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Manifestação pró-vida em frente à Suprema Corte dos Estados Unidos, em janeiro
Manifestação pró-vida em frente à Suprema Corte dos Estados Unidos: é preciso repensar estratégias| Foto: EFE/EPA/SHAWN THEW

Se, como sugere o vazamento do voto preliminar do juiz Alito no caso Dobbs versus Jackson [N/T: trata-se de um caso que desafia a constitucionalidade da Lei da Idade Gestacional do Mississippi, onde a maioria dos abortos é proibida após 15 semanas de gestação), a Suprema Corte estiver prestes a derrubar quase cinquenta anos de decisões que alegam que o acesso ao aborto é um direito fundamental garantido pela Constituição dos Estados Unidos, de fato haverá muito o que comemorar. Tal movimento servirá, sem dúvida, para tornar os EUA uma sociedade mais justa, onde suas principais instituições políticas não serão mais orientadas para proteger a injusta tomada de vidas inocentes.

Mas, como Matthew Lee Anderson escreveu recentemente em seu boletim informativo, a ocasião não exige apenas celebração – ou, talvez melhor, trata-se de uma celebração misturada a uma avaliação realista do caminho à frente. Pois o objetivo não era, nem poderia ser, simplesmente a reversão de Roe [versus Wade] e Casey [versus Planned Parenthood; que confirmou o veredicto de Roe], nem era, nem poderia ser, uma mera reforma de nosso regime jurídico. O objetivo é, e sempre deve ser, a criação de uma ordem social, política, econômica e legal na qual toda vida humana seja, como Richard John Neuhaus costumava dizer, “protegida pela lei e bem-vinda à vida”. Alcançar esse objetivo será muito difícil, mais difícil do que “meramente” reverter decisões legais injustas.

Obviamente, o que uma decisão de Dobbs anulando Roe e Casey fará em termos práticos é, em grande parte, devolver a questão do aborto às legislaturas estaduais. Claro que haverá esforços para codificar as garantias do direito ao aborto no Congresso ou para usar o poder executivo para esse fim, mas o principal campo de disputa será em nível estadual. E aí, a questão será principalmente “democrática”, no sentido de que serão as maiorias democráticas e seus representantes que determinarão a forma da lei do aborto. Isso significa, no curto prazo, que alguns estados vão impor restrições significativas e outros serão totalmente permissivos, muitas vezes até destinando recursos públicos para subsidiar serviços de aborto. Grupos pró-vida fizeram um bom trabalho no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, movendo a opinião pública para o lado pró-vida (ajudados pelo compromisso dos defensores do aborto com a proteção de procedimentos extremos e impopulares, como abortos parciais).

Mas se o movimento pró-vida quiser progredir em certos estados – como Nova York, Califórnia e Illinois – onde há fortes maiorias a favor do aborto e grande número de operações, há um trabalho significativo a ser feito. Duas coisas vêm à mente a esse respeito. Primeiro, o movimento pró-vida precisa se reconstruir como um movimento que vai além das divisões partidárias. Em segundo lugar, também precisa intensificar seu compromisso com a construção de uma cultura na qual a vida seja apoiada e encorajada.

Além das divisões partidárias 

É claro que, neste momento, o Partido Democrata parece profundamente comprometido com a extensão dos direitos ao aborto de maneiras que só podem ser descritas como “extremistas”. Mas vale a pena reconhecer que isso ocorre apesar dos eleitores democratas regulares, não por causa deles. É bem verdade que a liderança do partido, tanto quanto posso dizer, está fora de sintonia com as bases, e o movimento pró-vida deve ver isso como uma oportunidade. Trata-se, contudo, de uma chance para tentar reformular a direção do Partido Democrata, não de uma oportunidade para tentar recrutá-los para um partido republicano (parcialmente) pró-vida. Talvez isso aconteça em alguns casos, mas a experiência dos últimos cinquenta anos com relação aos cristãos afro-americanos sugere que confiar no realinhamento partidário pode não ser uma estratégia vencedora.

Vale a pena enfatizar aqui que essa divisão racial, onde os afro-americanos se sentem alienados de um movimento pró-vida politicamente conservador e desproporcionalmente branco, é algo que deve, urgentemente, ser superado. Historicamente, os protestantes negros nos Estados Unidos se viam como pró-vida e, no entanto, são amplamente inexistentes no movimento atual e aparentemente não são eficazes em mover as posições do Partido Democrata a respeito do aborto, mesmo que sejam cruciais para o sucesso político democrata. Um país em que os cristãos negros são capazes de exercer sua influência dentro do Partido Democrata nas questões da vida é aquele em que podemos fazer progressos reais, mesmo em lugares que atualmente parecem quase sem esperança.

