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Lockdowns dão às pessoas a ilusão de estarem fazendo alguma coisa contra a pandemia, mesmo sem qualquer comprovação científica.
Lockdowns dão às pessoas a ilusão de estarem fazendo alguma coisa contra a pandemia, mesmo sem qualquer comprovação científica.| Foto: Pixabay

Em 1349, à medida que a Peste Negra se espalhava pela Europa, uma nova estratégia de controle de pandemia foi adotada em todo o continente. O protocolo foi criado com precisão pelos especialistas. Três vezes por dia, num total exato de oito horas, centenas de homens conhecidos como flagelantes marchavam em fila indiana pela cidade, usando capuzes com uma cruz vermelha e carregando chicotes de corda cheios de preguinhos. “Usando esses chicotes”, contou uma testemunha, “eles açoitam a própria carne exposta até que seus corpos fiquem feridos e inchados e com sangue escorrendo, respingando nas paredes próximas”.

Essa estratégia específica já não atrai as autoridades de saúde pública, mas o espírito dos flagelantes sobrevive. Em vez do autoaçoite, os reguladores de hoje defendem os lockdowns, que são menos sanguinolentos, mas causam um sofrimento social maior. Apesar de toda a conversa sobre seguir a ciência, as autoridades – e boa parte dos cidadãos – são incapazes de resistir à ideia primitiva de que a pandemia pode ser combatida por meio da penitência pública. Pense em duas estratégias usadas para se lidar com a Covid-19: estimular as pessoas a passarem mais tempo ao ar livre e no sol, produzindo vitamina D, o que comprovadamente protege contra infecções virais; ou fechar as empresas, privar as crianças da educação presencial e determinar que todos fiquem em casa, estratégia nunca antes testada e de eficácia questionável.

Que estratégia você usaria? Se você disse “vitamina D”, não tem futuro no mundo da saúde pública. Ainda que uns poucos pesquisadores apontarem o potencial da vitamina e defenderem a existência de programas de governo para distribuir suplementos durante a pandemia, as autoridades não se deram ao trabalho nem mesmo de sugerirem que as pessoas tomassem suplemento por conta própria. Em seu manual de controle da Covid-19, o Centro de Controle de Doenças (CDC, na sigla original) diz que “não há dados o bastante para recomendar ou desencorajar o uso de vitamina D”.

Mas de alguma forma o problema dos “dados o bastante” sumiu em se tratando de lockdowns e uso obrigatório de máscaras. Antes da pandemia, o consenso entre os especialistas era contrário a essas medidas, mas o consenso foi rapidamente ignorado na esperança de que esses sacrifícios ajudassem. Desde então, as evidências podem muito bem ser consideradas insuficientes, levando em conta a falta de estudos randomizados e a existência de dados inconvenientes mostrando que lugares submetidos a lockdowns não se saíram melhor do que os países sem medidas restritivas. E, levando em conta o que se sabe sobre a taxa de transmissão minúscula ao ar livre, é possível dizer com certeza que há evidências insuficientes para justificar decretos que mandem as pessoas ficar em casa ou que obrigam o uso de máscaras ao ar livre.

Independentemente de os lockdowns e decretos conseguirem ou não impedir a disseminação do vírus, eles definitivamente permitem que autoridades e cidadãos demonstrem que estão tomando medidas ousadas contra a Covid-19 — e quanto mais sofridas as medidas, mais virtuosos e heroicos eles se sentem. Sempre que surgem provas de que os lockdowns são ineficientes, os defensores têm uma resposta pronta à mão: nem todo mundo obedece às regras. Parem de pecar! Façam sua penitência!

Sair para uma caminhada ou tomar suplemento de vitamina D é fácil demais. Não há nisso dor, gloria ou poder cedido às autoridades de saúde pública e políticos, então eles raramente dão esses conselhos, apesar das provas de que a vitamina D ajuda o sistema imunológico contra infecções virais. Não é de surpreender que grupos com taxas desproporcionalmente altas de mortalidade por Covid-19 também tendam a sofrer mais de deficiência de vitamina D: os afro-americanos e outras minorias, obesos, moradores de asilos e idosos em geral. Os níveis de vitamina D tendem a diminuir com a idade e, como a vitamina é sintetizada no corpo por meio da exposição à luz do sol, as pessoas tendem a ter níveis menores se passam menos tempo ao ar livre ou se têm a pele escura demais para absorver a radiação ultravioleta do sol.

