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Somos produto das realizações de nossos antepassados e, por isso, é preciso resistir ao espírito revolucionário e agradecer pelas benesses que herdamos.
Somos produto das realizações de nossos antepassados e, por isso, é preciso resistir ao espírito revolucionário e agradecer pelas benesses que herdamos.| Foto: Reprodução/ Wikipedia

O Dia de Ação de Graças é o feriado mais importante do calendário norte-americano. Sim, mais do que o Natal, porque, apesar de sua origem semirreligiosa, ao longo do tempo a data se transformou num feriado secular, capaz de unir pessoas de diversas religiões. O propósito do feriado, uma das poucas datas comemorativas que parece imune à guerra cultural nos Estados Unidos, é simplesmente agradecer.

Ninguém sabe ao certo quando o Dia de Ação de Graças foi celebrado em terras norte-americanas pela primeira vez, se na Virginia ou em Massachusetts, mas reza a lenda que, em algum momento do século XVII, um grupo de colonos, a fim de agradecer pela colheita farta e pela paz na região, se reuniu com os nativos para um banquete no qual estavam presentes alguns dos pratos hoje tradicionais: peru assado, molho de cranberry (que no Brasil recebe o curioso nome de “oxicoco”) e torta de abóbora.

Em 1863, o presidente Abraham Lincoln determinou que o Dia de Ação de Graças fosse celebrado em todos os estados. Foi um ato intervencionista, mas com uma bela história de persistência por trás. Afinal, o decreto de Lincoln cedia à pressão de Sarah Josepha Hale, que passou 40 anos escrevendo para políticos, na esperança de que eles agissem para transformar a data, celebrada informalmente, num feriado nacional.

Os números que envolvem o Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos são impressionantes. Estima-se, por exemplo, que 88% da população do país comam peru na quarta quinta-feira de novembro, o que representa o abate de 46 milhões de aves (sinto muito, veganos). O gasto por família no jantar do Dia de Ação de Graças é de US$54,18, o que significa que, só em comida, o feriado movimenta impressionantes US$7 bilhões.

Espírito conservador

O interessante é perceber que o espírito do Dia de Ação de Graças não sucumbiu à demolidora onda progressista, que prega que as bases da sociedade precisam ser demolidas por terem sido construídas no terreno pantanoso da discriminação, do racismo, do patriarcado e da exploração. É bem verdade que uns poucos progressistas e grupos indígenas tentam há alguns anos reforçar o “caráter tirânico e até genocida” da relação entre colonos e nativos no remoto século XVII, mas a verdade é que os argumentos ressentidos nunca encontraram muito eco na sociedade norte-americana.

O único aspecto político a contaminar o Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos é a presença de discussões partidárias à mesa – algo a que o brasileiro está ligeiramente acostumado, com as figuras já mitológicas do “tiozão do churrasco” e da “estudante de sociologia” se digladiando nas festas de fim de ano. Lá, contudo, a ideia de discutir política à mesa do Dia de Ação de Graças ainda é vista com uma mistura de temor e algum desprezo. Gratidão e política partidária decididamente não combinam.

Já sob a ótica histórica e filosófica, pode-se dizer que a gratidão (palavra que, no Brasil, adquiriu um quê de zombaria depois de ter sido vulgarizada pelos coachs) está na essência do capitalismo liberal dos Estados Unidos e é uma tradição que ressalta certos elementos conservadores da sociedade. Afinal, no Dia de Ação de Graças celebra-se a vida, a saúde, a mesa farta e o conforto, isto é, tudo o que o capitalismo, aliado à tradição, propiciou aos norte-americanos (e, de certa forma, ao mundo todo) nos últimos 400 anos.

