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O sincretismo religioso é uma constante na história do Brasil. Imagem ilustrativa.
O sincretismo religioso é uma constante na história do Brasil. Imagem ilustrativa.| Foto: joasouza/Bigstock

Bolsonaro repetiu na ONU a frase feita de que o Brasil é um país cristão. Institucionalmente, o Brasil é laico; demograficamente, é cristão. Como é feita a demografia? Pedindo aos brasileiros que identifiquem a própria religião. Mas há uma coisa que me incomoda, nesse método: só há espaço para um campo de religião. Se o censo permitisse marcar mais de uma religião, quantos brasileiros diriam ter somente uma? O próprio Bolsonaro talvez marcasse “católico e evangélico”, já que ele mistura as duas coisas e participa de ritos evangélicos, sem ter problemas em se considerar católico.

Meu incômodo não é novidade nenhuma. O antropólogo Thales de Azevedo, fiel fervoroso, já na década de 50 apontava que as procissões católicas não eram exatamente católicas, pois, para os devotos, Jesus e Oxalá eram a mesma pessoa.

Vá lá que esse sincretismo entre santos católicos e orixás seja mais frequente em regiões com muita população negra. Mas quantos católicos brasileiros não vão a sessões espíritas para saber notícias dos parentes no além? Ao arrepio dos teólogos, muito brasileiro se diz “católico e espírita”. O significado de “espírita”, a seu turno, já vai mudando pelo país. Na Bahia, que não tem grandes pruridos com a macumba, espírita significa kardecista; no Rio, se dizem espíritas os macumbeiros. Um censo preciso da religiosidade brasileira  daria um trabalho infernal!

Contratos com as entidades sobrenaturais 

No Brasil antigo, anterior à onda de imigração europeia, a coisa é assim: o fiel, em particular, firma pactos com uma ou várias entidades sobrenaturais. Os santos têm suas especialidades: Santa Luzia cuida problemas oculares. Santo Antônio providencia maridos. São Longuinho encontra objetos perdidos mediante três pulinhos. Barganhas ainda mais específicas podem ser feitas com promessas, em que o santo providencia algo de muito importante e recebe em troca um grande sacrifício do fiel.

Como as necessidades de um cristão são muitas, nada impede que ele desafogue os santos católicos peça coisas a entidades de origens variadas. Se Omolu, o orixá bexiguento, também cuida de doenças, por que não procurar o seu favor ao mesmo tempo que o de Santa Luzia? Na dúvida, as oferendas e rezas vão a todos os que puderem ajudar. Vamos rezar Ave Maria e jogar flores para Iemanjá, que assim não ficamos desassistidos.

Isso não é nenhuma novidade: somos parecidos com os romanos, que sincretizavam várias divindades (Vênus é Afrodite) e ainda faziam oferendas para os deuses dos inimigos antes da guerra (era suborno!). Encruzilhada, desde o Rei Sérvio de Roma, era o lugar de a plebe romana fazer suas oferendas. E o feitiço de amarração tem nome latino, defixio, porque a coisa existia entre os antigos.

Não é de admirar que o paganismo tenha deixado suas marcas no catolicismo. Vide o Midsummer, que virou o São João, e os santos altamente sincretizáveis com panteões pagãos. A bruxaria subsistia até a modernidade, claro. E para onde a Inquisição despachava as bruxas portuguesas? Para cá.

Na verdade, o próprio modelo de panteão, que o candomblé tem, nem existia na África. Surgiu no Brasil, em contato com esses santos de feições pagãs que os portugueses trouxeram. Na África, cada cidade tinha um orixá cultuado, sem panteão.

Na Idade Média, os doutores toleravam o modo paganizante como o vulgo tinha absorvido o cristianismo. Eles não temiam as bruxas, porque não acreditavam em seu poder. Na modernidade é que a Inquisição costumava queimá-las: aí, sim, os inquisidores começaram a acreditar no seu poder, achando que as entidades invocadas pelas bruxas eram o demônio. E dessa crença surgiu a intolerância ao paganismo.

