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A América do Sul parece atravessar um momento de inflexão política, assistindo, nos últimos dois anos, a uma guinada que já não pode ser descrita como episódica.
Agendas progressistas que pareciam consolidadas vacilam diante de um impulso conservador que se renova com vigor — e se espalha do Pacífico ao Atlântico, de Buenos Aires a Quito, de Santiago a La Paz, com forças de direita e centro-direita que reconquistam espaço nas urnas e reordenam o mapa do poder regional.
O processo não é homogêneo, variando em intensidade e conteúdo ideológico de país para país, mas permite visualizar padrões comuns: reação a crises econômicas e institucionais persistentes e a governos de esquerda ou centro-esquerda, apelo ao liberalismo econômico, à diminuição do peso do Estado, à maior firmeza no combate à criminalidade e ao clamor por ordem.
Essa guinada conservadora avança em países anteriormente governados pela esquerda e flagelados pela insegurança, pela estagnação econômica e pela sensação difusa de perda de controle institucional e de tentativas de instauração de regimes autoritários e intolerantes ao dissenso. O movimento redefine o mapa político regional e terá impactos diretos sobre o Brasil, tanto no plano geopolítico e diplomático quanto no debate interno.
A dimensão cultural: valores e costumes voltam ao centro
Entretanto, essa reconfiguração de forças não se explica apenas por fatores econômicos ou securitários. Ela emerge também de um deslocamento cultural profundo.
Em ampla parte da região, cresce a rejeição a pautas associadas ao progressismo das décadas 2000 e 2010: políticas identitárias, debates sobre gênero, revisionismos históricos, expansão da linguagem inclusiva ou reformas educacionais percebidas como ideológicas e instrumentalização de “minorias” para propósitos políticos escusos.
Líderes conservadores triunfam porque oferecem algo além de respostas de gestão: oferecem um enquadramento moral da realidade, que a mídia mainstream tendenciosamente define como “pauta comportamental”.
Prometem restaurar normas consideradas estáveis –— família, religião, disciplina, autoridade — em sociedades que se sentem culturalmente desordenadas. A perspectiva de “reconstrução de valores” se tornou tão mobilizadora quanto a prometida recuperação econômica.
Surpreendentemente, trata-se de agenda majoritariamente subscrita não por homens e mulheres maduros e/ou idosos, mas sobretudo por jovens: levantamento realizado pela AtlasIntel no ínicio deste mês indica que 52% dos brasileiros pertencentes à “Geração Z” (nascidos entre 1997 e 2012) se identificam como de direita, índice superior aos integrantes da geração anterior (51%), os “Millennials” (nascidos entre 1981 e 1996). O futuro é conservador e essa perspectiva certamente assusta as forças políticas de esquerda do Brasil.
Assim, consolida-se uma fórmula política que combina liberalismo econômico (em maior ou menor grau); mão dura na segurança pública; e reafirmação cultural e de princípios morais que se enquadram muito menos em uma narrativa “carola” do que no chamado por uma vida com propósito, axiomas que se opõem frontalmente às noções dissolutas do progressismo identitário.
Essa tríade tem se mostrado eleitoralmente poderosa e não é apenas retórica. Ela molda programas de governo, discursos eleitorais e expectativas populares, compondo o que já se configura como um novo modelo de governança conservadora latino-americana.
Novos vencedores, nova correlação de forças
Resultados eleitorais recentes confirmam essa tendência. Na Bolívia, a vitória de Rodrigo Paz, candidato de centro-direita, marcou o fim de quase duas décadas de domínio do Movimiento al Socialismo (MAS), sinal claro de fadiga popular com a gestão de esquerda e da busca por medidas econômicas pró-mercado. Paz tomou posse em novembro de 2025, prometendo reformas pró-investimento num país que amarga inflação e escassez.
No Equador, a reeleição, em abril de 2025, de Daniel Noboa — nascido nos EUA — consolidou a demanda por políticas de segurança rígidas e governança alinhada ao setor privado; Noboa capitalizou, sobretudo, o descontentamento com a violência ligada ao narcotráfico e apresentou-se como gestor capaz de retomar controle e ordem.
Na Argentina, as eleições legislativas de 26 de outubro de 2025 consolidaram o avanço da base do presidente libertário Javier Milei: sua agremiação política, a La Libertad Avanza (LLA), obteve 40,84 % dos votos nacionais para a Câmara dos Deputados, vencendo em 16 das 24 províncias, inclusive em distritos tradicionalmente peronistas. Essa vitória dá a Milei uma bancada ampliada, consolidando seu poder para avançar na agenda de reformas e ajustes econômicos com maior segurança institucional.
No Chile, o primeiro turno das eleições presidenciais, realizado em novembro de 2025, projetou um duelo polarizado entre a governista Jeannette Jara (coligação de esquerda) e José Antonio Kast (direita conservadora).