À medida que os dias se tornam mais curtos, no outono, os níveis de vitamina D das pessoas tendem a diminuir por conta da exposição menor ao sol, e essa é uma explicação para o fato de a temporada de gripe começar em outubro na Europa e nos Estados Unidos (enquanto a gripe ocorre o ano todo nos países tropicais). Para reforçar o sistema imunológico, os pesquisadores têm estudado os efeitos dos suplementos de vitamina D. Depois de analisar 25 desses estudos, os autores de uma meta-análise publicada no BMJ concluíram em 2017 que os suplementos realmente ajudam a evitar resfriados, gripes e outras doenças respiratórias.

Será que esses suplementos seriam capazes de proteger contra a Covid-19? Os pesquisadores de Chicago, da Indonésia, de Israel e de outros lugares descobriram que a deficiência em vitamina D é desproporcionalmente representada entre pessoas contaminadas pela Covid-19 e entre pacientes com quadros mais graves da doença. Num estudo clínico randomizado feito na Espanha, os pacientes com Covid-19 que receberam doses de vitamina D apresentaram uma chance menor de ter o quadro agravado do que o grupo de controle. “Considero cientificamente provado que os altos níveis de vitamina D protegem contra casos mais graves de Covid-19. Mas o mais importante é que temos provas de que níveis altos de vitamina D reduzem enormemente a circulação do vírus”, diz Mikko Paunio, epidemiologista e conselheiro médico do Ministério da Saúde e de Ações Sociais da Finlândia. Ele diz ter começado a tomar suplementos de 4.000 IU.

Tom Frieden, ex-diretor do CDC, concorda que os suplementos são uma boa ideia, ainda que sugira doses diárias entre 800 e 2.000 I.U. Ainda que não se tenha chegado a um consenso, escreveu ele, “a vitamina D pode dar alguma proteção” contra a Covid-19, sobretudo para os mais de 40% de norte-americanos que têm deficiência na vitamina. “Tomar um multivitamínico que inclua vitamina D, ou suplementos só de vitamina D, não vai lhe fazer mal e talvez até ajude”.

Ministério da Saúde de Israel recomenda a vitamina D contra a Covid-19 e o Serviço Nacional de Saúde da Escócia distribui suplementos de graça para a população que se protegeu no interior das casas durante a pandemia. Mas os demais governos não dão atenção a esses casos. Quando perguntaram a Anthony Fauci sobre a vitamina D, durante uma conversa pelo Instagram com a atriz Jennifer Garner, ele disse que tomava suplementos e que “não se importaria de recomendar” que ele fosse tomado contra a Covid-19, mas em suas coletivas de imprensa na Casa Branca ele prefere mandar que os norte-americanos usem máscaras e sacrifiquem prazeres como jantares em família durante as festas de fim de ano.

Essas medidas drásticas ao menos dão às pessoas a ilusão de estarem fazendo algo de útil – e, mesmo que as medidas se provarem inúteis, as autoridades podem sempre dizer que foram bem-sucedidos quando a pandemia perder força, como acontece um dia com todas as pandemias. Durante o pico de primavera, as infecções em Nova York já estavam em declínio quando o governador Andrew Cuomo anunciou seu lockdown, mas desde então ele diz ter “controlado o vírus” graças aos “enormes sacrifícios” do lockdown.

Se liderasse os flagelantes pelas ruas de Londres em 1349, ele também se orgulharia de seus feitos. Afinal, os flagelantes deram início ao seu ritual no fim de setembro. Dois meses mais tarde, a peste bubônica perdeu força. Para um líder e uma população já convencidos de que uma peste requer penitência, isso seria considerado ciência.

John Tierney é colaborador do City Journal e colunista de ciência no New York Times.

© 2020 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês
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