Bertrand Russell afirmou que jamais daria a vida por suas convicções, pelo simples fato de que poderia estar enganado. Pode parecer apenas uma frase de efeito de um dos maiores pensadores britânicos do século 20 – aliás testemunha engajada de diversos acontecimentos da história contemporânea, bastando citar o Tribunal Internacional de Crimes de Guerra que ele coordenou, nos anos 1960, com a participação da elite intelectual da época. Mas a frase é mais profunda do que parece.
É claro que existem ideias pelas quais vale a pena lutar e fazer sacrifícios pessoais. Mas, longe de ser um sinal de covardia, não dar a vida por uma convicção revela humildade e sabedoria, no reconhecimento de que, por mais inteligente que seja e por mais informado que esteja, qualquer ser humano pode estar enganado. Quantas pessoas já não perderam a vida em nome de crenças que, passado algum tempo, se mostraram equivocadas?
A responsabilidade é maior quando não é somente a própria vida que se imola no altar da convicção, mas também a vida dos outros. Regimes totalitários de esquerda e de direita foram capazes das piores atrocidades com base não na suposta maldade de quem os apoiava, mas na crença disseminada de que detinham o monopólio da verdade. Afinal de contas, quando se tem certeza do caminho que conduzirá o mundo à paz, à justiça e à felicidade, que preço pode ser considerado muito alto?
Quanto mais polarizada uma sociedade, maior a tendência a se aferrar a determinadas certezas, nem que seja por mera oposição ao adversário. No Brasil dividido em que vivemos, há uma tendência a só enxergar um problema por meio de um repertório muito limitado de filtros e ferramentas conceituais, que reforçam a separação entre o campo a que se pertence e os demais. Como escreveu o psicólogo americano Abraham Maslow: “Para quem só sabe usar martelo, todo problema é um prego”.
Um exemplo claro do martelo de Maslow são os grupos identitários, que vivem de reduzir a complexidade dos problemas do mundo às suas próprias bandeiras. A percepção da realidade passa a ser determinada por três ou quatro premissas, geralmente vitimistas e intolerantes a qualquer contestação. A consequência é que a sociedade se fragmenta em campos em conflito, com um denominador comum cada vez menor, e sem aquele eixo compartilhado de valores fundamental para a vida em comunidade, tornando o mundo cada vez mais chato.
Mas o martelo de Maslow se aplica, principalmente, à divisão entre esquerda e direita. No Brasil, o pretexto atual para o embate de opiniões é a pandemia do coronavírus. Mas, a cada dia que passa, fica mais claro que apostar na dicotomia “esquerda a favor do isolamento social” versus “direta contra o isolamento social” está sendo um mau negócio para a direita. Mas ainda há tempo para escapar dessa armadilha. Até porque lidar de forma responsável com a pandemia não tem nada a ver com ideologia.
Na semana que passou, Donald Trump, que é Donald Trump, abriu mão de seu discurso pró-atividade econômica para recomendar isolamento social a todos os americanos, até 30 de abril. E parece que a ficha caiu até para o presidente Bolsonaro, que, em sua fala na televisão do dia 31 de março, deu sinais claros de uma mudança de discurso, reconhecendo a gravidade do desafio imposto pela Covid-19. Trump e Bolsonaro resistiram a mudar de opinião, mas acabaram se rendendo à pressão das evidências científicas – e estas sugerem que, neste momento, o isolamento é uma arma fundamental para mitigar o impacto do vírus.
Uma prova de como é irracional a associação, no Brasil, de parte da direita com o negacionismo é que, entre os governantes que eram contra, mas passaram a defender o isolamento, estão Putin e o mexicano (de esquerda) López Obrador. E, entre os governantes que continuam reticentes em apoiar o isolamento social, estão Nicolás Maduro e o nicaraguense (de esquerda) Daniel Ortega. Antes de voltar atrás, aliás, López Obrador chegou a afirmar que os mexicanos seriam resistentes ao coronavírus.
Este não é um debate abstrato, como ocorre com temas como o aquecimento global, cujos impactos, de difícil aferição, sempre estarão sujeitos a controvérsias. Há uma situação imediata, concreta e grave, que, sem ter chegado ao seu pico, já afeta mais de 160 países, com mais de 40.000 mortes e quase 900.000 casos confirmados (no momento em que escrevo). Para quem tem olhos para ver, as curvas de crescimento de casos e de mortes no Brasil e no mundo são nada menos que assustadoras.
A pandemia que enfrentamos é inédita e dinâmica, e novos números e informações não param de chegar. Nesse contexto, mudar de opinião e corrigir o rumo não é vergonha para ninguém, ao contrário: para governantes de cujas decisões dependem milhares de vidas, pode ser uma imposição. Quanto aos que se negarem a entender isso, por teimosia ou fanatismo, estes podem estar, sem saber, dando suas vidas e a de seus amigos e parentes por uma crença equivocada. Ao contrário do que faria Bertrand Russell.
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