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Não precisa ser especialista: basta ler os comentários de praticamente qualquer coisa publicada na internet para ver que as mensagens negativas abundam. A Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, criada pela ONG Safernet Brasil, recebe uma média de 2,5 mil denúncias por dia a respeito de páginas contendo evidências dos crimes de pornografia infantil ou pedofilia, racismo, neonazismo, intolerância religiosa, apologia e incitação a crimes contra a vida, homofobia e maus tratos contra os animais. Só em 2017, a Central recebeu 63,7 mil denúncias envolvendo 32,9 mil páginas distintas.

Não são apenas os números de denúncias que impressionam. Segundo o Dossiê das Intolerâncias nas Redes, elaborado pela agência de comunicação Nova/SB, analisando um total de 215,9 mil menções em redes sociais, 77% delas foram consideradas negativas (preconceituosas ou reforçando discursos de ódio). Grande parte das postagens examinadas são do Twitter (98,1%), seguido pelo Instagram (1,5%) – segundo a agência, o Facebook não aparece na lista porque a maioria dos seus dados não são públicos. 

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E as consequências para quem ultrapassa limites na internet podem ser imediatas. No ano passado, o jogador de futebol britânico Alfie Baker foi banido por sete meses por tuitar uma piada de mau gosto sobre a morte da filha do jogador de um time adversário, Harry Arter. “Um grande hype por apenas uma decepção, como os nove meses que antecederam o nascimento da sua filha”, escreveu. Segundo a BBC, Renee, a filha de Arter com a parceira, Rachel, nasceu morta em dezembro de 2015. 

Baker, que posteriormente pediu desculpas pelos “comentários vergonhosos” e disse que aceitaria qualquer punição que lhe fosse imposta, acabou demitido dos clubes Hitchin Town e Codicote FC, para quem estava emprestado. Ele também recebeu uma multa de £250. 

Em outro caso de grande repercussão, em março, o jornal “O Globo” relatou o caso do executivo Milton Vavassori Junior, demitido da empresa Promarc Technology Corporation depois de fazer um comentário misógino em seu perfil no Twitter. 

Ele respondeu a uma postagem sobre feminismo de outra usuária da rede dizendo que sentia “saudade do tempo que mulher dava a b* e não opinião”. A vítima entrou em contato com a Promarc por e-mail e o executivo foi demitido. "Foi uma surpresa para nós. Nunca recebemos nenhuma reclamação sobre ele, por isso estranhamos muito. Estamos estranhando até hoje", declarou ao Globo o representante da companhia em São Paulo, Marco Aurelio Modelli. 

Explicação psicológica 

Mas o que está por trás disso? Por que algumas pessoas que se comportam bem na "vida real" às vezes se comportam mal na internet? Para a psicóloga e membro do Conselho Regional de Psicologia do Paraná, Semiramis Amorim Vedovatto, isso pode ser explicado pela força da aceitação coletiva, descrita por Freud em "Psicologia das massas e análise do eu", de 1921. "A massa dá a sensação de proteção social, que legitima as ações. É isso que explica um pouco esse fenômeno nas redes sociais", opina. 

De acordo com Semiramis, não é possível dizer que as pessoas boas se tornam ruins nas redes sociais. No entanto, uma pessoa sociável nas relações pessoais pode se transformar ao se comunicar por uma tela de computador ou de celular e ter atitudes deploráveis. "O que acontece é que, pessoalmente, o freio social as impede de emitir juízo nas suas relações", diz a psicóloga. "O mundo online dá uma sensação de impunidade, anonimato e banalidade do mal. Esse comportamento de ódio – caracterizado por qualquer ato que inferioriza uma pessoa usando características como etnia, gênero, religião, orientação sexual, nacionalidade – generaliza a discriminação e a intolerância às diferenças". 

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O apoio de pessoas que pensam da mesma maneira – fenômeno reforçado pelos algoritmos das redes sociais, que nos colocam em contato com conteúdos cada vez menos diversos – leva à diminuição da racionalidade e ao aumento da reatividade emocional. Já quando se está em um ambiente sem tantos pares, os freios sociais são maiores. "As pessoas têm esses pensamentos, elas apenas não os expressam", acrescenta. 

Punição legal 

Ainda que ocorram no ambiente digital, essas atitudes têm ligação direta com tudo o que acontece fora dele. No dia 10 de maio, Fernando Oliveira (conhecido como Fefito) viu chegar ao fim um capítulo assustador de sua história ao saber da prisão preventiva de Marcelo Vale Silveira Mello, durante a Operação Bravata, da Polícia Federal, que investiga crimes online. Em setembro passado, Mello enviou uma mensagem para o e-mail profissional de Fefito – que é colunista dos jornais "Folha de S. Paulo" e "Agora" e apresentador dos programas "Estação Plural", na TV Brasil, e "Mulheres", na TV Gazeta – ameaçando-o de morte. 

