Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
História

O passado nazista da BMW

O logotipo da Bayerische Motoren Werke AG (BMW) é visto na sede da empresa em Munique, Alemanha, em 14 de março de 2023: a família controladora da empresa pediu um relatório sobre o passado nazista da empresa em 2011, mas historiadores criticaram o documento
O logotipo da Bayerische Motoren Werke AG (BMW) é visto na sede da empresa em Munique, Alemanha, em 14 de março de 2023: a família controladora da empresa pediu um relatório sobre o passado nazista da empresa em 2011, mas historiadores criticaram o documento (Foto: EFE/EPA/ANNA SZILAGYI)

Ouça este conteúdo

Criada em março de 1916, a Bayerische Motoren Werke tinha como missão fabricar motores de aeronaves, uma tarefa estratégica no contexto da Primeira Guerra Mundial. Com a derrota da Alemanha, a empresa suspendeu as atividades em 1918.

Retomou novamente em 1922 e logo no ano seguinte surpreendeu os visitantes do Salão de Automóvel de Berlim com a BMW R 32, que se tornaria a primeira motocicleta de sucesso comercial do mundo. O lançamento representava uma enorme novidade: agora a empresa com sede em Munique não produzia apenas os motores, mas veículos inteiros.

Em 1928, chegou a vez de começar a fabricar automóveis, começando pelo BMW 3/15. O resto é lenda: a marca se posicionou como um dos fabricantes de motos e carros mais respeitada do mundo. Mas esta a história tem um capítulo sombrio.

Mão-de-obra escrava

Em 1933, a companhia voltou a fabricar motores de aviões. Nada mais natural do que retomar a atividade que deu origem à empresa, num cenário de rápida industrialização e reconstrução das forças armadas do país. Ao longo da Segunda Guerra, o carro chefe da linha de montagem foi o motor BMW 801, que impulsionou os temidos caças alemães Focke-Wulf Fw 190.

Mais de 20 mil modelos da aeronave foram construídos, o que gerou, é claro, uma alta demanda pelo motor. A produção só foi possível porque a BMW contou com extenso financiamento governamental para ampliar o número de fábricas.

Outro fator foi determinante: a companhia utilizou a mão de obra forçada de estimadas 40 mil pessoas, fornecidas principalmente por Dachau, o mais antigo campo de concentração nazista, e que por mais tempo operou.

Como aconteceu com dezenas de empresas alemãs que se utilizaram deste recurso, inclusive as gigantes do setor automotivo, a companhia demorou, mas posteriormente admitiu seu envolvimento – e sua “grande parcela da responsabilidade”.

Na página de internet dedicada ao assunto, a empresa comenta: “Sob o comando dos nacional-socialistas, a BMW deixou de ser uma empresa de mobilidade para se tornar uma fabricante de armamentos e se tornou uma peça-chave na economia de guerra da Alemanha”.

E prossegue: “Durante a guerra, a gerência da empresa não teve escrúpulos em usar trabalho forçado e prisioneiros de campos de concentração para atingir a produção necessária. Os trabalhadores labutavam em condições terríveis, muitas vezes morrendo de fome ou exaustão. A BMW carrega uma grande parcela da responsabilidade por esses crimes, bem como um fardo de culpa por seu envolvimento neles”.

A BMW relata ainda que, num primeiro momento, buscou trazer para suas operações profissionais qualificados dos territórios ocupados pelo nazismo. “Trabalhadores da Europa Ocidental e Meridional recebiam, em sua maioria, melhor tratamento e remuneração do que aqueles da Polônia ou os chamados ‘trabalhadores orientais’, e as condições de vida e trabalho diferiam enormemente, dependendo de onde os trabalhadores vinham. Conforme a guerra progredia, no entanto, os ‘trabalhadores estrangeiros’ gradualmente perdiam seus direitos e privilégios e lentamente caíam no status de trabalhadores forçados”.

Em 1933, a empresa tinha 6.514 funcionários e gerava receita anual de 35,56 milhões de Reichsmark, equivalente a aproximadamente US$ 10 milhões na época (ajustando pela inflação, US$ 240 milhões atualmente, levando em conta que o câmbio do reichmark era mantido fixo de forma artificial pelo regime nazista). Em 1939, eram 26.918 pessoas e 275,5 milhões (aproximadamente US$ 110 milhões, ou US$ 2,6 bilhões em valores atuais). Em 1944, chegou ao total de 56.213 colaboradores (sendo que 29 mil eram trabalhadores forçados) e 750 milhões de Reichsmark em receita (aproximadamente US$ 300 milhões, ou US$ 5,4 bilhões em valores atuais).

