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Difamado pela esquerda com o apelido “Papa de Hitler”, Pio XII na verdade usou todos os recursos de que dispunha para condenar o nazismo e manter a paz.
Difamado pela esquerda com o apelido “Papa de Hitler”, Pio XII na verdade usou todos os recursos de que dispunha para condenar o nazismo e manter a paz.| Foto: Reprodução/ Twitter

No início de março, as autoridades do Vaticano finalmente autorizaram a abertura dos seus Arquivos Apostólicos (até pouco tempo chamados de “Arquivos Secretos”), juntamente com diversos outros arquivos da Santa Sé, para pesquisadores interessados no pontificado de Pio XII, uma das figuras mais controversas na história recente da Igreja Católica.

Eleito Santo Padre meses antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, a forma como ele conseguiu preservar a integridade da Cidade do Vaticano e sua neutralidade em meio ao domínio fascista e às subsequentes conquistas alemãs e aliadas foi por muito tempo tema de infindáveis debates. Ele chegou a ganhar o infame apelido de “Papa de Hitler” – dado pela Rádio Moscou no fim da Guerra e usado em 1999 pelo inglês John Cromwell no título de uma biografia do pontífice.

A abertura dos arquivos, anunciada pelo Papa Francisco há um ano, era uma antiga demanda tanto de seus detratores quanto daqueles que ansiavam por resgatar sua reputação.

Conflito suprarreligioso

Não dá para negar. Não foram poucos os católicos a apoiar, passiva ou ativamente, o rolo-compressor do nazismo à medida que ele esmagava a Europa. Por todo o Leste Europeu, da Polônia à Eslováquia, há vários exemplos de cristãos – tanto sacerdotes quanto de fieis – que ajudaram os alemães a chacinar seus vizinhos judeus, muitas vezes participando desses assassinatos, ou enviá-los aos campos de concentração.

Por outro lado, exemplos contrários também não faltam nos registros históricos. Na França e na Itália, por exemplo, membros do clero, entre eles muitos jesuítas, não pouparam esforços para salvar seus compatriotas e condenar a perseguição deles. O próprio Estado de Israel homenageou mais de 5 mil católicos poloneses por sua bravura na defesa dos judeus durante a guerra, entre eles muitos padres e freiras.

Anticomunista e antinazista

A história de oposição de Pio XII à perseguição aos judeus data de muito antes do seu papado. Em 1915, ainda com 39 anos, no cargo de Subsecretário de Estado do Vaticano, Eugenio Pacelli ajudou o Papa Bento XV a redigir um texto condenando os atos de antissemitismo na Polônia, insistindo que a lei cristã para que nos amemos uns aos outros também “deveria ser respeitada e observada com os filhos de Israel”.

Em 1919, nomeado núncio apostólico (espécie de embaixador do Vaticano) para a Bavária, Pacelli passou por uma série de experiências traumáticas envolvendo revolucionários comunistas, entre elas a invasão de seu gabinete por revolucionários armados e uma tentativa violenta do confisco de seu carro por parte do governo socialista da região.

No ano seguinte, Pacelli foi nomeado primeiro núncio apostólico da República de toda a Alemanha – então República de Weimar – e passou a se dedicar ao estabelecimento da chamada “Concordata”, um pacto que garantisse à Igreja Católica liberdade religiosa e preservasse seus privilégios, viajando por todo o território do país para se encontrar com fiéis.

Apesar do relativo fracasso político, ele teve grande sucesso no campo humanitário e diplomático e conseguiu estabelecer uma série de acordos, muitos deles até mesmo com a União Soviética, onde a igreja era ferozmente perseguida. Durante esse período, Pacelli desenvolveu uma grande afeição pela Alemanha, defendo o país do que via como injustiças cometidas contra ele depois da Primeira Guerra, a ponto de ser descrito postumamente como um ferrenho germanófilo.

Mas seu pesar diante do caos político que começava a destruir a Alemanha era visível. De acordo com o rabino e historiador David G. Dalin, dos 44 discursos que Pacelli fez na Alemanha como núncio papal, “40 denunciavam algum aspecto da ideologia nazista emergente”.

"Asco e aversão"

Em 1933, Eugenio Pacelli, já cardeal e agora Secretário de Estado do Vaticano, negociou uma concordata com o governo de Hitler para proteger os católicos alemães das perseguições antirreligiosas do novo regime. Com o início das perseguições aos estabelecimentos comerciais de judeus, Pacelli deu instruções ao núncio papal em Berlim para que protestasse contra a perseguição e tomasse medidas ativas em defesa dos judeus. De acordo com o embaixador britânico no Vaticano, Pacelli expressou seu “asco e aversão” pelo regime nazista e disse que lamentava a perseguição dos judeus pelo regime nazista.

