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O livro de Orwell que causou alvoroço na esquerda — e mudou a vida de Jordan Peterson
| Foto: EFE/Ernesto Mastrascusa

Em tempos de “guerra cultural”, direita e esquerda tentam tomar Orwell para si. O que não é nada fácil: o autor sempre se confessou socialista convicto, inclusive combatendo no lado socialista da Guerra Civil Espanhola. Ao mesmo tempo, seu clássico 'Revolução dos Bichos' é uma crítica violenta ao comunismo soviético, e em '1984' é a ideologia do “ingsoc” (socialismo inglês) que gerou um regime totalitário, violento e mentiroso. E não é possível esquecer — afinal ele mesmo deixou por escrito em seu livro 'Homenagem à Catalunha' — que deixou a Guerra Civil Espanhola após sua facção ser criminalizada e perseguida pelos comunistas durante as Jornadas de Maio, em 1937.

Socialista contrário ao stalinismo, por princípios e pela força das circunstâncias, Orwell não cabe perfeitamente em nenhum dos lados. Mas o que talvez surpreenda a muitos é o fato de seu livro mais político, 'Viagem ao cais de Wigan', ser considerado por ninguém menos que Jordan Peterson como uma das leituras mais importantes de sua vida. Livro escrito em grande medida como uma defesa do socialismo.

O Clube do Livro de Esquerda e sua recepção

As próprias circunstâncias em que o livro foi escrito, lá em 1936, já deixavam antever as dificuldades da esquerda com Orwell. Após o autor concluir o romance 'Keep the Aspidistra Flying', o editor Victor Gollancz propôs o projeto de um livro para seu Clube do Livro de Esquerda. A ênfase deveria ser na realidade social dos trabalhadores de minas de carvão no norte da Inglaterra, grande polo industrial.

Orwell topou o projeto, abandonou o emprego de meio período em uma livraria e passou dois meses vivendo com as classes mais baixas da Inglaterra, em abril e maio de 1936. Retornou em 2 de junho, quando então começou a trabalhar no livro, cujo original seria entregue para Victor em dezembro. Não deixou de cumprir o objetivo principal da obra: há ali um trabalho da melhor literatura jornalística e documental. Misto de crônica e memória, o retrato que Orwell faz é desolador e ao mesmo tempo de enorme talento.

Mas esta é apenas a primeira das duas partes em que se divide o livro. Na segunda parte, a partir de suas memórias como filho da “parte baixa da classe média alta” e seu tempo como policial do Império Britânico na Birmânia, Orwell explica os motivos que o levaram a abraçar o socialismo. É um testemunho e profissão de fé no socialismo, mas, curiosamente, Victor Gollancz a princípio não quis publicar essa parte. Fez apenas pela insistência de Eileen, esposa de Orwell, e seu agente, uma vez que o autor estava lutando na Espanha.

Acabou publicando o livro em março de 1937, mas fazendo um prefácio do editor contemporizando algumas das coisas escritas na parte II. Por que tanto receio da parte do editor? Qual o problema em uma defesa do socialismo em livro publicado pelo Clube do Livro de Esquerda?

Ataques aos esquerdistas

O problema era justamente a sinceridade do socialismo de Orwell. Perguntando-se os motivos para a ideologia não ter um apelo maior entre as classes mais baixas, não poupa críticas aos esquerdistas do seu tempo, segundo ele os principais culpados pela não adesão dos operários às ideias de esquerda. Sem papas na língua, escreveu coisas do tipo:

“Às vezes olho para um socialista — aquele tipo intelectual, que escreve panfletos, com seu pulôver, cabelo desarrumado e citações de Marx — e fico me perguntando qual, raios, é sua verdadeira motivação. É difícil acreditar que seja o amor por qualquer um, menos ainda pela classe operária, da qual ele está mais distante do que qualquer outra pessoa.

O homem da classe média, o eleitor do Partido Trabalhista e o barbudo natureba são todos a favor da sociedade sem classes desde que vejam o operário do outro lado de um telescópio; obrigue-os a qualquer contato real com um trabalhador — coloque-os para brigar com um estivador bêbado sábado à noite, por exemplo — e eles irão voltar, de quatro, para o típico esnobismo da classe média”.

Gollancz imaginou que aquilo talvez não “pegasse bem” com seus leitores (muitos deles cabiam perfeitamente nas descrições de Orwell), por isso precisou “desculpar-se” pelas palavras do autor. De fato, chegou a fazer uma edição do livro sem a segunda parte em maio de 1937, como “divulgação publicitária”; pelo que podemos deduzir que ele não considerasse essa parte do livro a melhor das publicidades para seu público...

Orwell só veria o livro pela primeira vez em maio de 1937, em Barcelona de licença da linha de frente, na mesma época dos conflitos de sua facção com a ala comunista. Na ocasião, escreveu agradecendo a Gollancz pelo prefácio, muito educado, embora tenha dito que, naturalmente, poderia rebater suas críticas. Anos mais tarde, teceria críticas ao prefácio para sua segunda esposa, Sonia.

