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O caso do advogado brasileiro detido em Brookline, Massachusetts, após disparar tiros de chumbinho perto de uma sinagoga revela uma daquelas contradições desconcertantes típicas do progressismo. É que Carlos Portugal Gouvêa, docente da USP e professor visitante de Harvard, ficou conhecido por fundar uma das ONGs mais influentes na defesa do desarmamento: o Instituto Sou da Paz.
O episódio ocorreu na manhã da última quarta-feira (1º), bem na véspera do Yom Kippur — o feriado mais sagrado do calendário judaico. Seguranças do templo Beth Zion ouviram disparos e confrontaram Gouvêa, que portava uma carabina de pressão.
O professor quebrou a janela de um carro estacionado e, segundo relatos de policiais, envolveu-se em uma “breve luta física” com os funcionários da sinagoga antes da chegada de mais de uma dúzia de agentes. Em sua defesa, ele alegou estar “caçando ratos”.
Os líderes do templo disseram que não há razão para crer em motivação antissemita. E destacaram o fato de Gouvêa ser casado com uma mulher judia (a também advogada e professora de Harvard Mariana Pargendler, filha de Ari Pargendler, primeiro presidente de origem judaica da história do Superior Tribunal de Justiça).
A Universidade de Harvard, no entanto, o colocou em “licença administrativa” enquanto investiga o caso. A medida ocorre em um momento sensível na instituição, que enfrenta críticas do presidente Donald Trump por falhar em proteger estudantes judeus de assédio e violência antissemita no campus.
De acordo com as autoridades locais, Carlos Gouvêa foi formalmente acusado de disparo ilegal de arma de pressão, conduta desordenada, perturbação da paz e dano malicioso à propriedade. Sua audiência já está marcada para novembro.
Crítico da Magnitsky
Nos últimos meses, Gouvêa, de 43 anos, ganhou espaço na imprensa ao comentar a aplicação da Lei Magnitsky contra autoridades brasileiras.
Especialista em Direito Comercial e dos Estados Unidos, o professor definiu a sanção ao ministro do STF Alexandre Moraes como “aleatória” e “a banalização de uma legislação tão importante”. Também minimizou o impacto do dispositivo, argumentando que ele é “mais simbólico e político do que econômico”.
“É uma decisão fora do normal do histórico da lei. O procedimento previsto nessa legislação não foi respeitado. Cabe o controle judicial pelas cortes americanas”, disse em entrevistas concedidas a veículos como Valor Econômico, GloboNews e UOL.
No final de julho, o site e as redes sociais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo publicaram um compilado das análises de seus professores sobre as sanções aplicadas a Moraes. Nenhum deles foi favorável à medida na mídia. Pelo contrário: o consenso entre os docentes indicou que a aplicação da lei era abusiva, indevida e motivada politicamente.
Painel com Lewandowski
Não custa lembrar que Alexandre de Moraes, bem como o ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski (atualmente no comando da pasta da Justiça e da Segurança Pública do governo Lula), também lecionam na USP.
Lewandowski, por sinal, participou com Carlos Gouvêa de um painel na edição de 2022 da Brazil Conference — evento anual organizado por estudantes brasileiros de Harvard e do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e financiado por instituições, bancos e empresas como Fundação Lemann, Amazon, Ambev, BTG Pactual e Itaú.
O tema do debate foi “Instigando a Inovação Judicial em Tempos de Crise”, com foco no “papel proativo” do Supremo durante a pandemia.
Ricardo Lewandowski mostrou como o STF evitou o “monopólio federal” (ou seja, do governo de Jair Bolsonaro) nas decisões sobre a crise sanitária, enquanto Gouvêa ressaltou a importância da “defesa da democracia” e do “diálogo da produção acadêmica com o Poder Judiciário”.
Em resumo, os participantes afirmaram que o Judiciário brasileiro, liderado pelos ministros do Supremo, inovou no uso de seu poder para “proteger direitos fundamentais” e direcionar as políticas públicas em face da “inércia do governo federal” no período pandêmico.
“Discriminação algorítmica”
Além do Instituto Sou da Paz, Carlos Gouvêa cofundou a Conectas, ONG cuja missão é “proteger, efetivar e ampliar os Direitos Humanos”. A entidade recebeu R$ 34 milhões de reais da Open Society, de George Soros, desde 2016.
Mas a atuação do professor abrange outros temas centrais da agenda progressista, como diversidade racial, questões indígenas, ambientalismo e regulação tecnológica.
Nos últimos anos, Gôuvea tem publicado artigos e dado entrevistas sobre “discriminação algorítmica” — que ele define como o risco e a tendência das ferramentas de inteligência artificial de reforçar “comportamentos discriminatórios” já existentes na sociedade.
O acadêmico relaciona essa falha à “estrutura desigual e racista” da sociedade. Segundo o uspiano, programadores transmitem seus vieses ao código, e a IA artificial acaba reproduzindo esses preconceitos.
Para ele, a ideia de regulação mínima da internet é “historinha da Carochinha”. O advogado defende uma parceria “robusta” entre o mercado e o Estado, com este último no papel de “indutor e supervisor”.
“ESG é obrigação”
Carlos Gouvêa também é defensor fervoroso das práticas de ESG (Governança Ambiental, Social e Corporativa), criticadas por introduzir a cultura woke no mundo do trabalho. “ESG é obrigação [para as empresas e instituições]”, costuma dizer.
Em seus cursos e palestras, ele afirma que a ética e a responsabilidade social devem ocupar o centro da estratégia empresarial, no lugar do foco em lucro e eficiência financeira.
O advogado coloca essas ideias em prática no PGLaw, escritório (ou melhor, “boutique jurídica multidisciplinar”) que fundou em 2014 e oferece consultoria em ESG, diversidade, direitos humanos e regulação. O discurso da firma — de unir “ética, inovação e impacto social” — reflete sua visão de que companhias e investidores devem se alinhar a padrões globais de transparência e sustentabilidade.
Com sedes em São Paulo e Nova York, o PGLaw tem como clientes empresas e órgãos interessados em difundir padrões de governança progressista no Brasil. Em abril, por exemplo, a firma trabalhou na elaboração de um novo manual da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA, vinculada ao ministério da Integração Nacional e do Desenvolvimento Regional) que traz orientações sobre a gestão de riscos no setor de abastecimento e tratamento de água.
O que diz a USP
A reportagem da Gazeta do Povo procurou Carlos Gouvêa para comentar o episódio da semana passada em Brookline, mas não obteve retorno até a conclusão deste texto. A USP, no entanto, emitiu um comunicado sobre o ocorrido na tarde desta segunda-feira (6).
Segundo o site da Faculdade de Direito, “a Sinagoga vizinha à sua casa, relacionada ao incidente de segurança, divulgou nota pública afastando, por completo, ter se tratado de ocorrência antissemita. Além disso, o professor tem afinidades, inclusive laços familiares, com a comunidade judaica”.
O texto ainda destaca que Gouvêa “possui histórico posicionamento em defesa dos Direitos Humanos” e “tem atividade acadêmica pautada pela competência técnica, dedicação à docência e à pesquisa e elevado profissionalismo”.
“Por tudo isso, a Faculdade de Direito da USP repudia as insinuações maldosas e distorcidas lançadas contra o seu docente, professor Carlos Pagano Botana Portugal Gouvêa”, afirma o diretor Celso Fernandes Campilongo, que assina a nota.
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