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Desde 2015, o Ministério da Saúde estima que os recursos destinados a tratamentos por ordem judicial no Brasil vêm superando sucessivamente a marca do bilhão de reais | Pixabay
Desde 2015, o Ministério da Saúde estima que os recursos destinados a tratamentos por ordem judicial no Brasil vêm superando sucessivamente a marca do bilhão de reais| Foto: Pixabay

O caso do menino Bernardo Fantin de Souza, 2 anos, cuja família lutou na Justiça para obter direito a uma medicação cara, reacendeu um velho debate no Brasil: até onde o Estado pode ir para garantir tais tratamentos? Portador do tipo mais severo de atrofia muscular espinhal, doença degenerativa incurável, Bernardo pode ter os sintomas aliviados com o Spinraza – ela é uma “droga órfã”, nome que se dá aos medicamentos produzidos por um único laboratório no mundo e, por ser escassa, também é caríssima: o tratamento custará R$ 3 milhões ao ano. 

Desde 2015, o Ministério da Saúde estima que os recursos destinados a tratamentos por ordem judicial no Brasil vêm superando sucessivamente a marca do bilhão de reais. Para muitas famílias, é o único caminho para obter acesso às drogas que não estão na lista do Sistema Único de Saúde (SUS) e que não seriam oferecidas normalmente aos pacientes. O problema é que, geralmente, os gestores dos recursos públicos acabam sendo pegos de surpresa e, diante da nova obrigação, retiram dinheiro de outros setores. 

Dilema ético

O que ocorre, apontam os críticos desse modelo, é uma versão real do famoso dilema ético do bonde: aquele segundo o qual é preciso escolher, em uma encruzilhada, se os vagões atropelam apenas uma pessoa, de um lado, ou cinco, do outro. Neste caso, os prejudicados pela escolha que salva um seriam centenas – privados de medicamentos e tratamentos pela súbita falta de recursos ocasionada por uma liminar milionária a favor de um paciente com uma doença grave. 

“As famílias que fazem isso estão no seu direito. Se o sistema em jogo dá essa opção, é a alternativa que elas têm”, admite o economista Rodrigo Constantino, conhecido por seu ponto de vista liberal. 

“O problema é a própria existência de um sistema assim, e a forma como essa discussão é feita: nunca se pensa de forma racional. O debate é sempre baseado nas emoções, numa discussão que lembra o título do livro de Noam Chomsky – ‘O Lucro ou as Pessoas’, como se fosse essa a dicotomia”, entende. 

Para Constantino, o que se faz é uma discussão baseada nas emoções, que leva a sociedade a ignorar os problemas gerados por um sistema assim. 

“São feitas campanhas com a imagem das crianças doentes, por exemplo. As pessoas veem a imagem daquele paciente que está em estado grave, às vezes terminal, e se comovem. E ninguém vê as centenas de outros que também podem morrer justamente porque aqueles recursos faltaram”, aponta. 

“Em um sistema assim, todos eles estão sendo prejudicados enquanto ajudam a pagar a salvação daquele outro paciente”. 

Dividir a conta

Nos Estados Unidos, onde a discussão não se resume aos tratamentos raros, mas à própria existência de um sistema de saúde público para as intervenções mais simples (reduzindo a atual necessidade de um seguro), os argumentos são similares.

“Oferecer tratamentos de saúde gratuitos não é o trabalho do governo”, defende Paul Hsieh, médico americano e consultor da revista Forbes para questões de saúde. “O governo deve defender o direito dos cidadãos de entrar em grupos de seguros mais interessantes às suas necessidades”, diz Hsieh. 

Ou seja: dividir a conta apenas entre aqueles dispostos a pagá-la ao entrar em determinado tipo de seguro, não entre toda a sociedade. 

A difícil polêmica, evidentemente, não tem uma resposta definitiva. No caso brasileiro, defensores do caminho judicial apontam que este é um caminho moroso que só é tomado pelas famílias por ser, efetivamente, a última alternativa possível – seja por demandarem medicamentos ainda não disponíveis no Brasil, como no caso de Bernardo, ou por exigirem tratamentos que o SUS não oferece, por ainda estarem em estágio experimental ou (no caso de medicamentos) por dependerem da demorada aprovação da Anvisa. Com frequência, quem inicia um processo do tipo são famílias de baixa renda se valendo dos serviços de uma defensoria pública. 

“Ninguém quer que seu filho fique doente. Ninguém quer ter de encarar a morosidade do judiciário. Mas, muitas vezes, é só o que pode ser feito para salvar a vida de alguém que se ama”, defende Erica Vitorino, coordenadora da Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves (AFAG), entidade que assessora pacientes que buscam tratamento na Justiça. 

Vitorino lembra que o processo, como um todo, é muito demorado – antes de ser iniciado, é preciso receber uma negativa formal do SUS, mesmo quando já se sabe de antemão que o tratamento não está disponível. Depois, além da lentidão do Judiciário, é preciso conviver com o risco das decisões serem modificadas ao longo do caminho, interrompendo o tratamento sem aviso prévio. 

“Em média, esse valor que pega os governantes ‘de surpresa’ equivale a menos de 3% do orçamento anual de saúde. É uma ‘surpresa’ que não seria nem mesmo sentida se não houvesse tantos desvios, ou se houvesse menos publicidade estatal”, argumenta Erica Vitorino. Em 2016, o orçamento do Ministério da Saúde foi de cerca de R$ 118,4 bilhões. O gasto estimado com tratamentos por ordem judicial foi R$ 1,6 bilhão.

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