No Brasil tradicional, o clero agia como os doutores medievais. A Constituição do Império do Brasil inclusive permitia liberdade religiosa. Os terreiros dos negros, porém, eram assunto policial. E isso porque os mandachuvas seculares morriam de medo dos feitiços.

Um terreiro poderia ser perseguido, enquanto outro seria protegido. Tudo dependia da clientela da mãe de santo. Quem quiser ler sobre isso, procure Medo do Feitiço, de Yvonne Maggie, referência no assunto. (Livro menos difícil de encontrar talvez seja o de Sílvio Rosário, um PM baiano que tinha à mão os documentos da corporação relativos a terreiros.)

Crente também tem medo! 

Agora, vemos aquelas polarizações simplórias e oportunistas dos progressistas, que tornam tabu o termo “cristofobia”, alegando que o único problema é a perseguição sofrida pelas religiões de matriz africana.

Ora, num discurso na ONU, convém falar de problemas mundiais. Não existe perseguição de umbandistas mundo afora, porque não existem grandes populações umbandistas mundo afora: candomblé e umbanda são religiões brasileiras. Existem religiões aparentadas, como a santería e vodu, as quais têm sorte variável pelo mundo: Hugo Chávez era adepto de macumba e catolicismo; Fidel Castro perseguia a santería, junto com o cristianismo.

Mas, caso queiramos olhar para o nosso umbigo brasileiro, teremos motivos para falar de cristofobia, sim. Cristofobia é como o racismo: no Brasil, negros enfrentam preconceito por causa de sua cor – que eles não escolheram! –, mas isso não é nada em comparação ao racismo de Estado que foi praticado pelos Estados Unidos e pela África do Sul.

No Brasil, evangélicos enfrentam preconceito por causa de sua fé – que eles escolheram no exercício do direito humano à liberdade de consciência –, mas isso não é nada em comparação ao que os cristãos sofrem na Ásia e na África. Ou até na Europa, onde muçulmanos intolerantes tocam fogo em igreja.

No Brasil, o grande problema é ser ou parecer pobre. E o fato de os negros descenderem de escravos, e de as igrejas evangélicas se concentrarem em favelas, faz com que negros e crentes sejam discriminados.

Progressistas esnobes inventaram o termo “racismo religioso” para falsear a realidade e transformar o antagonismo entre crentes e macumbeiros numa questão racial. Como se o preto pobre e o crente não fossem, muitas vezes, a mesmíssima pessoa.

Nesse esforço de dizer que os crentes são horríveis, aponta-se a intolerância religiosa como um problema muito peculiar dos crentes. Não é.

Os crentes brasileiros refazem hoje um percurso que os católicos fizeram de maneira sanguinolenta na modernidade: consideram adoradores do demônio aqueles que adoram divindades diferentes, em vez de simplesmente se aterem a boa teologia e considerar ineficazes os feitiços.

Já identifiquei em artigo a massa dos crentes como gente que tem origens no Brasil antigo; que em geral descende de índios, de negros, e dos europeus que chegaram aqui ainda na Renascença. Seus antepassados eram católicos pobres, que se converteram ao protestantismo no auge da teologia da libertação.

No Sudeste e no Sul, já existem muitos crentes de boa condição social, com nível superior e empregos de prestígio. No Nordeste, não é fácil encontrar um juiz crente.

Mas voltemos às massas crentes que estão nas favelas, aqueles graças aos quais todos os evangélicos são discriminados. Nos moldes do Brasil antigo, esses crentes também entendem a religião como um contrato particular que o fiel faz com um ser sobrenatural. A única diferença é que o contrato tem que ser exclusivamente com Jesus.

Se Lutero assistisse aos pastores neopentecostais na TV, ficaria de cabelo em pé. Eles literalmente vendem o acesso privilegiado a uma divindade muito benfazeja chamada Jesus, que dá prosperidade e felicidade familiar, além de curar depressão e ansiedade.

