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Peritos criminais investigam o local onde ocorreu o ataque a faca na creche Cantinho Bom Pastor, nesta quarta-feira, dia 05 de abril de 2023, em Blumenau.
Peritos criminais investigam o local onde ocorreu o ataque a faca na creche Cantinho Bom Pastor, nesta quarta-feira, dia 05 de abril de 2023, em Blumenau.| Foto: EFE/ Sávio James

A tragédia ocorrida numa creche em Blumenau (SC) não é um evento isolado. Ele se relaciona diretamente com outros crimes do gênero, mas também com a crise de autoridade da sociedade brasileira, cujos efeitos devem se fazer sentir de maneira cada vez mais intensa nos próximos meses. Por isso, a morte das crianças clama por algo mais do que a Justiça: ela é um apelo para que o país recupere o controle sobre seu próprio destino e reestabeleça a ordem natural das coisas.

O caso em si ainda está nebuloso em seus detalhes. Sabe-se que o assassino pulou o muro do estabelecimento e matou quatro crianças a golpes de machadinha. Não há clareza sobre sua motivação ou estado mental. Ainda que alguns levantem a lebre do “surto psicótico”, a polícia catarinense trabalha com a hipótese de que o atentado possa ter sido discutido em grupos da deep web, onde psicopatas são idolatrados em comunidades fechadas, que servem como espaço para desabafo, retroalimentação e até consumação de desejos violentos de seus membros.

Em Santa Catarina, as autoridades já revelaram que conseguiram se antecipar a outras quatro ações desse tipo somente neste ano. Com a atuação de uma unidade tática especializada, a pesquisa no ambiente virtual levou os investigadores ao encontro de suspeitos, atitude que, por si só, exerce efeito dissuasório. Em outros estados, a polícia também tem procurado agir de maneira preventiva, apreendendo e interrogando suspeitos antes que o crime ocorra.

"A tragédia em Blumenau é um apelo para que o país recupere o controle sobre seu próprio destino e reestabeleça a ordem natural das coisas"

Porém, parece que a quantidade de homicidas motivados ainda é maior que os recursos empregados pelas forças de segurança. É verdade que o problema está longe de se assemelhar ao que ocorre em países como os Estados Unidos, que vive uma verdadeira escalada mimética desse tipo de ocorrência, com números que podem atingir a casa das centenas todos os anos, a depender da abrangência da definição empregada para designar esse tipo de evento. No Brasil, já ocorreram pelo menos 24 ataques em escolas nos últimos 22 anos, segundo levantamento feito por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O número parece reduzido, tendo em vista a grande quantidade de homicídios ocorridos anualmente no país, na casa das dezenas de milhares. Porém, a ocorrência do atentado em Blumenau poucos dias depois que um adolescente de 13 anos matou uma professora e feriu outras crianças numa escola estadual em São Paulo, liga um sinal de alerta geral para o problema, e exige respostas da sociedade em várias esferas da ação política, para que a barbárie não continue avançando impunemente.

Fenômeno mimético

A atuação rápida das polícias para evitar uma escalada mimética não é injustificada em circunstâncias assim. Em 2014 e 2015, investigadores da Universidade do Estado do Arizona analisaram dados sobre casos de violência em massa, para tentar mensurar o efeito provável de contágio nesses eventos. O que descobriram é que existe um padrão epidemiológico que une crimes desse tipo, com uma ocorrência influenciando outras, um efeito mimético cuja janela de influência se estende por aproximadamente duas semanas.

Ou seja, os assassinos inspiram outros assassinos em potencial, que aproveitam a “onda” para perpetrar crimes análogos. Esse padrão, muito comum em eventos como suicídio, tende a ser amplificado pela mídia e pelas redes sociais. Daí a importância que o “escândalo” provocado pelo ato não se perpetue durante tantos dias na esfera pública. E que o nome, nem a história dos assassinos sejam amplamente divulgados, para evitar que se tornem inspiração para outros indivíduos motivados.

Até a ocorrência dos atos em si, outros componentes de natureza mimética costumam se somar num verdadeiro caldeirão do inferno. Pesquisadores que tem se debruçado sobre o tema apontam para a existência de um ambiente tóxico de retroalimentação em certos canais da internet, fóruns de jogos e redes sociais. Os participantes desses espaços costumam compartilhar interesses comuns para além da violência contra vítimas inocentes, incluindo automutilação, transtornos alimentares, desprezo contra mulheres, dificuldades de relacionamentos amorosos, entre outros.

Numa situação normal, pessoas com esse tipo de inclinação seriam identificadas, isoladas, tratadas ou anuladas por instituições como a família, a escola, os grupos de amigos, o manicômio ou a polícia.  Com a rede mundial de computadores, surgem meios para que elas se conectem. Dessa forma, sentimentos que seriam normalmente abafados pela convivência social com pessoas saudáveis são fermentados e estimulados. E indivíduos que seriam excluídos da sociedade terminam se tornando referência e modelos para os demais.

