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Falar do liberalismo no Brasil é quase que buscar nas mitologias aquilo que elas possuem de fatos históricos; isto é, sabe-se que há fatos encrustados no mar de simbolismos mitológicos, não obstante, cabe a poucas mentes capazes a missão de garimpar quais são as verdades e quais são as construções literárias de seus autores. Evidenciar os pensadores liberais na história do Brasil se tornou algo muito complexo que pede especialistas da área para fazê-lo, afinal, o liberalismo brasileiro muitas vezes se reduziu a uma cópia “malemá” do pensamento liberal inglês; uma submissão consentida perante os autoritarismos pululantes em nossa terra; ou, por vezes ainda, uma pura teoria política que dificilmente encontrava par na realidade do país — o que foi matéria de crítica e exortação do próprio Visconde de Uruguai (Paulino José Soares de Sousa). Isso não se deu, é bom dizer, por qualquer mediocridade de nossos pensadores liberais, mas pelo fato de que o liberalismo — principalmente na era republicana — não encontrou espaço para florescer para além do cercado que os autoritarismos nacionais diversos permitiam que os liberais atuassem. Tive a oportunidade de explorar e esclarecer esses pontos num recente artigo aqui na Gazeta do Povo.

É verdade que ostentamos bons nomes nesse campo apesar dos problemas apresentados acima: Hipólito da Costa (1774 – 1823), Silvestre Pinheiro Ferreira (1769 – 1846), Paulino José Soares de Sousa (1807 – 1866), Ruy Barbosa de Oliveira (1849 – 1923), Miguel Reale (1910 - 2006), José Guilherme Merquior (1941 – 1991), Ubiratan Borges de Macedo (1937-2007), Roberto Campos (1917 – 2001), Antonio Paim, Ubiratan Jorge Iorio, e alguns mais que pela prudência textual não os citarei. Esses nomes despontaram no cenário político-intelectual trazendo reflexões e críticas liberais acuradas para o meio social e acadêmico brasileiro. 

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Dos citados, podemos notabilizar como um dos maiores intelectuais brasileiros vivos, no campo da história das ideias políticas, o professor Antonio Paim. Arrisco-me a dizer ainda: um dos pouquíssimos capazes de nos dar um panorama completo da história política liberal de nossa nação, sem que com isso traga em seu bojo as seduções ideológicas. 

Autêntico Bolchevique

Antonio Paim é um senhor de 91 anos de idade, que mantém sua vida de estudos e produção intelectual no auge até os dias atuais; nascido no interior da Bahia, em 7 de abril de 1927, terminou seus estudos em filosofia em 1950. Todavia, antes de findá-los, já tinha mantido larga atuação como militante e secretário do Partido Comunista no Recife, chegando a ser preso por dois anos após enfrentar a polícia na base de tiros e afrontas políticas — episódio que ele conta em detalhes ao Bruno Garshagen no podcast do Mises Brasil. Após tais fatos, em 1953, foi para a Rússia a fim de se tornar um autêntico Bolchevique — como ele próprio diz em entrevista à revista digital Faustomag —, ficando na URSS aproximadamente cinco anos. 

A sua vida de docente, após voltar da Rússia, foi realizada em várias universidades renomadas do país, como a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — onde também foi estudante —, Universidade Gama Filho (UGF), Universidade Presbiteriana Mackenzie e Universidade Católica Portuguesa (UCP). Seu trabalho escrito é extenso, tendo principalmente o campo das ideias político-filosóficas no Brasil como cerne de suas obras. O principal trabalho de Paim julgo ser a “História das Ideias Filosóficas no Brasil”, já com seis edições — a primeira lançada em 1967 — e a sétima sendo preparada para ser lançada pela Editora LVM. 

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Além da obra citada, destaco outras quatro que são medulares para compreensão do pensamento do autor. “O Liberalismo Contemporâneo” (1995), na obra ele mostra onde o liberalismo chegou e como suas ideias tiveram atualizações importantes ao passar dos anos; trata-se de uma espécie de complemento de outra obra fundamental “Evolução Histórica do Liberalismo” (1979); destaco também o “Marxismo e Descendência”, lançado pela Vide Editorial em 2009, na obra ele faz uma releitura filosófica e histórica do marxismo e o coloca em novo parâmetro de análise. 

Sendo assim — após esse brevíssimo resumo biográfico e acadêmico de Antonio Paim —, destaca-se que, além de seu brilhantismo intelectual que pode ser comprovado em seus escritos, o filósofo destaca-se ainda por ter vivido e apreciado a história política do país em sua própria vida. Tendo literalmente vivido e atuado em boa parte dela. Ou seja, o conhecimento de Paim é aquele de quem aprendeu pelo livro e através do que via da janela. 