Em vários aspectos, lembram a Igreja medieval que enfureceu o monge alemão: os fiéis são muitas vezes analfabetos incapazes de ler a escritura, compram favores espirituais tal como antes se compravam  indulgências, e de quebra ainda levam para casa bugigangas santas, tal como os medievais adoravam comprar supostas lascas da cruz e ossos de santos.

O crente tem, em seus defeitos, muito do que tinham os católicos de outros tempos. Uma forte credulidade faz com que prejudiquem a si próprios (quando caem nas mãos de pastores picaretas), e aos outros (quando, temerosos, depredam terreiros).

A diferença é que, tirando certos casos de ausência de Estado (como o Complexo de Israel, liberado pelo STF e supostos defensores dos direitos humanos), os cretes nunca tiveram poder de Estado para mobilizar a força bruta numa perseguição religiosa.

É injusto reduzir todos católicos às violências perpetradas por alguns católicos em nome da religião. Por que seria justo reduzir todos os evangélicos às violências perpetradas por alguns?

Intolerância superestimada? 

Há poucas semanas, fui de Salvador a Cachoeira de ônibus. No caminho, chamou a minha atenção a pequena cidade de Santo Amaro, em que talvez houvesse mais igreja do que padaria, cada uma defronte de outra, a maioria evangélica. Tinha Universal e Assembleia, pelo menos. No meio delas, uma construção tinha uma inscrição em iorubá. Era um terreiro de candomblé!

Terreiros de candomblé costumam ser discretos e afastados. Esse ficava na rua, e tinha o nome pintado, do mesmo jeito que as igrejas evangélicas. Se o conflito fosse tão grande quanto dizem, os crentes das numerosas denominações evangélicas não deixariam aquele terreiro funcionar.

Gravei o nome do terreiro e pesquisei-o no Google em conjunto com a palavra “ataque”. Nenhum resultado apareceu. Descobri, isso sim, que o terreiro é muito ativo (inclusive em redes sociais), que tem contatos no estrangeiro e usa um ou outro jargão de acadêmico. Se tivesse ataque, eles poriam a boca no trombone e o movimento negro só falaria disso.

Na cidade de Cachoeira, vi placa em iorubá com oração para Oxóssi, exibida pelo artesão para quem quisesse ver, à porta de sua oficina. Também lá, a poucos metros, um crente, negro retinto, me pegou desprevenida na praça para tentar me chamar para a igreja dele. Nem eu dizer que era turista adiantou, porque na minha cidade devia ter a igreja dele.

E assim a gente entende por que tem tanta igreja evangélica, e tão poucos terreiros: crente faz proselitismo; macumbeiro, não. Ingressar num terreiro é uma complicação danada, com mil ritos e proibições. Virar babalorixá demora mais que virar padre, são sete anos contra quatro. Já virar pastor, a depender da denominação, é num pulo.

Assim, o cenário que se desenha é de haver muitos crentes pulando de denominação em denominação (sempre orbitando em torno dos poderes de Jesus), e uma comunidade estável de macumbeiros, que se parecem com os judeus no que concerne à ausência de novatos. Dá pra virar judeu? Dá, mas dá trabalho, e ninguém chama.

Isso é em cidades pequenas. Em Salvador, de vez em quando o bicho pega. Houve um bafafá quando os crentes jogaram trocentos quilos de sal numa pedra sagrada do candomblé, tombada pela prefeitura. Os crentes, tal como os macumbeiros, creem nos poderes mágicos do sal. Foi uma macumba gospel contra o orixá, que eles acreditavam – à maneira inquisitorial moderna – ser o demônio.

Eu tenho uma hipótese para explicar isso. Em toda religião, haverá os fanáticos barraqueiros. Como Salvador é uma metrópole cheia de gente, nela há um número suficiente de crentes barraqueiros para se reunir e fazer estrago. Além disso, as metrópoles têm o anonimato. Uma coisa é você fazer mal a um macumbeiro anônimo; outra é ir depredar a oficina do Seu Fulano, que te viu crescer e é amigo dos seus pais.

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