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Geração “mi-mi-mi”

As políticas contra o bullying foram um tiro pela culatra? 

Em 2016, Facebook lançou ferramenta para apoiar escolas no combate ao bullying.
Em 2016, Facebook lançou ferramenta para apoiar escolas no combate ao bullying. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasi)

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Nos últimos anos, o combate ao bullying tornou-se prioridade nas escolas, com a criação de políticas, campanhas e programas de prevenção.  

Em 2015, por exemplo, a Lei 13.185 instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática, que obriga escolas, clubes e agremiações a adotar medidas contra o bullying. A proposta é promover ações educativas e capacitações voltadas a pais, alunos e professores, com o objetivo de tornar o ambiente escolar mais respeitoso e inclusivo.

No entanto, segundo psicólogos e educadores com experiência clínica, os efeitos podem estar indo na direção oposta. Em vez de fortalecer os jovens, essas políticas estariam contribuindo para a formação de indivíduos mais frágeis diante das frustrações naturais da vida em sociedade.  

Até que ponto essas políticas estariam contribuindo para tornar os jovens emocionalmente mais frágeis?  

Estudos sugerem que o excesso de proteção pode ter o efeito inverso do pretendido, enfraquecendo a capacidade das novas gerações de lidar com frustrações inevitáveis da vida social. 

Cientistas alertam para más políticas antibullying 

Às vezes o remédio é pior do que a doença. Por isso, alguns cientistas passaram a estudar políticas antibullying que, em vez de contribuir para suprimir as práticas de bullying ou fortalecer os indivíduos fragilizados, acabaram tendo o efeito inverso.

Em um estudo da Universidade de Groningen, nos Países Baixos, os autores observaram efeitos adversos das normas escolares antibullying sobre o bem-estar psicológico e a adaptação escolar das vítimas.

O estudo, de 2018, concluiu que o sofrimento emocional das vítimas era intensificado em escolas com programas antibullying visíveis e abrangentes, em comparação com as vítimas em escolas de controle que adotam uma abordagem mais rotineira, que eles chamaram de “cuidado como de costume”. 

Os pesquisadores acompanharam 4.356 alunos de 245 turmas em 99 escolas ao longo de um ano para avaliar um programa de combate ao bullying. Depois, dividiram as escolas em dois grupos de forma aleatória entre as que receberiam programas antibullying, e as que manteriam com o “cuidado como de costume”. O processo usado, chamado ensaio clínico randomizado, teve por objetivo garantir que os resultados não fossem influenciados por diferenças individuais entre os alunos.  

Da observação, os autores concluíram que os alunos vítimas de bullying nas escolas com intervenção antibullying apresentaram mais sintomas de depressão e menor autoestima após um ano. Esse efeito foi maior do que entre os alunos das escolas que seguiram a rotina normal, sem o programa, conhecida como abordagem de “cuidado como de costume”. 

Outra análise de 2022, na Inglaterra, chegou a resultados semelhantes. Publicado na Associação para a Saúde Mental da Criança e do Adolescente (The Association for Child and Adolescent Mental Health), o levantamento científico apontou que intervenções antibullying têm pouco efeito na redução de sintomas como ansiedade ou depressão. “As intervenções apresentam pequeno impacto na redução desses sintomas. Componentes baseados em apoio social ou entre pares podem ser mais eficazes para melhorar a saúde mental dos alunos”, diz o artigo. 

A linha tênue entre proteção e aprendizado emocional 

O doutor em Psicologia Fernando José Silveira analisa que as políticas de prevenção têm êxito “quando as políticas incluem educação socioemocional e estratégias de enfrentamento ativo.” Porém, ele observa que, com frequência, há “um viés excessivamente protetivo, que evita o desconforto em vez de ensinar como gerenciá-lo.” 

Para o psicoterapeuta, que também leciona Neuropsicologia no Instituto de Pós-Graduação (IPOG), o contato controlado com pequenas frustrações é essencial ao desenvolvimento psíquico: “Psicologicamente, a exposição graduada a pequenas frustrações é fundamental para o desenvolvimento da resiliência, autorregulação e tolerância emocional.”  