A vida, neste caso, diz respeito ao direito a estar vivo, uma coisa que hoje nos soa óbvia e até banal, mas nem sempre foi assim. Ao longo da história, o arbítrio foi muito mais regra do que exceção. Morrer era fácil, em guerras convocadas por rei, imperadores, senhores feudais e césares, em penas capitais executadas meio que ao sabor do vento e ao gosto dos governantes e em expurgos, exílios, campos de concentração e trabalhos forçados. É incrível, mas o direito à vida só passou a figurar como algo fundamental em 1948, quando da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A saúde é outra dádiva que geralmente vemos como uma obviedade, a não ser quando ficamos doentes, claro. E vale a pena parar para pensar no quanto a Humanidade, por meio do esforço de incontáveis pessoas, famosas ou não, evoluiu neste sentido. Para se ter uma ideia, há apenas 70 anos um corte mais profundo ou um abcesso era capaz de matar uma pessoa. Mas daí surgiu a penicilina, salvando a vida de incontáveis milhões. Isso sem falar nas vacinas e nos tratamentos extremamente avançados que existem hoje em dia, como o uso de células-tronco.

Sobre a mesa farta, e a despeito dos protestos de ambientalistas catastrofistas e veganos, temos muito o que agradecer também às gerações passadas. Não só pelo aprimoramento genético que nos rende carne mais abundante e barata, frutas mais doces, verduras e legumes mais exuberantes e cereais a perder de vista, mas também por tecnologias como as incríveis máquinas agrícolas e o processo de fixação do nitrogênio no solo, sem o qual a agricultura em larga escala seriam impossíveis.

Por fim, o conforto dos nossos lares e da vida em geral, sobre o qual eu precisaria de muito tempo para falar. Por sorte, hoje em dia tudo é tão fácil que você pode ir a uma biblioteca ou livraria, ou usar o seu leitor de e-book, para comprar “Como Chegamos Até Aqui: a História das Inovações que Fizeram a Vida Moderna Possível”, de Steven Johnson, ou “A Casa”, de Bill Bryson, e se maravilhar com as contribuições que nossos antepassados deram para que hoje você pudesse se deitar numa cama ou abrir a geladeira para tirar lá de dentro uma cerveja gelada num dia de calor.

O que o brasileiro tem a agradecer?

No Brasil, não temos a tradição de agradecer nem temos um dia especialmente reservado para isso, apesar de o presidente Gaspar Dutra ter criado, por meio da lei 781 de 17 de agosto de 1949, o Dia Nacional de Ação de Graças. Uma lei complementar, de 1966, determinou que o Dia Nacional de Ação de Graças fosse celebrado na quarta quinta-feira de novembro, acompanhando, assim, as celebrações que acontecem nos Estados Unidos, Canadá, Caribe, Libéria e, em outros dias, na Austrália, Alemanha, Japão e Índia.

E o que celebraríamos por aqui?, pode perguntar um leitor mais exaltado, ou melhor, mais revoltado com a situação do país. Afinal, ao que parece temos sempre mais problemas do que soluções, mais miséria do que riqueza, mais sofrimento do que alegria. Mas será mesmo?

Isso levanta outro aspecto importante do Dia de Ação de Graças: a resistência a cair no canto sedutoramente fácil da chamada “Falácia do Nirvana”, isto é, a tendência a sempre comparar uma realidade boa, mas imperfeita, com um ideal inatingível – geralmente, mas não só, para fins políticos. Alguém que se deixe levar por essa falácia é incapaz de agradecer, porque nunca está satisfeito com as conquistas alcançadas pelos indivíduos e pela sociedade. Para essa pessoa, uma geladeira jamais será uma maravilha da tecnologia e da inteligência humana enquanto for inacessível para alguns e enquanto consumir energia poluidora, por exemplo.

Sem cair na Falácia do Nirvana, extrapolando um pouco o princípio de agradecer às bênçãos limitadas à vida pequena, como a mesa farta, o conforto do lar e a saúde, e fugindo à tentação de agradecer por algumas obviedades ufanistas, como as belezas naturais, e de ficar citando números do governo, dá para dizer sem medo que o brasileiro tem, sim, muito a agradecer em 2019.

Afinal, vivemos numa sociedade imperfeita, mas não em guerra (ao menos não declarada). Somos livres – talvez menos do que gostaríamos, mas inegavelmente livres. E com alguma dificuldade, temos acesso, em maior ou menor grau, a todas as maravilhas da chamada Civilização Ocidental, como a democracia, a justiça e o direito à busca da felicidade.

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