos para que a sociedade viva em paz. Nós pagamos impostos e o governo nos protege dos marginais e de ameaças estrangeiras, resumindo. 

A crise na segurança pública brasileira faz com que a população não se sinta protegida pelo Estado, que, no entanto, continua abocanhando todo mês uma enorme fatia do salário de todos. Com o contrato social em frangalhos, a população não hesita em fazer justiça com as próprias mãos. 

Nossas convicçõesO Estado de Direito

Nem sempre, como mostram os dois casos relatados anteriormente, é preciso que o linchamento chegue às vias de fato, para provocar danos permanentes. Ambos guardam uma coisa em comum. Todos que procuraram fazer justiça por conta própria desprezaram outro fator importante do contrato social: o Estado de Direito. 

Vamos supor que nos exemplos desta matéria os acusados fossem realmente culpados. Mesmo que fosse o caso – é bom deixar claro que não é – eles teriam direito a todo o processo legal: conhecer a acusação, ter direito à defesa e a um julgamento justo e receber uma pena proporcional ao crime cometido. 

Leia maisLinchamentos: quando a população vira júri, juiz e executor 

Passemos a outros dois acontecimentos. No Maranhão, no município de Feira Nova, a mais de 700 quilômetros da capital do estado, São Luiz, uma idosa de 106 anos de idade foi assassinada a pauladas dentro de casa. A polícia local suspeita de latrocínio — foram levados R$30 da vítima. 

Em São Paulo, no dia 10, o médico Roberto Kikawa, de 48 anos, que dedicou a vida à saúde da população carente, foi morto com dois tiros durante um assalto

Num país em que tragédias assim se repetem com frequência diária, a população fica cada vez mais descrente no processo legal, no Estado de Direito e, por fim, na própria democracia. 

Não se trata da população ser fascista ou ter uma tendência natural para gostar de ditaduras, longe disso. É uma reação natural: o cérebro possui estruturas que reagem de forma instintiva à violência e provocam angústia e revolta. 

Mas é preciso que as pessoas saibam que soluções duradouras não são obtidas à revelia da lei. Caso contrário, pessoas boas podem se tornar agentes e promotoras de mais injustiças além das quais convivemos diariamente.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]