Em março de 1935, ele escreveu uma carta ao cardeal Schulte, arcebispo de Colônia, na qual descrevia os nazistas como “falsos profetas, (...) proclamando-se com orgulho satânico serem os portadores de uma nova fé e de um novo evangelho que não é o Evangelho de Cristo”. Para Pacelli, os nazistas tentavam criar um “antagonismo mendaz entre a fidelidade à Igreja e à Pátria”.

No mês seguinte, falando diante de cerca de 250 mil pessoas em Lourdes, ele descreveu os nazistas como homens “possuídos pela superstição de raça e sangue” e declarou que “a Igreja não concorda em compactuar com eles, qualquer que seja o preço.” Alguns anos mais tarde, já em Paris, ele descreveria a Alemanha como “aquela nação nobre e poderosa, que maus pastores gostariam de desviar para uma ideologia de raça”.

Em 1936, Pacelli visitou o presidente Roosevelt nos Estados Unidos. Durante a viagem, espinafrou publicamente um padre e radialista responsável por transmissões antissemitas extremamente populares.

Durante seu período no cargo de Secretário de Estado do Vaticano, Pacelli publicou um total de 55 protestos contra violações nazistas da Concordata, entre elas a ideologia de raça, repetindo as palavras de Pio XI: “É impossível, para cristãos, participar do antissemitismo. (...) O antissemitismo é inadmissível. Espiritualmente, somos todos semitas”.

Com crescente preocupação

A pedido de Pio XI, juntamente com uma comissão formada por cardeais e bispos alemães, Pacelli ajudou a redigir a célebre encíclica Mit brennender Sorge (“Com crescente preocupação”). Composta por 12 páginas escritas em alemão, em vez do costumeiro latim, e com o subtítulo de “sobre a Igreja e o Reich alemães”, o texto condenava as violações da Concordata feitas pelo governo alemão, a “confusão panteísta”, o “neopaganismo”, além de outros tantos aspectos fundamentais do credo nazista. Nela, lê-se:

“Quem quer que exalte a raça ou o povo, ou o Estado, ou uma forma particular de Estado, ou os depositários do poder, ou qualquer outro valor fundamental da comunidade humana – por mais necessária e honrosa que seja sua função nas coisas do mundo – quem eleva estas noções acima de seu real valor e as diviniza até um nível de idolatria, distorce e perverte uma ordem do mundo planejada e criada por Deus; ele está muito afastado da verdadeira fé em Deus e do conceito de vida que aquela fé sustenta”.

Adiante, a encíclica diz que essa idolatria conduziria ao “conceito de um Deus nacional, de uma religião nacional”. O nome de Hitler nunca é citado, embora o texto se refira a um “profeta maluco” dotado de uma “arrogância repulsiva”. Mais de 300 mil cópias da encíclica foram mandadas em segredo para a Alemanha e foram lidas em todas as igrejas do país no Domingo de Ramos.

No dia seguinte, veio a resposta nazista. Agentes da Gestapo realizaram operações em todas as igrejas, confiscaram todas as cópias da encíclica que encontraram e prenderam as pessoas que tinham feito as cópias. Mencionar a encíclica tornou-se um crime. O jornal oficial do Partido Nacional-Socialista Alemão, Völkischer Beobachter, denunciou “o Deus-Judeus e seu representante em Roma”. A partir de então, a fúria do regime nazista contra a Igreja Católica só se intensificou. Centenas de monges foram presos e condenados em julgamentos públicos e secretos por acusações que iam desde “homossexualidade” até “corromper a juventude”. Um filme produzido pela Juventude Hitlerista mostrava homens vestidos como padres dançando num bordel.

Papado

Foi em meio a esse conflito aberto que Achille Ratti, Pio XI, morreu aos 82 anos, seis meses antes do início da Segunda Guerra Mundial. O Cardeal Pacelli, então já ocupando a função de camerlengo (administrador do Vaticano), foi eleito Papa. Tamanha era a hostilidade do regime nazista contra ele que Hitler tentou fazer uma espécie de lobby para evitar sua eleição e se recusou a enviar representantes para a sua cerimônia de coroação.

Assumindo o nome de Pio XII como forma de gratidão a seu antecessor, o novo Papa imediatamente começou a reagir à legislação antijudaica implementada por Mussolini, indicando acadêmicos judeus que tinham sido demitidos de universidades italianas para cargos no Vaticano, entre eles Giorgio Levi dela Vida, um estudioso do islã designado para catalogar os manuscritos árabes do acervo da Santa Sé.