Renovação intelectual

Recentemente, Antonio Paim lançou pela editora LVM a segunda edição estendida de sua obra: “História do Liberalismo Brasileiro” — a quarta obra que destaco e recomendo. Com a supervisão e prefácio de Alex Catharino — que fez um ótimo trabalho editorial e de pesquisa ao apresentar o autor e seus escritos —, traz também o posfácio de Marcel van Hattem. O precioso cuidado editorial da LVM, permeado com ricas notas de rodapé, permite à segunda edição ser muito mais que um livro de consulta rápida, ou mero apêndice da primeira edição; trata-se antes de um renovo intelectual que traz novas apreciações e esclarece muito o nosso momento político através das análises históricas de Paim. Nos deteremos nessa obra com maior atenção a fim de abraçar a temática proposta. 

Com os largos conhecimentos filosóficos e históricos dos pensadores e linhas políticas brasileiras que já destacamos, nunca é pouco reafirmar que Antonio Paim é sem dúvida o mais gabaritado para uma obra com tais pretensões históricas, filosóficas e analíticas. Com sua experiência de ex-comunista — “Fui comuna mesmo. Fui para a Rússia para me transformar em um bolchevique sem alma, sem amigos”, disse na entrevista à Faustomag —, Paim fala do liberalismo através de um olhar bifocal e intelectualmente desapaixonado, o que confere ao livro uma análise séria e de pretensões e conclusões vigorosas. E nisso reside a maior riqueza do escrito: uma análise que rompe a crosta do imediatismo e do parcialismo. 

Carentes que somos de bons livros que tratem do pensamento liberal no país, “História do Liberalismo Brasileiro” teve a grande ousadia não só de apresentar os principais pensadores liberais que formaram o caráter liberal de algumas instituições e momentos nacionais, como o de elucidar de maneira competente e erudita a história que antecedeu certos momentos de covardia, acanalhamento, censura e triunfo liberal na epopeia brasileira. 

Alguns pontos da obra merecem ser destacados: a Parte I — denominada “Pontos de referências essenciais” — se trata de uma contextualização do pensamento liberal no Brasil, todavia ela inicia bem antes do “Brasil independente”. Explicando de maneira sucinta — sem abrir mão da necessária profundidade —, Paim nos dá todo o contexto que envolve Portugal e Brasil na troca de ideias e evolução do pensamento político-democrático. Ele vai das reformas pombalinas, êxodo jesuíta, até a explicitação das características mercantilistas e centralizadoras adotadas pelos portugueses em sua economia e políticas institucionais. 

Espaço para evolução

Num segundo momento, outro destaque que merece ser alvejado pelos leitores da obra é perceber como as crises e revoltas políticas que antecederam o Segundo Reinado acabaram por formar uma “equipe” de homens públicos equilibrados, capazes de estruturar, dar forma e criar um escopo de ação política durante o interregno e o reinado de Dom Pedro II. Abdicando tanto do democratismo revolucionário quanto do tradicionalismo absolutista, pensadores como Silvestre Pinheiro Ferreira e Visconde de Uruguai atuaram como homens de prudência e de atualizações doutrinais para campo político brasileiro. Paim e outros historiadores afirmaram sem meias palavras que o Segundo Reinado foi a época onde a liberdade e a democracia — considerando o tempo histórico a que nos referimos — mais pulsaram e geraram frutos. Foram além dos discursos de palanque, dos tribalismos partidários e personalistas. A era onde as instituições políticas mais encontraram espaço para evolução. 

Por fim, destaco como digno de atenção e aprofundamento perceber como que, após a república, o liberalismo nacional não passou de um espectro teórico, ora coalizando com os autoritarismos pululantes no cenário nacional para conseguir algum tipo de influência, por vezes se escondendo em institutos e em personalidades. Seu momento de renascimento real foi com a volta da atuação acadêmica crescente dos intelectuais liberais — como Roberto Campos e José Guilherme Merquior —, as constantes atuações de institutos — como o Instituto Liberal e o Mises Brasil —, além das crises políticas atuais que suscitaram uma busca por respostas políticas e econômicas que ultrapassassem o cânone oficial do socialismo encastelado nas universidades e partidos. 

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“História do Liberalismo Brasileiro”, em suma, é mais que uma obra de curiosidades políticas e acadêmicas; é um livro para conhecer o Brasil com mais profundidade. O liberalismo à brasileira está renascendo, e tal obra assume o papel de memorando dos liberais brasileiros, um mapa seguro para saber onde já pisamos, onde já caímos e como fazer para nos organizarmos para além das sombras dos autoritarismos nacionais, dos panfletários de internet e dos puxa-sacos de sociais-democratas.

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