O compartilhamento de experiências, a expressão desinibida de desejos e sentimentos antissociais e a aprovação grupal operam como elementos de fortalecimento da dissonância cognitiva. Resumidamente, o conceito cunhado pelo psicólogo Leo Festinger designa o conflito entre as crenças e a conduta. Numa situação normal, indivíduos confrontados com situações em que sua conduta vai de encontro aos valores estabelecidos sentem culpa ou remorso, e procuram meios de aliviar esse sentimento na forma de uma compensação, que podem vir pela busca de uma punição, pela confissão religiosa ou pelo perdão da parte eventualmente prejudicada.

Numa situação normal, pessoas com esse tipo de inclinação seriam identificadas, isoladas, tratadas ou anuladas por instituições como a família, a escola, os grupos de amigos, o manicômio ou a polícia

No entanto, quando os indivíduos se veem forçados, coagidos ou estimulados a praticar costumeiramente atos desse tipo, a dissonância cognitiva ultrapassa os limites do suportável, acarretando em três possibilidades: ou o indivíduo se impõe e faz a sociedade se adequar a um novo conjunto de valores, que não vão de encontro ao seu comportamento; ou a pessoa acrescenta como num enxerto um novo elemento cognitivo atenuante, que justifique seu comportamento, diminuindo a incoerência entre valores e conduta; ou ela muda radicalmente os sistemas de referências ou valores, para evitar o sofrimento resultante do conflito entre estes e o comportamento recorrente.

Assim, em companhia de outros desviantes, pessoas aprendem e recebem estímulos para explorar outras pessoas das mais variadas formas, contando com um sistema de referências que lhes dá suporte para que não sintam responsabilidades ou obrigações morais em relação a suas vítimas reais ou imaginadas. Esse processo de insulamento garante um enfraquecimento ainda maior da família e de outras referências, como parentes, professores e sacerdotes. Quanto mais isolados, mais rejeitados. Quanto mais rejeitados, mais aceitos por outros indivíduos igualmente rejeitados. Esses grupos fechados reforçam ainda o desprezo à sociedade dos normais e a seus valores e códigos de conduta, fornecendo também novos objetivos sociais, modelos de referência e parâmetros de aceitação.

Ambientes assim são perfeitos para o cultivo e influência de psicopatas. Não raro, esse tipo de indivíduo, naturalmente incapaz de sentir culpa ou empatia, apresentando comportamento imprudente e violento, é extremamente manipulador, exercendo efeito magnético sobre pessoas mais fracas ou perturbadas. Por isso mesmo, rapidamente se tornam referência e prosperam em “sistemas fechados” que se opõem ao valores estabelecidos numa sociedade saudável, como regimes totalitários, partidos extremistas, organizações criminosas ou grupinhos de malucos na internet. Dessa forma, incitados pela aprovação coletiva, logo se tornam eles mesmos perpetradores de atos violentos ou manipulam outros delinquentes para que o façam.

Antecipação e dissuasão

A descrição de como esse tipo de ambiente criminoso surge e amadurece já revela em si mesma a necessidade de mecanismos para sua incapacitação e dissuasão. O caráter mimético do fenômeno exige a ação policial em diversos níveis, um arranjo legal corretamente desenhado, bem como um debate maduro sobre o papel da pena.

Primeiramente, as polícias precisam contar com unidades especializadas, integralmente dedicadas a identificar e monitorar esse tipo de grupo existente em diversos espaços na internet. Com o treinamento adequado, aprender a identificar as pistas que atraem novos membros não é difícil. O mapeamento da rede facilmente aponta para os elementos com mais influência, bem como maior potencial ofensivo. Nesse momento, é preciso contar com um arcabouço institucional bem estruturado para “puxar as alavancas” corretas, capazes de incapacitar certos indivíduos e dissuadir outros.

Pouca gente discute isso no Brasil, mas grande parte da eficácia de políticas de segurança se dá pela capacidade de anular psicopatas e outros delinquentes contumazes por crimes de menor potencial ofensivo. Nos melhores casos, isso se dá no início da “carreira delinquente”, metendo o sujeito atrás das grades antes que ele possa “evoluir” de crime menos graves para os mais sérios. É isso o que Franklin Zimring identifica como a chave para o sucesso da política de segurança pública de Nova York, que reduziu os índices de criminalidade na casa de 80% entre 1991 e 2000.

Em ações muitas vezes simples, como apreender pessoas andando em bicicletas sem documentação para averiguação, a polícia da cidade conseguia extrair impressões digitais ou de DNA que eram analisadas com base nos registros de crimes em aberto, levando à identificação de homicidas e estupradores. Em outros, seguidas apreensões por crimes de menor potencial ofensivo serviam para afastar delinquentes perigosos das ruas, que se tornavam alvo preferencial para as polícias quando de sua soltura e posterior acompanhamento em custódia.