Com a intenção de se sagrar o “Papa da Paz”, Pio XII tentou, sem sucesso, dissuadir os líderes europeus da guerra iminente. Após ver retornar às suas mãos a encíclica que seu antecessor estava prestes a publicar, Humani generis unitas (“A Unidade da Raça Humana”), Pacelli usou toda a sua habilidade como diplomata para preservar a neutralidade da Santa Sé e agir como mediador (uma decisão que seus críticos veem como sinal de indiferença). Ele convocou uma conferência de paz entre os líderes europeus, mas o convite foi ignorado. Pio XII, então, se encontrou com os cardeais alemães que estavam presentes ao conclave que o elegeu para se inteirar da situação atual da Igreja naquele país.

Esses encontros motivaram sua próxima encíclica, Summi Pontificatus, de outubro de 1939. Sem citar nominalmente o judaísmo nem qualquer regime político específico, Pio XII citou a Epístola aos Colossenses ao dizer que, na Igreja Católica, “não há grego ou judeu, circunciso ou incircunciso” e atacou frontalmente tanto o nazismo quanto o comunismo ao criticar o totalitarismo e os governos que, ao deificar o Estado, colocavam em perigo o espírito da humanidade.

Pio XII pregou ainda o retorno da fundação da sociedade humana à sua origem na lei natural, à sua fonte em Cristo, o único e verdadeiro soberano de todos homens e mulheres de todas as nações e raças. “Que época, mais do que a nossa, foi tão atormentada pela falta de espiritualidade e profunda indigência interior, apesar do progresso técnico e puramente civil?”, pergunta ele na encíclica.

Para o Sumo Pontífice, num mundo que trocou a cruz de Cristo por outra, que traz consigo a morte, a consagração universal a Cristo-Rei celebra uma “previdente sabedoria, [que] visa a sarar e enobrecer a sociedade humana e promover o seu verdadeiro bem”. Não faltaram menções à invasão da Polônia e à morte de não-combatentes. Diz a encíclica:

“Veneráveis irmãos, o momento em que vos chega às mãos esta nossa primeira encíclica bem pode ser qualificado, sob vários aspectos, de uma verdadeira “hora das trevas” (Lucas 22, 53) na qual o espírito da violência e da discórdia verte sobre a humanidade a sanguinolenta ânfora de dores inomináveis. Será porventura necessário assegurar-vos que o nosso coração, repassado de compassivo amor, está nesta hora bem próximo de todos os seus filhos, e especialmente dos atribulados, dos oprimidos e perseguidos? Os povos arrastados para essa trágica voragem, que é a guerra, estão ainda, por assim dizer, no “princípio das dores” (Mateus 24, 8), mas reinam já, em milhares de famílias, morte e desolação, pranto e miséria”.

O chefe da Gestapo prontamente respondeu à encíclica acusando-a de ser dirigida diretamente à Alemanha. Aviões das forças aéreas britânica e francesa decidiram jogar sal na ferida, lançando quase 90 mil cópias do documento sobre o Reich.

Imparcialidade

Pio XII, no entanto, continuava com sua meta pela imparcialidade (ao contrário de neutralidade que, segundo ele, indicava indiferença). O afeto que passou a nutrir pela Alemanha durante seus anos no país o motivou a fazer um convite formal ao Ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Joachim Ribbentrop, em março de 1940. Ribbentrop, único oficial do alto escalão nazista a visitar o Vaticano durante o papado de Pio XII, teve a péssima ideia de “dar uma bronca” no Pontífice por ficar do lado dos Aliados. Como resposta, ele ouviu uma lista das atrocidades cometidas pelos alemães contra cristãos e judeus, indicando “data, local e detalhes de cada crime”. Deu até no New York Times da época.

Essa imparcialidade, no entanto, não impediu Pio XII de informar ao governo britânico, no início daquele ano, que diversos generais alemães concordariam em derrubar o governo nazista se recebessem condições favoráveis. Nem de tentar evitar que Mussolini entrasse na guerra ao lado dos nazistas, a tal ponto que o ministro de Relações Exteriores disse que o papa “estava pronto para se deixar ser deportado para um campo de concentração, do que contrariar sua consciência”. Nem de denunciar aos Aliados as iminentes invasões nazistas da Bélgica, Holanda e Luxemburgo.

Pio XII preferiu evitar o conflito direto com os nazistas e adotar uma tática cuidadosa. Durante uma recepção ao representante americano, no início da guerra, por exemplo, ele se recusou a condenar abertamente as atrocidades nazistas e criticou “as atrocidades da guerra moderna”. Em seus pronunciamentos, ele temperava as críticas ao nacionalismo exacerbado responsável pela carnificina com um receio de parecer simpático aos grandes rivais da Alemanha de Hitler, os soviéticos – embora, curiosamente, não tenha conseguido deixar de expressar claramente seu repúdio à invasão da União Soviética pelas tropas nazistas.