Entretanto, sondagens sucessivas de opinião têm registrado crescimento expressivo de Kast, que chega a 57% das intenções de voto, contra 35% de Jara, em cenário de segundo turno (previso para ocorrer em 14 de dezembro corrente), em contexto em que preocupações populares com criminalidade, imigração irregular, inflação e a agenda de ordem pública aparecem como impulsos reais para catapultar Kast na disputa ao Palácio La Moneda.
A força eleitoral do Partido Republicano de Kast — e os ganhos de sinergia com outras legendas do mesmo espectro ideológico — ilustram a renovada vitalidade da direita chilena. Em menos de uma década, um país que parecia consolidar uma guinada progressista volta a se preparar para uma virada conservadora, com potencial de redefinir instituições, prioridades de segurança e agenda social.
O caso do Peru talvez seja o mais revelador do caos progressista e da reorientação atuais. Em 10 de outubro de 2025, o Congresso peruano votou pela destituição da presidente Dina Boluarte, sob acusação de “incapacidade moral permanente”, em meio a uma onda de violência, criminalidade, desconfiança institucional e escândalos de corrupção.
Com aprovação popular em níveis historicamente baixos — entre 2% e 4% — e críticas severas pelo manejo da crise de segurança, Boluarte foi destituída e substituída pelo centro-direitista José Jerí, presidente do Congresso, de apenas 38 anos, que assumiu com promessas de “guerra ao crime” e de aprovar medidas duras de segurança pública visando a retomar a ordem.
O colapso institucional, a sucessão acelerada de presidentes (sete em dez anos) e a percepção de que o Estado falhou em garantir segurança abriram espaço para um conservadorismo de emergência, pautado na ordem, no endurecimento frente ao crime e na esperança de reconstrução institucional, mostrando que não se tratou de mera escolha política, mas das apostas de esperança de uma sociedade em processo de erosão.
Implicações regionais: por que isso interessa ao Brasil
A ascensão de governos conservadores na região muda equações diplomáticas, econômicas e de segurança que afetam diretamente o Brasil.
Em termos geopolíticos, governos mais pró-mercado e alinhados com Washington tendem a reforçar laços comerciais e cooperação em segurança com os EUA, como já se observa em declarações e ações de assistência e pressão externa. Isso pode deslocar espaços de influência tradicional do Brasil em seus vizinhos.
No tema da segurança transfronteiriça, políticas duras de combate ao crime em países vizinhos (com destaque para operações conjuntas) alteram rotas e estratégias criminosas, muitas vezes empurrando fluxos para o território brasileiro e exigindo coordenação regional.
Seria oportuno que o Brasil estivesse preparado para essas externalidades, sobretudo por meio da adoção de postura mais incisiva no combate ao crime organizado, sob pena de ver os já graves problemas enfrentados pelo Estado brasileiro se aprofundarem ainda mais.
Economicamente, essa nova conjunção tende a reposicionar a América do Sul no radar global de investimentos. Países que adotam agendas de “ajuste macro”, redução de déficit, desburocratização e abertura ao capital estrangeiro — como Argentina, Equador e Paraguai — enviam sinais mais previsíveis a mercados internacionais sedentos por estabilidade. Esse movimento pode atrair fluxos relevantes de investimentos diretos, especialmente em setores de energia, mineração, infraestrutura e agronegócio.
O efeito, porém, não é linear: ele reconfigura a concorrência regional. Com vizinhos adotando regimes fiscais mais rígidos, simplificando regulações e oferecendo ambientes de investimentos mais previsíveis e menos suscetíveis a influências políticas, o Brasil passa a disputar capital num cenário mais competitivo do que aquele visto no ciclo progressista anterior.
O resultado possível é uma heterogeneidade crescente de oportunidades e riscos na América do Sul, com países reprecificados positivamente, enquanto outros podem enfrentar fuga de capitais e de investimentos produtivos se não acompanharem o redesenho institucional. A realocação de unidades produtivas de empresas brasileiras para o Paraguai, país no qual a carga tributária e o custo da energia são inferiores aos brasileiros, é indicativa dessa tendência.
Além disso, ajustes macroeconômicos severos, como os implementados pela Argentina de Milei, tendem a produzir ondas migratórias internas no subcontinente, pressionando fronteiras, serviços públicos e negociações bilaterais. Esses fluxos podem alterar dinâmicas de emprego, segurança e integração em países vizinhos, inclusive no Brasil.
Para Brasília, a implicação é dupla: de um lado, competição estratégica por investimentos, sobretudo em setores sensíveis como energia, indústria verde, portos e mineração. De outro, reprecificação de risco-país nos vizinhos, capaz de alterar cadeias produtivas, comércio regional e decisões de empresas multinacionais que tratam a América do Sul como um portfólio integrado.
Dessa forma, a virada conservadora não afeta apenas ideologia e costumes; ela pressiona o Brasil a competir com um novo modelo econômico emergente ao redor de suas fronteiras, mais agressivo, mais liberal e potencialmente mais eficiente no curto prazo.