Mas há um outro problema aqui. Na medida em que Dobbs de fato anula Roe e Casey, os pró-vida alegarão - com boas razões - que tiveram sucesso porque se juntaram ao Partido Republicano e, ao menos no que tange as principais organizações nacionais contra o aborto, especialmente com Donald Trump. Embora seja verdade que quase qualquer presidente republicano teria indicado juízes como Gorsuch e Barrett, a intransigência de Trump ao apoiar seus indicados provou ser de valor real. É fácil desprezar o mantra “Mas ele luta!”, comum entre o pessoal pró-Trump, mas também é difícil ver George W. Bush disposto a suportar as mesmas críticas, como evidenciado na ocasião de sua retirada da indicação de Harriet Miers.

Entretanto, considerando que o movimento contra o aborto deve estar especialmente atento à conquista de maiorias democráticas para seus avançar seus objetivos, ele não pode ser simplesmente um membro do Partido Republicano. Provavelmente, no futuro próximo, encontrará um lar mais natural no partido mais conservador, especialmente por causa de questões de sexualidade e gênero, mas ao ampliar sua base para além dessas divisões partidárias, deve estar disposto a ouvir e talvez abraçar posições que correm em conflito com o que são consideradas ortodoxias políticas conservadoras.

O que quero dizer é que, se o movimento pró-vida estiver genuinamente comprometido com a defesa de uma ordem social, política e econômica onde tanto a lei quanto a cultura tornem o aborto cada vez mais raro, ele deve ouvir aqueles que estão fora da política conservadora, talvez especialmente os afro-americanos. E ao ouvi-los, o movimento certamente ouvirá que chegar a esse lugar significa mais do que apenas mudar as leis e esperar sentado, ou defender mudanças em nossa cultura sexual. (Embora não signifique menos, para ser claro).

Significa fazer mais para aliviar os pais dos desafios que tornam o aborto uma escolha atraente; significa, como disse Matthew Loftus, tornar mais fácil para as pessoas fazerem a coisa certa. É errado dizer que o aborto nos EUA é apenas uma consequência da pobreza ou da desigualdade; há muitos lugares com níveis mais baixos em ambos os quesitos, mas com taxas de aborto equivalentes ou mais altas aos de nível de renda superior. Por outro lado, também é errado negar que nossos níveis de pobreza e desigualdade contribuem para o aborto, e se o movimento pró-vida quiser conquistar vitórias em lugares dominados pela política progressista, precisará levar a sério as reivindicações oferecidas por seus potenciais aliados.

Apoiando uma cultura de vida 

Mas isso não é tudo. A opinião da maioria em Casey sugeriu que uma das razões pelas quais os juízes estavam relutantes em anular Roe era o quanto as mulheres, em particular, passaram a confiar no acesso ao aborto para fazer seus planos de vida. Podemos – e devemos – lamentar profundamente a ideia de que muitas mulheres sentem que o sucesso de suas carreiras depende de sua liberdade de acabar com a vida de seus filhos ainda não nascidos. Esse sentimento é suficientemente prevalente para que um movimento pró-vida comprometido com o sucesso político democrático precise pensar nele com profundidade, e então agir para ajudar a torná-lo muito menos difundido.

Ajudar a tornar o aborto cada vez mais raro significa descobrir como incentivar o casamento onde ele parece estar desaparecendo e apoiar os esforços para tornar mais fácil que mães (e pais!) conciliem melhor a vida em família, em comunidade e suas carreiras. Isso pode incluir coisas como subsídios públicos para criação de filhos, tornar nosso sistema tributário inclinado a beneficiar casais e facilitar a construção de moradias que famílias jovens possam pagar. Não há, tenho certeza, respostas simples aqui, mas na medida em que as políticas públicas podem ajudar a tornar o casamento mais plausível, ao mesmo tempo em que desfazem a sensação entre algumas pessoas de que os filhos são um impedimento para todo o resto, devemos trabalhar nessa direção, mesmo que isso signifique entrar em conflito com o que tem sido, até recentemente, parte da lista de ortodoxias conservadoras.

O atual regime de aborto dos Estados Unidos é profundamente injusto, pois permite (e em alguns casos financia publicamente) a destruição de vidas humanas inocentes. Esta injustiça, contudo, está entrelaçada com grande parte da vida social, política e econômica contemporânea, e é uma injustiça cujos resultados muitos dos nossos concidadãos valorizam profundamente. Portanto, não será suficiente apenas vencer batalhas legais ou mesmo apenas conquistar vitórias eleitorais em alguns estados. Se o objetivo é tornar o aborto cada vez mais raro através da lei e da cultura, os pró-vida precisarão repensar seriamente suas abordagens. Caso contrário, é bem possível que uma vitória legal em Dobbs se torne uma clássica vitória de Pirro [N/T: expressão que indica uma vitória a alto custo, com danos superiores aos ganhos], destronando Roe, mas deixando em seu lugar ou mesmo dando ainda mais força ao controle do aborto em nossa cultura por mais meio século.

© 2022 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.

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