O mais perto que Pio XII chegou de uma condenação aberta depois do início da guerra foi seu pronunciamento de Natal em 1942, em que expressou sua simpatia pelas “centenas de milhares de pessoas que sem culpa nenhuma da sua parte, às vezes só por motivos de nacionalidade ou raça, se veem destinadas à morte ou a um extermínio progressivo”.

Com o fim da Segunda Guerra e a derrocada do regime nazista, Pio XII viu seu grande inimigo se agigantar. Diante da ascensão do comunismo no Leste Europeu, o Vaticano se viu forçado a apelar a ativistas da direita anticomunista para formar um partido que representasse a chamada “democracia cristã”, evitando, assim, que a vida política italiana fosse tomada pelos partidos de esquerda recém-surgidos com a democratização.

Depois de passar anos recebendo vítimas de guerra e tentando lhes dar algum tipo de consolo, Pio XII se afastou da arena pública em parte por causa do desinteresse da sociedade moderna pós-guerra por questões religiosas e em parte por causa de sua saúde em declínio.

Pio XII morreu em 1958.

Servidor da Paz

Diversos judeus se posicionaram contra e a favor das posições adotadas por Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial. Na ocasião de sua morte, a ministra de Relações Exteriores de Israel e futura primeira-ministra aquele país, Golda Meir, enviou um telegrama ao Vaticano: “Compartilhamos a tristeza da humanidade... Quando o terrível martírio se abateu sobre o nosso povo, a voz do Papa se elevou em favor de suas vítimas. A vida do nosso tempo foi enriquecida por uma voz que falou claramente acerca das grandes verdades morais, acima do tumulto do conflito cotidiano. Choramos um grande servidor da paz”.

Para outros, se o Papa tivesse tomado uma atitude mais extremada ele talvez pudesse ter provocado uma reação ainda pior por parte do regime nazista, causando não só a morte de mais judeus quanto de católicos e, quem sabe, do próprio Pontífice.

Mas há quem diga que a postura de imparcialidade de Eugenio Pacelli foi um sinal de covardia. Não faltam livros que lhe imputam toda uma série de posições ideológicas, desde alguém que foi amedrontado por ameaças nazifascistas até um verdadeiro simpatizante responsável por coordenar nos bastidores as mais terríveis atrocidades.

O legado de Pio XII até hoje é motivo de arraigadas discussões. A proposta de canonizá-lo junto com o Papa João XXIII, em 2000, provocou tanta controvérsia que acabou sendo adiada.

Abertura dos arquivos

Em 2 de março de 2020, o Papa Francisco, depois de décadas sendo pressionado por historiadores e judeus do mundo todo, decidiu abrir os arquivos do Vaticano da época de Pio XII para pesquisadores e historiadores.

De acordo com o Bibliotecário-Chefe do Vaticano, o Cardeal José Tolentino Calaça de Mendonça, qualquer pesquisador, independentemente de credo, nacionalidade ou ideologia, será bem-vindo. “A igreja não tem medo de sua história”, disse ele, parafraseando a citação do seu Santo Chefe quando decidiu abrir os arquivos.

As críticas logo apareceram. Embora milhões de páginas estejam supostamente “disponíveis”, nem todas são “acessíveis”. Críticas à conduta de Pio XII em episódios como o ataque aos judeus de Roma são frequentes, mas documentos sobre a época não são encontrados. Para o bispo Sergio Pagano, prefeito do Arquivo, estudiosos terão que fazer um “julgamento histórico” e “o bem [que Pio fez] foi tão grande que se erguerá sobre as pequenas sombras”.

Já o rabino-chefe de Roma, Riccardo di Segni, acusou o Vaticano de selecionar cuidadosamente os trechos dos arquivos liberados para o público, visando moldar uma imagem positiva do pontífice. “Depois de afirmar que anos de estudo seriam necessários, as respostas agora aparecem no primeiro dia, como um coelho saindo da cartola de um mágico?”, perguntou ele. “Por favor, deixem os historiadores trabalharem”.

"Críticas apropriadas"

Ainda que o Papa Bento XVI, antecessor de Francisco, tenha reconhecido as “virtudes heroicas” de Pio XII, o Pontífice atual já declarou que nenhum milagre foi identificado – eliminando assim qualquer chance de beatificação ou canonização de Pio XII. De acordo com ele, Pio XII liderou a Igreja Católica durante um dos “períodos mais tristes e escuros do século XX”. Francisco está confiante de que a pesquisa histórica objetiva permitirá seu julgamento sob uma luz favorável, incluindo quaisquer “críticas apropriadas”.

Conteúdo editado por:Paulo Polzonoff Jr.
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