Quando esse contato é evitado, surge o que ele chama de “fragilidade aprendida”, uma condição em que o jovem passa a interpretar qualquer tensão social como ameaça, comprometendo a autonomia emocional.  

“Isso pode levar a jovens com baixa tolerância a críticas, frustrações ou divergências, dificultando a adaptação a ambientes menos protegidos, como o mercado de trabalho ou a vida adulta”, reforça a pedagoga Cheila Alves Dias, também Especialista em Terapia Cognitivo Comportamental.  

O perigo de patologizar o comportamento humano 

Nem todo comportamento juvenil aparentemente hostil é condenável. Na Coreia do Sul, uma pesquisa realizada com 1.373 adolescentes de 54 salas de aula em escolas de ensino médio indicou que os jovens vitimizados experimentaram um nível mais baixo de sintomas depressivos em salas de aula onde a vitimização era mais comum.  

Mas um detalhe chama a atenção: o que funcionou nesses casos foi a técnica aplicada. Segundo a análise sul-coreana, os alunos vítimas de bullying relataram menos sintomas depressivos, em média, em salas de aula quando havia comportamento de defesa orientado para o bullying (ou seja, confrontar o agressor), em vez de orientado para a vítima (ou seja, confortar a vítima). 

Para explicar esse fenômeno, Silveira observa que há um risco crescente de achar que comportamentos normais de confronto, humor ou competitividade, sejam doentios, confundindo manifestações naturais da vida social com agressões.  

O psicólogo defende que é preciso distinguir comportamentos antissociais, que causam dano real, de comportamentos sociais em aprendizagem, que envolvem erro e correção. Essa distinção é crucial, pois, quando o desconforto é suprimido, “impede-se a formação da resiliência e da empatia genuína.” 

Cheila Dias, professora há 28 anos em Planaltina, no interior do Distrito Federal, acredita que é necessário diferenciar bullying de conflitos pontuais, para ajudar os alunos a compreender limites, empatia e assertividade. A proposta da educadora é “fazer com que o aluno seja agente ativo nos projetos desenvolvidos na unidade escolar, facilitando o desenvolvimento de autonomia e de responsabilidade”. 

Superproteção emocional e o adiamento do sofrimento 

Reconhecer aspectos difíceis da própria personalidade (como vaidade, inveja, fracasso ou mediocridade) pode ser um processo delicado, mas essencial para o crescimento pessoal. Para a Cheila, o primeiro passo é acolher essas constatações com honestidade, “sem negá-las nem dramatizá-las”, lembrando que imperfeições fazem parte da condição humana. 

Em vez de se entregar ao vitimismo ou à autocrítica excessiva, Cheila propõe uma mudança de perspectiva: transformar o julgamento em uma postura investigativa. A chave está em trocar a pergunta “como posso me livrar disso imediatamente?” por “por que isso existe em mim?”, o que abre espaço para autoconhecimento e transformação real.  “O equilíbrio está em proteger sem impedir o enfrentamento gradual da realidade”, resume Cheila Dias. 

Já Silveira alerta para os riscos da superproteção emocional, cada vez mais comum nas escolas e redes sociais, pois “não elimina o sofrimento, apenas o posterga e intensifica.” Ao evitar experiências incômodas, impede-se o desenvolvimento da autoeficácia emocional, a confiança de que se é capaz de lidar com o que sente. Ele propõe o aprendizado de “sofrer de forma funcional” e destaca que, sem esse preparo, o sujeito se torna mais vulnerável a crises. 

 No contexto clínico, Silveira aponta que a saída para o ciclo da vitimização está na “autocompaixão ativa”, que envolve três atitudes: reconhecer a própria limitação; assumir responsabilidade sem autodepreciação; e engajar-se em mudança real, diferenciando culpa de falta de validação. 

Ao poupar o indivíduo do confronto com pequenas frustrações e patologizar interações típicas da convivência social, essas abordagens podem comprometer o desenvolvimento emocional dos jovens.  

Como mostraram estudos e especialistas, o desafio não está em eliminar o sofrimento a qualquer custo, mas em preparar as novas gerações para enfrentá-lo.

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