Dinastia Quandt

Com a derrota do nazismo, a BMW mergulhou em crise, assim como havia acontecido depois do primeiro conflito mundial. Boa parte de suas instalações estava destruída pelos bombardeios aliados e a autorização para retomar a fabricação de motos só veio em 1948 – antes, a companhia sobreviveu fabricando panelas e bicicletas. No início dos anos 1950, a atividade com automóveis foi retomada.

Não foi o suficiente: ao fim da década, a companhia estava pronta para fechar as portas. E então surgiu Herbert Quandt. Ele adquiriu o controle da BMW e lentamente a recolocou nos eixos. Junto com ele, trouxe para dentro da companhia um vasto histórico de ligação com o nazismo.

Herbert, na verdade, carregava o legado de seu pai, Günther, que aderiu ao Partido Nazista no mesmo ano de 1933 em que Adolf Hitler chegou ao poder. Conseguiu se tornar responsável por gerenciar junto ao governo a gestão de recursos necessários para comprar e distribuir armamentos. Chegou a ser casado com Magda Friedländer, que posteriormente se tornaria esposa do poderoso ministro da propaganda, Joseph Goebbels, com quem se suicidaria em 1945, depois de matar os seis filhos do casal.

Günther não apenas se valeu de trabalho escravo em suas fábricas de baterias, como também recebeu autorização para se apropriar de bens de judeus por toda a Europa. Quando a guerra acabou, ele detido em 1946 e julgado por cometer crimes de guerra, mas inocentado e liberado em 1948.

Ao morrer, em 1954, deixou ao filho uma fortuna, que ele utilizou para adquirir a BMW e transformar a marca, que passou a ser reconhecida pelo padrão luxuoso de seus modelos. Assim como Herbert, os demais integrantes da família também se beneficiaram. Formaram uma verdadeira dinastia nos negócios da Alemanha, com participação acionária expressiva em várias das maiores empresas do país.

Depois que a BMW começou a admitir detalhes do próprio passado, os próprios Quandt começaram a fornecer informações sobre o histórico da família. Em 2011, a família contratou um grupo de pesquisadores para realizar um estudo independente, de 1.200 páginas. O trabalho concluiu que a família utilizou mais de 50 mil trabalhadores forçados, com altíssimas taxas de mortalidade, muitas vezes por execução. O relatório não menciona a BMW, mas sim as atividades da família antes da aquisição. Mas a família segue até hoje no controle da companhia.

Foto de arquivo sem data mostrando um trabalhador escravizado produzindo armas no campo de concentração nazista em Dachau.Foto de arquivo sem data mostra trabalhadores escravizados produzindo armas no campo de concentração nazista em Dachau. (Foto: EFE)

Dinheiro manchado

Como aponta o jornalista David de Jong no livro “Bilionários nazistas - A tenebrosa história das dinastias mais ricas da Alemanha”, o documento não se mostrou confiável. “O que me impressionou durante minha reportagem foi a contínua falta de transparência histórica entre membros do ramo mais rico da dinastia Quandt, mesmo depois que o estudo encomendado pela família – com o objetivo professado de ‘abertura’ – foi publicado”, ele reporta.

É uma postura comum entre as grandes empresas de empresários que se consolidaram com o nazismo e conseguiram fortalecer suas posições depois, diz ele.

De Jong apresenta um exemplo significativo: “Em 8 de janeiro de 1955, foi realizada uma cerimônia em homenagem a Günther Quandt na sala de reuniões da Universidade Goethe de Frankfurt. Hermann Josef Abs – um dos banqueiros mais influentes do Terceiro Reich, que agora, como presidente do Deutsche Bank, estava logo se tornando o financista mais poderoso da Alemanha Ocidental – tinha isto a dizer de Günther em seu elogio fúnebre: ‘Ele nunca se submeteu servilmente ao Estado dominador’. Era o oposto do que Abs havia dito sobre Günther durante a pródiga festa de sessenta anos do magnata em Berlim, em 1941. Naquele momento, falando para a elite nazista, o banqueiro elogiou o servilismo de Günther: ‘Mas sua característica mais marcante é a fé na Alemanha e no Führer’”.

E foi assim que muitas outras dinastias se formaram e se solidificaram desde a década de 1930. “Alguns de seus herdeiros não possuem mais empresas: simplesmente administram a riqueza herdada”, constata o jornalista. “Mas muitos são donos de marcas famosas, cujos produtos cobrem o globo — dos carros que dirigimos ao café e à cerveja que bebemos, às casas que alugamos, à terra em que vivemos e aos hotéis em que ficamos durante as férias ou em viagens de negócios”.

VEJA TAMBÉM:

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.