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Ocupação em Curitiba (PR), em 2016: segundo o IBGE, mais de 11 mil pessoas morreram por ano entre 2008 e 2019, vítimas de Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado
Ocupação em Curitiba (PR), em 2016: segundo o IBGE, mais de 11 mil pessoas morreram por ano entre 2008 e 2019, vítimas de Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado| Foto: Arquivo Gazeta do Povo

Enquanto o governo federal fala em um novo Brasil, com mais inclusão social e a retomada de “obras de infraestrutura que foram abandonadas ou ignoradas pelo governo anterior”, os vetos de Lula ao Novo Marco Legal do Saneamento ameaçam aprofundar um cenário de desigualdade regional, em que milhões de brasileiros mais pobres não têm acesso a água potável e a coleta e tratamento de esgoto. Um ranking dos serviços mostra que a maioria dos estados com os piores índices do saneamento básico se concentram nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, onde também estão as unidades da federação com PIB per capita abaixo da média nacional.

Se no Distrito Federal (que tem o maior PIB per capita do Brasil) 99% dos cidadãos acessam água potável, no Amapá (que registra uma das participações mais baixas no PIB brasileiro) apenas 32% da população tem acesso ao recurso considerado essencial. Quando o assunto é coleta de esgoto, o abismo é ainda maior: São Paulo, com a economia mais pujante do país, tem 92% da população atendida pelo serviço; já em Rondônia, que conta com metade do PIB per capita dos paulistas, somente 6% dos cidadãos são assistidos.

Para o levantamento, a Gazeta do Povo cruzou dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), cuja base mais recente é de 2021, com os últimos números divulgados pelo Sistema de Contas Regionais, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O raio-x regional (que pode ser acessado em um infográfico no fim da reportagem) também mostra que a incidência de doenças de veiculação hídrica é maior em estados e regiões com saneamento básico mais deficiente. Os índices de atendimento da população com esses serviços ainda têm ligação direta com o montante investido anualmente. De forma geral, as regiões Norte e Nordeste investiram menos que a média nacional no ano de 2021, enquanto Centro-Oeste, Sul e Sudeste investiram mais que a média brasileira.

Entre os três melhores estados em fornecimento de água e coleta de esgoto (São Paulo, Distrito Federal e Paraná), apenas o DF investiu menos que a média nacional em 2021: foram R$ 53,91 por habitante no ano, contra R$ 82,71 investidos na média por habitante brasileiro no período. São Paulo investiu R$ 126,50 por habitante/ano e o Paraná, R$ 121,62. Já os estados com piores índices de saneamento (Amapá, Rondônia e Pará) investiram respectivamente R$ 6,81, R$ 20,26 e R$ 47,25 por habitante em 2021.

Para o Brasil alcançar a universalização até 2040, seriam necessários alguns bilhões em investimentos na área. “Seria preciso investir R$ 203 por ano, por habitante, mais do que o dobro da média atual, somente para entrar no trilho da universalização. O saneamento é um setor de infraestrutura que exige certo aporte de capital. Os números mostram que os melhores indicadores estão atrelados a isso”, explica André Machado, coordenador de relações institucionais e comunicação da Trata Brasil, um think tank com interesse nos avanços do saneamento básico e na proteção dos recursos hídricos do país.

“Na macrorregião Norte, que tem o menor investimento, o atendimento de esgoto está na casa de 14% de coleta, sendo que 20% disso é tratado. No Sudeste, onde o investimento é quase o dobro, a coleta está em 80% e o tratamento em 58,6%”, completa.

Mais pobres são afetados

Quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água potável e 100 milhões são privados de coleta de esgoto. Outro calcanhar de aquiles do país é o tratamento do esgoto coletado, uma vez que hoje o país trata apenas pouco mais da metade do que é gerado (51,2%). Uma analogia da Trata Brasil ajuda a entender a dimensão do problema: é como se 5,5 mil piscinas olímpicas de dejetos fossem jogadas na natureza todos os dias.

De acordo com o think tank, a privação de saneamento no Brasil está “fortemente concentrada” entre a população autodeclarada parda e de baixa renda. O relatório “Benefícios Econômicos e Sociais da Expansão do Saneamento no Brasil”, publicado em novembro do ano passado, afirma que “em termos de renda, mais de 43% da população sem acesso à água tratada ou aos serviços de coleta de esgoto estavam em moradias com renda domiciliar per capita inferior ou igual a meio salário mínimo”.

Em um texto anterior, a Trata Brasil apontou que a diferença de renda entre pessoas com saneamento básico e aquelas que não tinham acesso aos serviços chegava a R$ 2,5 mil, em 2021. “O rendimento do trabalho das pessoas que moram em residências com saneamento básico é de R$ 3.038,06, em contrapartida a renda dos pessoas sem esse serviço é de apenas R$ 514,99, valor bem abaixo do salário mínimo de R$ 1.110 estipulado pela Medida Provisória nº 1.021/20, de 30 de dezembro de 2020.”

“O modelo de estatização do saneamento também é responsável pelo aumento da desigualdade social. Infelizmente, a falta de saneamento é preponderante nas regiões mais carentes. Inclusive, as ocupações ilegais, já consolidadas há mais de 10 anos, sequer são computadas nos indicadores de falta de saneamento. Sem saneamento básico, muitas mães carentes não conseguem trabalhar e precisam ficar cuidando dos seus filhos quando adoecem em razão das DRSAI [Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado], criando um círculo vicioso”, critica o colunista da Gazeta do Povo Paulo Uebel, empreendedor da área do saneamento, que já atuou em gestão pública municipal e federal.

