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Lei Seca

O dia em que o Estado matou cidadãos com álcool envenenado 

Caso do metanol em bebidas remonta a episódio trágico da história americana.
Caso do metanol em bebidas remonta a episódio trágico da história americana. (Foto: IMAGEM CRIADA UTILIZANDO O GOOGLE AI/GAZETA DO POVO )

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Foi preciso morrer gente. Muita gente. Estima-se algo em torno de 10 a 50 mil pessoas ao longo de 13 anos de Proibição. Só assim os Estados Unidos conseguiram manter, perante a opinião pública, a ilusão de que estavam salvando a pátria do pecado líquido chamado álcool. 

De 1920 a 1933, período em que vigorou a chamada Proibição, o governo norte-americano não hesitou em adotar medidas drásticas para impedir que as pessoas deixassem de consumir álcool. E, num esforço desesperado para conter a ação dos usuários, mandou envenenar os cidadãos. 

Proibição 

A tragédia, escondida sob o verniz moralista da Proibição, volta a assombrar hoje, quando brasileiros tombam vítimas de bebidas batizadas com metanol. Desta vez, porém, o assassino não é o Estado oficial, e sim o Estado paralelo que controla boa parte do território brasileiro e que está infiltrado em vários setores da economia: o crime organizado.

Durante a Proibição (1920–1933), o governo federal decidiu transformar o álcool industrial numa armadilha para pegar os que ousassem contrariar as ordens do Estado. Para evitar que o álcool fosse transformado em bebida clandestina (uísque, gin, etc.), as autoridades ordenaram que ao álcool industrial fossem acrescentados aditivos tóxicos. 

Festa proibida 

Esse álcool envenenado circulava facilmente porque os contrabandistas, o equivalente hoje às grandes facções criminosas, como o PCC, tinham redes eficientes de distribuição e um público consumidor ávido, disposto a arriscar a própria vida em nome de uma festa proibida.  

Para se ter uma ideia da reprobabilidade da ideia, imagina se hoje o Estado brasileiro decidisse acrescentar cianureto ao crack consumido nas grandes cidades. Pois foi mais ou menos isso o que aconteceu nos Estados Unidos de cem anos atrás.

Observados por representante da polícia, funcionários jogam álcool no esgoto durante a era da Proibição em Nova York.Observados por representante da polícia, funcionários jogam álcool no esgoto durante a era da Proibição em Nova York. (Foto: Reprodução/Library of Congress)

Traficantes de álcool 

Ao perceberem a ação do governo, porém, os bootleggers (como eram chamados os “traficantes de álcool” daquele tempo) contrataram químicos que descobriram como remover parte das impurezas. Foi então que o Tesouro Norte-Americano teve a brilhante ideia de piorar a mistura: quatro partes de metanol, 2,25 de piridina e 0,5 de benzeno para cada cem partes de etanol. Um coquetel mortal. 

Em Nova York, o médico-legista Charles Norris foi um dos poucos a dizer o óbvio: aquilo era assassinato com selo oficial. “O governo sabe que não está impedindo ninguém de beber ao colocar veneno no álcool”, alertou. “Mesmo assim, continua envenenando, ignorando o fato de que pessoas determinadas a beber estão diariamente absorvendo esse veneno.” A experiência, chamada não-ironicamente de “Noble Experiment”, resultou em até 10 mil mortos até o fim da Lei Seca. Há fontes que falam em 50 mil mortos. 

Pedagogia do terror 

Norris, aliás, chegou a publicar relatórios oficiais denunciando que o governo agia com dolo, pois já havia provas de que a medida não diminuía o consumo. Ainda assim, Washington preferiu manter a política, apostando que o medo da morte substituiria o gosto pelo álcool. Uma aposta evidentemente fracassada. 

Bill Bryson, no estupendo livro Um Verão: América, 1927, descreve os Estados Unidos daquela época cheia de contradições. Enquanto nas grandes cidades os arranha-céus subiam, Lindbergh (não o Farias) cruzava o Atlântico e Babe Ruth enchia os estádios de beisebol, cidadãos comuns caíam mortos depois de alguns goles. Era a pedagogia do terror travestida de política pública. 

Fortalecimento do crime 

Ao mesmo tempo em que o Estado matava seus cidadãos em nome de uma sobriedade obrigatória, gangues como a de Al Capone enriqueciam com o comércio clandestino, comprando juízes, policiais e políticos (qualquer semelhança com as facções criminosas de hoje não é mera coincidência) e transformando Chicago em capital mundial do contrabando. O álcool envenenado, paradoxalmente, não enfraqueceu o crime; pelo contrário, só deu mais poder aos bandidos. 

Quase cem anos mais tarde, a história se repete, com sotaque brasileiro e enredo mais previsível: o Estado paralelo que controla boa parte do território nacional envenena bebidas para ampliar lucros. Segundo dados oficiais, ao menos cinco pessoas morreram e mais de 20 foram hospitalizadas em 2025 depois de ingerir cachaça e outras bebidas contaminadas com metanol. 

Assinatura do crime 

A diferença está na assinatura do crime. Nos anos 1920, foi o Estado americano quem decidiu arriscar a vida de seus cidadãos em nome de um ideal moral. Hoje, é o PCC quem transforma álcool em veneno a fim de maximizar os lucros. Mas a semelhança é desconfortável: em ambos os casos, vidas são tratadas como dano colateral, seja para sustentar o sermão puritano, seja para turbinar o caixa da facção. 

Tanto lá quanto cá, a população mais pobre é a que paga o preço: nos Estados Unidos, eram os trabalhadores que compravam o álcool barato envenenado. No Brasil de 2025, são consumidores de baixa renda que buscam bebida acessível em mercados e botecos. Estima-se que o litro da cachaça adulterada pelo PCC custava menos da metade de uma garrafa regular. 

Morto pelo Estado 

Há, claro, uma lição moral embutida em toda tragédia. A Proibição mostrou que políticas públicas não podem ignorar a natureza humana: quem quer beber sempre dá um jeito de beber. E o Brasil de hoje mostra que a ausência do Estado é tão letal quanto sua ação equivocada. De um lado, o governo que matou cidadãos em nome da virtude. Do outro, o crime que, diante da omissão do Estado, mata em nome do lucro. 

Por isso, lembrar da experiência americana não é capricho histórico, e sim uma advertência urgente. O álcool envenenado da Proibição foi uma lição amarga que custou milhares de vidas. O álcool envenenado pelo PCC é a prova de que não aprendemos nada. Continuamos a viver sob regimes — legais ou ilegais — que flertam com a morte como se fosse política pública. Enquanto isso, a cada gole clandestino, brasileiros arriscam repetir, no presente, o epitáfio de uma das vítimas da ação do governo norte-americano em 1927: aqui jaz um cidadão morto pelo Estado. 

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