"Alguém me mandou um e-mail dizendo que sabe de todos os meus horários, que vai descarregar um 38 em mim por um único e simples fato: eu sou gay",escreveu em sua página no Facebook, à época. Além de chamá-lo de "viado" e "aberração", Marcelo avisava ao jornalista que "não adianta fugir ou se esconder (muito menos abrir b. o. [boletim de ocorrência])", já que ele seria "inimputável". Fefito denunciou a ameaça e recebeu diversas mensagens de fãs mostrando que Mello já havia sido condenado por racismo e pedofilia na internet em 2013, como parte da Operação Intolerância, também da PF. 

Alguns meses depois, o apresentador foi alvo de uma nova ameaça: dessa vez, era oferecida uma recompensa de R$ 10 mil para quem matasse Fefito. Apesar do medo sentido pelos amigos e familiares, ele não se deixou abater. "Quando essas ameaças aconteceram, eu coloquei na minha cabeça que essas pessoas não vão me colocar de volta no armário, que eu não vou me trancar em casa", conta. 

Discurso de ódio 

No despacho que autoriza a prisão preventiva de Mello, o juiz Marcos Josegrei afirma que o conteúdo disseminado por ele na internet é "um interminável festival nauseante de agressões, impropérios e estimulação às mais diversas violações aos direitos humanos". "Os envolvidos [nos crimes investigados pela Operação Bravata] aparentam possuir o prazer mórbido de disseminar sandices a um número indeterminado de usuários do ambiente virtual, como se a sua repetição contínua ao longo dos anos as tornasse legítimas, aceitáveis ou passíveis de defesa", escreveu. 

Tudo é vida real 

Fefito, que tem que lidar constantemente com comentários homofóbicos nas redes sociais, conta que sofreu muito bullying no tempo de escola e que, ao longo da vida, foi criando uma "casca grossa" contra esse tipo de agressão. "Naquela época eu me odiava muito. Hoje eu tento ressignificar", diz. 

Muitas vezes nos referimos a coisas que acontecem fora da internet como "na vida real" ou "no mundo real", o que não ajuda a humanizar as relações online. Afinal, as interações entre pessoas nas redes sociais são tão reais quanto as que acontecem em uma mesa de bar, mas podem não parecer. "A minha vida não é um video game em que eles [os agressores] ficam na frente de uma tela e ganham ponto para quem xinga mais ou xinga menos. É importante que essas pessoas saibam que tem alguém do outro lado". 

Ser o alvo desse tipo de violência na internet pode ter consequências sérias, com danos psicológicos e emocionais como baixa autoestima, insônia, hipertensão, depressão, e até mesmo levar ao suicídio. 

Levantando a bandeira da liberdade de expressão, muita gente extrapola e parte para o discurso de ódio. Como saber a diferença entre uma coisa e outra? "O limite é quando o que eu penso não vai agredir, ferir ou atingir outra pessoa", simplifica Semiramis. Ou seja, vale a velha máxima: a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro. 

Efeito de desinibição online 

Uma das explicações para as diferenças de comportamento na internet é o efeito de desinibição online, descrito pela primeira vez em um artigo publicado em 2004 na revista "CyberPsychology & Behavior". John Suler, professor de psicologia na Rider University, nos Estados Unidos, apontou seis fatores que influenciam a falta de restrição que uma pessoa sente ao se comunicar online quando comparado com a comunicação pessoalmente: anonimato dissociativo, invisibilidade, assincronicidade, introjeção solipsista, imaginação dissociativa e minimização da autoridade. 

O anonimato possibilita que as pessoas desassociem o seu comportamento na internet das suas interações fora dela. A invisibilidade, por sua vez, é possibilitada pela própria natureza da maioria das relações online, em que uma pessoa não vê com quem está se comunicando. A assincronicidade – presente na comunicação não instantânea – dá a chance de responder a um tópico, fazer logoff e seguir com o seu dia como se aquela ação tivesse se encerrado. 

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Já a introjeção solipsista acontece quando eu leio uma mensagem de outra pessoa como uma voz dentro da minha cabeça, ou seja, como se a presença e a influência dessa pessoa tivessem sido assimiladas pela minha psique. A imaginação dissociativa se dá quando, consciente ou inconscientemente, indivíduos acreditam que pessoas reais passam a ser “personagens imaginários” que eles "criaram" e com quem interagem em um espaço diferente, em uma dimensão de fantasia separada das exigências e responsabilidades do mundo real. Por fim, a minimização da autoridade se dá quando os fatores que dão poder a figuras de autoridade (roupas, linguagem corporal e a pompa de certos ambientes) estão ausentes em conteúdos exclusivamente de texto.

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