Mortalidade x ganhos do saneamento

Um Atlas do Saneamento, divulgado pelo IBGE em novembro de 2021, afirma que, entre 2008 e 2019, as Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI) foram responsáveis por 0,9% de todas as mortes do país. Foram 135 mil óbitos no período, o que resulta em uma média de 11,2 mil mortes por ano. Doença de Chagas, diarreias e disenteria representam quase 81,5% dos óbitos por DRSAI. Outras causas são dengue, zika, chikungunya, leishmaniose, esquistossomose e leptospirose. “Esgoto a céu aberto colabora na proliferação dessas doenças, daí a correlação direta entre as enfermidades e o saneamento precário”, disse na ocasião Daiane Ciriáco, geógrafa do IBGE.

“Perpetuar a falta de água e esgoto tratados, portanto, é uma verdadeira maldade com pobres, negros, pardos, idosos, mulheres e crianças carentes, uma verdadeira maquina de exclusão social, que ainda pode matar milhares de inocentes”, analisa Uebel. Ele acrescenta que 11 mil mortes por ano representam “muito mais do que desastres que chocaram o Brasil nos últimos anos, como o de Brumadinho (que teve 270 mortos), Mariana (19 mortos) e do litoral norte de São Paulo no começo deste ano (65 mortos). Somadas, essas tragédias mataram menos do que 3 dias de falta de saneamento no Brasil. Mas a sociedade, e, principalmente, a esquerda radical, não se indigna com essas mortes”, acentua.

Embora o saneamento seja historicamente visto como uma área que “não dá voto”, por seu retorno de longo prazo, dados da Trata Brasil mostram que “cumprir com as metas de universalização do saneamento básico no país irá trazer benefícios líquidos na ordem de R$ 815,7 bilhões de reais em 19 anos (2021-2040), ou seja, já com os custos descontados”. O maior ganho projetado é no setor de produtividade do trabalho, com benefícios ultrapassando R$ 437 bilhões no período. “Isso significa que levar abastecimento de água potável e coleta e tratamento de esgoto para toda população brasileira vai além do que garantir qualidade de vida e a preservação do meio ambiente: é um ganho real para o país em termos econômicos”, afirma o estudo.

Os investimentos resultariam em um ganho anual de R$ 1,25 bilhão na área da saúde, com as melhorias das condições da população. Além de geração de emprego e renda e de impactos positivos na escolaridade, universalizar o saneamento também gerará ganhos reais em áreas como turismo e valorização imobiliária.

Nuances regionais

Apesar de o desafio do esgoto ser maior em regiões mais pobres, Machado destaca que há nuances regionais, como acontece na região Sul. Enquanto o Paraná coleta e trata 75% do esgoto, Santa Catarina “um estado pujante em inovação e superdesenvolvido” fica abaixo da média nacional no quesito. “Mesmo em estados próximos, existe alguma diferença. A principal evolução [do Ranking do Saneamento 2023 da Trata Brasil] foi Cuiabá, que fez um investimento grande e expandiu a oferta de esgotamento sanitário. A evolução de um ano para outro mostra que essas medidas estão tendo ação efetiva”, exemplifica.

Marco do Saneamento

Sancionado em julho de 2020, o Marco Legal do Saneamento permitiu nove leilões de concessões de serviços até outubro de 2022, o que resultou em cerca de R$ 72,2 bilhões em investimentos privados no setor. Segundo o governo federal, 19,3 milhões de pessoas de 212 municípios foram beneficiadas. O objetivo da legislação é que, até 2033, 99% da população brasileira tenha acesso à água potável e 90%, a tratamento e coleta de esgoto.

“Para atingir a meta urgente, o novo marco reforçou a possibilidade de prestação de serviços pela iniciativa privada. Afinal, o fracasso do saneamento no Brasil é resultado do serviço precário das estatais e da falta de investimentos no setor”, pondera Paulo Uebel. “O que pode impulsionar esses investimentos é justamente a iniciativa privada, por meio de privatizações, concessões e parcerias público-privadas (PPPs)”, acrescenta.

Em maio, a Câmara dos Deputados derrubou parte dos decretos de Lula que alteravam o Marco do Saneamento. Agora a discussão tramita no Senado. Entre as mudanças mais controversas do petista à legislação está o retorno da possibilidade de prestação do serviço sem a necessidade de licitação.

André Machado, da Trata Brasil, opina que, embora os vetos presidenciais não mudem as metas de universalização, é preciso garantir alguns pilares como a segurança jurídica e a garantia por parte dos operadores de que têm a capacidade de cumprir os serviços. “O investidor olhando de fora pode pensar duas vezes, porque as regras estão sempre em discussão no país”, analisa.

“Também existe a nuance de proporcionar uma competição sadia. Hoje existe essa narrativa ‘público ou privado?’. Mas as condições têm que ser dadas a todos os operadores. Existem bons cases públicos e privados e maus cases públicos e privados. Talvez o decreto privilegie as companhias públicas. É preciso tentar privilegiar as melhores soluções, seja de quem for. A Sabesp [empresa pública de São Paulo] ganhou uma licitação recentemente em Olímpia, competindo com os privados”, exemplifica.

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