No campo diplomático, essa dinâmica cria novas geometrias de poder. O movimento não se limita à política doméstica: ele tende a formar alianças entre governos com visões de mundo afins e coalizões de veto capazes de redesenhar a correlação de forças em organismos regionais e multilaterais, criando espaços alternativos ao eixo progressista tradicional e que podem deslocar gradualmente o centro de gravidade diplomático da região.
O efeito sobre o Brasil é evidente. Em organismos como Mercosul, OEA e fóruns ambientais globais, o avanço conservador pode criar blocos capazes de vetar iniciativas brasileiras, exigir contrapartidas mais duras ou reorientar prioridades coletivas — da política de tarifas a posições conjuntas sobre descarbonização e metas climáticas.
A mudança também pode se traduzir em realinhamentos externos. Governos conservadores tendem a intensificar relações com Estados Unidos, Israel e com países europeus governados por forças de direita, como a Hungria e a Itália, entre outros, ao mesmo tempo em que adotam postura mais cética em relação à China, Rússia e aos BRICS. Isso gera um ambiente de diplomacia fragmentada, no qual o Brasil perde protagonismo e previsibilidade sobre o comportamento de parceiros historicamente alinhados.
Em síntese, essa reconfiguração geopolítica não altera apenas o mapa eleitoral do continente: ela molda alianças, desloca eixos de poder e redefine o tabuleiro diplomático. Para o Brasil, o risco é claro: ver sua capacidade de liderar agendas coletivas diminuída por um entorno político cada vez menos simpático às prioridades de sua política externa.
Essa virada tem consequências concretas e imediatas. O país sai de uma posição central no contexto majoritariamente progressista das décadas de 2000 e 2010 para atuar em meio a vizinhos com agendas conservadoras; a integração regional retrocede ou se reconfigura sob novos parâmetros — menos compadrio político travestido de “solidariedade continental”, mais competição econômica e securitária; pressões diplomáticas, fluxos migratórios e crises transfronteiriças se intensificam: problemas como narcotráfico, crime organizado e migração tornam-se desafios continentais; o debate interno de valores, costumes e identidade ganha urgência, especialmente numa sociedade diversa, plural e com tensões crescentes entre conservadorismo e progressismo como a brasileira.
Esses resultados eleitorais não parecem configurar mera transição política, tampouco simples fenômeno pontual ou circunstancial. Trata-se de um rearranjo sistêmico, com raízes econômicas, culturais e de segurança, que recoloca a América do Sul em novos trilhos ideológicos, econômicos e diplomáticos, com consequências estruturais para os países que mudaram de rumo e para os que, como o Brasil, convivem no mesmo espaço geográfico e político.
Nesse contexto, no qual a esquerda perdeu o monopólio do discurso moral e deixou de ser vista como guardiã natural dos direitos sociais, emerge uma direita que fala a língua da ordem, da segurança, da disciplina fiscal e de valores tradicionais — exatamente os pontos em que a esquerda mais se desconectou da população na última década.
Para o Brasil, a mudança impõe um dilema estratégico: adaptar-se ao novo ambiente ideológico do continente ou permanecer isolado em um projeto político cuja maré regional claramente recuou. A geopolítica também tem seus ciclos, e o atual — com agenda, ritmo e direção próprios — está sendo escrito por Milei, Kast, Noboa, Paz, Jeri, Peña (Paraguai) e outros líderes que, de forma mais ampla, encarnam a nova e moderna direita latino-americana, como Bukele (El Salvador).
Enquanto o continente gira para um conservadorismo pragmático, competitivo e disposto a reformas profundas, as forças políticas brasileiras de esquerda priorizam uma agenda pensada para a América do Sul de 20 ou 25 anos atrás — um cenário que não mais existe.
Consequentemente, a diplomacia nacional, ancorada em pilares ideológicos anacrônicos, se desconecta cada vez mais do ambiente político que se consolida ao redor. Corre o risco de falar sozinha em mesas onde já não tem maioria, perder iniciativas estratégicas para vizinhos mais ágeis e ver evaporar, lentamente, o minguante capital de liderança acumulado ao longo de décadas.
A região passa por realinhamento histórico, e os países que entenderem essa mudança sairão à frente na disputa por investimentos, influência e estabilidade. Os que insistirem em ler o presente com a lente do passado ficarão para trás. A pergunta, agora inevitável, é simples e perturbadora: o Brasil será protagonista desse novo ciclo ou se contentará em ser sua principal exceção — e talvez sua primeira vítima?
Marcos Degaut é doutor em Segurança Internacional, ex-secretário especial adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, ex-secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa e ex-secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior do Brasil.
Lindolpho Cademartori, diplomata de carreira, é mestre em diplomacia pelo Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Suas opiniões são estritamente pessoais e não necessariamente refletem as do MRE.
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Conteúdo editado por: Omar Godoy