Esquerdistas que não gostam de pobres

A questão essencial para Orwell é que seu socialismo está intimamente ligado a estar ao lado dos pobres. Pessoalmente. Após sua experiência como policial do Império na Birmânia, quis ser, acima de tudo, um anti-imperialista. Ele mesmo conta no livro:

“Sentia que precisava escapar não apenas do imperialismo mas de toda forma de dominação sobre o homem. Desejava submergir, estar bem no meio dos oprimidos, ser um deles e estar ao lado deles contra os tiranos. [...]. Foi assim que meus pensamentos se voltaram para a classe trabalhadora inglesa. Era a primeira vez que eu estava mesmo consciente da classe trabalhadora, e isso porque eles serviam de analogia. Eram as vítimas simbólicas da injustiça, fazendo na Inglaterra o mesmo papel dos nativos na Birmânia. [...]. Agora eu percebia que não era necessário ir até a Birmânia para encontrar tirania e exploração. Aqui na Inglaterra, debaixo de nossos pés, estava a classe operária, sufocada, padecendo de males que, à sua maneira, eram tão ruins quanto os que so­friam os orientais”.  

Por isso, chegou a um momento em que resolveu arrumar roupas surradas e ir até pensões, vagar pelos lugares onde estavam a classe operária. E graças a essa experiência, na primeira parte de 'Viagem ao cais da Wigan' não faltam descrições minuciosas dos cortiços em que vivem os trabalhadores (os que conseguiam um teto: havia uma terrível crise de moradia); a rotina terrível de um minerador de carvão, trabalhando vários quilômetros debaixo da terra, coberto de fuligem horas a fio em circunstâncias perigosíssimas; pesquisa detalhada a respeito de sua renda, seus gastos e sua dieta, com muito menos do que o necessário para conseguir se alimentar dignamente; tudo isso embasado em fontes primárias. Há trechos memoráveis, como a visão de uma moça, assolada pelo frio, enquanto precisava desentupir um cano no exterior de sua casa paupérrima:

“Tinha um rosto pálido e redondo, o rosto exausto, comum da moça de periferia que tem vinte e cinco anos e cara de quarenta por conta das gestações perdidas e trabalhos excessivos; e mostrava, naquele segundo em que pude vê-lo, a expressão mais triste e desesperada que eu já vi na vida. [...] O que eu vi em seu rosto não era o sofrimento ignorante de um animal. Ela entendia bem o que lhe acontecia — compreendia tão bem quanto eu o quão horrível era estar destinada a ficar ali, de joelhos no frio implacável, em um chão pedregoso nos fundos de uma favela, enfiando um pau num cano de esgoto imundo”.

Pôde escrever isso pois viveu com eles, e para Orwell tal experiência era fundamental. Daí sua rejeição ao típico intelectual esquerdista, tão flagrante: sabia que muitos membros dos partidos de esquerda eram abastados que no fundo não queriam contato com os pobres. E tudo isso está explícito na segunda parte do livro:

“Lembro do meu sentimento de terror na minha primeira reunião na sede do ILP [Independent Labour Party - partido trabalhista independente britânico] em Londres. [...]. Lembro de pensar comigo mesmo: ‘são essas criaturinhas sovinas os campeões da classe operária?’ Pois cada pessoa lá, homem ou mulher, ostentava os piores estigmas do esnobismo da classe média alta. Se um verdadeiro trabalhador, um mineiro sujo vindo do poço, por exemplo, aparecesse de súbito ali, eles provavelmente ficariam constrangidos, nervosos e com nojo; alguns, imagino, tapariam o nariz”.

Seu desprezo por esse tipinho era consequência do seu sincero respeito pelos trabalhadores.

O depoimento de Jordan Peterson

Uma defesa do socialismo que atacou aos socialistas, esse livro não facilita a vida daqueles que pensam a realidade de forma ideológica. E é justamente isso que foi tão importante para a trajetória de Jordan Peterson.

O psicólogo, famoso por suas críticas ao progressismo atual, lista o livro em seu site oficial como uma das leituras que o influenciaram. E já disse publicamente que, na faculdade, foi o livro que “pôs abaixo não apenas minha ideologia socialista, mas minha fé nos posicionamentos ideológicos em si”.

O encontro do livro em seus tempos de universitário se deu justamente na época em que Peterson dividia quarto com um colega de faculdade, que definiu como “um cínico perspicaz”, sempre cético às crenças ideológicas que Peterson tinha na época. Por conta das conversas com o colega, o livro naquele momento, segundo o psicólogo, “me derrubou de vez”.

Para ele, o último capítulo da segunda parte foi o momento decisivo: “Orwell diz essencialmente que os socialistas, no fundo, não gostam dos pobres. Eles tão-somente odeiam os ricos. A ideia me atingiu em cheio. A ideologia socialista servia para mascarar o ressentimento e o ódio gerados pelo fracasso. Muitos dos ativistas do partido que eu conhecera estavam usando os ideais de justiça social para racionalizar sua busca por vingança pessoal”.

Defesa do socialismo que não se dá por vias ideológicas, mas por meio das memórias de um encontro real com os pobres e uma sinceridade selvagem, 'Viagem ao cais de Wigan' incomoda até hoje, como a leitura de Peterson bem demonstra. O livro acaba de ganhar nova tradução pela Vide Editorial.

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