Grande parte da eficácia de políticas de segurança se dá pela capacidade de anular psicopatas e outros delinquentes contumazes por crimes de menor potencial ofensivo

O mesmo princípio, com o arcabouço legal correto, poderia ser aplicado no caso dos grupos onde se encontram criminosos como os dos casos mais recentes de assassinatos em escolas. O aumento da pena para a posse de determinado tipo de conteúdo ou mesmo frequência reiterada de certos sites pode dar um ótimo ensejo para identificação e incapacitação de indivíduos com potencial ofensivo, que frequentam esse tipo de comunidade.

Da mesma forma, a criminalização do planejamento desse tipo de ação criminosa, imputado a todos os envolvidos, como participantes diretos, incitadores ou cúmplices, pode servir como excelente ferramenta para desbaratamento de redes inteiras que colaboram para a ocorrência de delitos assim. O precedente já existente para crimes de terrorismo, por sinal, deveria ser estendido não só para esse, como para outros delitos, como o assassinato, o tráfico de drogas, o roubo e o domínio de cidades.

Outras ações podem ser estruturadas para dissuadir os participantes que frequentam espaços como esse, dando livre vazão a impulsos violentos. É possível pensar em cadastros permanentes, com visitas periódicas de policiais, psicólogos e assistentes sociais a indivíduos devidamente identificados.

Outras possíveis intervenções podem incluir a proibição legal de uso de computadores ou acesso à internet por determinado período, ou o monitoramento permanente dos equipamentos com medidas de restrição de uso análogas às aplicadas a agressores de mulheres ou pedófilos em vários países do mundo, que não podem se aproximar de determinados espaços frequentados por suas vítimas em potencial, a menos que queiram passar um bom tempo na cadeia.

Essas medidas me parecem bem mais eficazes do que propostas que ganharam força na esteira do escândalo provocado pelo crime em Blumenau, como é o caso do projeto que propõe obrigar a presença de seguranças armados nas escolas públicas e privadas.

Em que pese o potencial dissuasório da presença de agentes armados para coibir esse tipo de ocorrência, cumpre ter em mente os custos envolvidos na sua implantação, principalmente num país em que as exigências materiais para o funcionamento de escolas já beiram às raias do absurdo. Aqui, vale o mesmo dilema envolvido nos custos para a onipresença policial na sociedade. Afinal, no limite, um policial em cada esquina obviamente surtiria efeito sobre a redução da criminalidade. Mas quem paga essa conta?

Hora do basta

Cumpre ter em mente, porém, que nenhuma resposta pontual vai produzir resultados efetivos se não vier acompanhada de um movimento mais consistente da sociedade como um todo para dar um basta ao avanço da criminalidade galopante, de maneira geral. Os assassinatos nas escolas brasileiras são só a face mais bárbara de um país que tem se rendido ao crime de maneira acelerada, com a instauração de uma ambiência institucional que favorece a ação de delinquentes de maneira generalizada.

Crimes como o ocorrido em Blumenau abrem uma janela de oportunidades para uma resposta contundente da sociedade. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL, já declarou em suas redes que “no que for preciso, a sociedade terá meu apoio para endurecer as medidas punitivas aos que atentam contra a vida”. Esse gesto precisa ser aproveitado pelos legisladores responsáveis, para reverter ao máximo os arranjos institucionais que favorecem a impunidade no país.

Contudo, é preciso ter sabedoria política para saber que as forças antagônicas, parte das quais representadas infelizmente pelas Cortes, não deixarão de fazer pressão na direção contrária. Por isso, quanto mais forte for o empurrão em um momento como esse, maior é o custo para sua reversão, assim como maior será o terreno conquistado após as reações esperadas.

A bancada de oposição no Congresso não deveria pedir um simples aumento de pena contra homicídios ou novo agravante na lei de crimes hediondos, mas um verdadeiro conjunto de medidas contundentes para prevenir o crime, dissuadir ofensores em potencial e incapacitar os criminosos.

Isso inclui até mesmo propostas de antemão vetadas pelo nosso atual arcabouço constitucional, como a incapacitação permanente de homicidas contumazes e/ou assassinos de crianças. Longe de ser uma resposta amigdalar ao acontecimento, esse tipo de apelo é proporcional ao estado de coisas que o país enfrenta. Nesse ponto, o simples fato de forçar a exposição da recusa de tramitação de propostas mais extremas opera como um elemento de alongamento da Janela de Overton, isto é, do espectro de ideias toleradas no debate público. Tal ofensiva força o posicionamento contrário do espectro oposto, com todo o ônus de defender o indefensável. E termina se refletindo em terreno de conquistado, com avanços de medidas duras que apareçam como “meio termo” em relação ao novo “extremo”, em prol do fim da impunidade e do restabelecimento da Lei e da Ordem.

O Brasil não pode deixar que a morte dessas crianças seja em vão. Já passou da hora de dar um basta contra o crime. Os maus só vão vencer se os homens de bem se contentarem em não fazer nada.

Eduardo Matos de Alencar é doutor em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e autor do livro 'De quem é o comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil' (Ed. Record)"

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