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Fetos, direito à vida
Fetos ilustrados por Leonardo Da Vinci por volta do ano 1511.| Foto: Domínio Público

Um estudo publicado no mês passado por pesquisadores da University College Dublin, na Irlanda, mostra que profissionais de saúde que realizam abortos sofrem com o dilema moral e a culpa, da mesma forma que já se sabia ocorrer com as mães que abortam. O psicólogo e primeiro autor da pesquisa, Brendan Dempsey, entrevistou longamente 13 profissionais que realizam legalmente o procedimento, permitido no país há meia década. O estudo, do tipo qualitativo, mostra as experiências relatadas por seis clínicos gerais, duas enfermeiras, dois obstetras e três parteiras (sendo 77% mulheres), todos mantidos em anonimato.

Enquanto quatro dos entrevistados atuaram como ativistas pró-aborto, outros expressaram uma “culpa católica” a respeito do trabalho. “Penso que, moral e eticamente”, disse uma parteira, “a coisa mais difícil, definitivamente, é ver o pequeno feto, sabe, no fim de tudo... eles são tão bem formados, até com unhas nos dedinhos... a formação mesmo antes da marca das 12 semanas é incrível”. Ela contou que tenta esquecer as cenas rapidamente. “Muitas vezes eles ficam com as mãozinhas embaixo do queixo, ou ao redor do tórax... mas há certos casos que você não esquece... então isso pode ser muito, muito difícil.”

“Não é um procedimento agradável”, afirmou um obstetra. Ele confessou que tem momentos em que pensa “oh meu Deus, não estou acostumado com isso”, mas garantiu que o sentimento diminuiu com o tempo. O truque mental de uma enfermeira é fingir que não está ali, “tirar a si mesma” da sala da cirurgia, “porque se eu pensasse nisso demais, ficaria desconfortável e chateada, só de pensar fisicamente no que está de fato acontecendo”.

Um clínico geral relatou que “mesmo que 95% de mim diga sim, é como se, ocasionalmente, algo dentro da minha psiquê viesse e dissesse ‘como tenho certeza de que isso é a coisa certa?’”

Uma parteira denunciou que, no hospital em que foi treinada para realizar abortos, “com certeza as mulheres o estavam usando como uma forma de método contraceptivo”. O local também estava fazendo abortos às 24 semanas de gestação (o dobro do permitido pela legislação irlandesa, que libera o aborto para quaisquer circunstâncias até 12 semanas), com base em exceções previstas. Ela se diz grata porque a Irlanda “dá muito tempo para as mulheres pensarem” e “faz com que não seja uma decisão fácil”. “É uma decisão enorme que pode ser feita por raiva, frustração, às vezes sem auxílio”, disse.

Abstenção moral 

Muitos dos entrevistados manifestaram a irrelevância das próprias opiniões para o serviço que oferecem, abstendo-se de julgar as pacientes. Alguns mencionaram estar prestando um serviço que ninguém mais faria, dada a alta incidência de objeção de consciência entre os profissionais. Uma parteira disse que, embora discorde da decisão de abortar, seu dever é “cuidar” das mulheres.

“Fiz um juramento como enfermeira e parteira para cuidar das pessoas... Eu estava cuidando de pessoas, pacientes e mulheres que nem sempre vão fazer as escolhas que eu penso que são corretas”, comentou. Ela acrescenta que “não é meu papel empurrá-las para um lado ou outro. Elas fizeram suas escolhas e eu cuido delas, (...) a enfermagem é isso para mim”.

Outro clínico geral, com 20 anos de experiência, descreveu-se como um “prestador de serviço pragmático”. Ele não ofereceu argumentos a favor do aborto e afirmou que “sempre haverá gravidez não planejada”, “não podíamos continuar mandando [essas mulheres] para o Reino Unido e dizendo para voltarem aqui para um check-up depois”, fazendo referência às viagens para o país vizinho, que oferece aborto há mais tempo.

Julgamentos 

Uma enfermeira comentou sobre o contraste de rotina entre ir à cantina e ter conversas amenas, e depois realizar abortos um após o outro em “silêncio sepulcral”. “Se me sinto julgada, imagine como [as pacientes] se sentem”.

Nesse sentido, outra delas se ressente dos protestos de manifestantes pró-vida perto das clínicas de aborto (embora relate nunca ter ocorrido em seu local de trabalho): “que coisa horrível a enfrentar, especialmente para as mulheres que estão vindo com 17 ou 18 semanas [de gestação] com anomalia fetal, você já sente culpa e então tem que enfrentar essas pessoas gritando ‘assassina de bebê’”.

“Muitos amigos apoiam” sua escolha profissional, diz uma enfermeira, “mas muitos dos membros da minha família, minha avó, minhas tias e tios, não apoiam de jeito nenhum, são totalmente contra, e simplesmente não conversamos a respeito”.

Dois clínicos gerais relataram enfrentar silêncios incômodos dentro e fora de suas clínicas. Um(a) obstetra disse que colegas de trabalho lhe apelidaram de “o(a) exterminador(a)”. Todos os profissionais, no entanto, dizem que as expressões de desaprovação são minoritárias e incidentes isolados. Cinco dos 13 relataram protestos em seu local de trabalho. Diferente do Reino Unido, que estabeleceu zonas de censura em torno de locais em que se faz aborto, a Irlanda manteve o direito ao protesto, o que é uma decepção para os entrevistados.

Uma parteira reclamou que “os sindicatos só se importam com aqueles que fazem objeção de consciência”, ou seja, profissionais que se recusam a realizar o aborto por considerá-lo assassinato, “nós conhecemos os objetores de consciência, e eles sabem os seus limites, mas nosso papel está se expandindo o tempo todo, então não é fácil para nós, penso que precisamos de muito mais apoio”. Todos os entrevistados apoiaram o direito de objeção de consciência dos colegas: eles são comuns o suficiente para os que aceitam fazer reclamarem de horas extras trabalhadas.

Humanidade do feto é inegável 

A ginecologista e obstetra Elizabeth Kipman, estudiosa da Bioética Personalista, analisa que mesmo que os que realizam abortos evitem pensar na dimensão ética e na realidade, “todo profissional de saúde sabe” que “ali se reconhece um ser humano a quem é negada a oportunidade de viver”. “Quando se fala na dificuldade de enfermeiras e médicos diante do aborto induzido, evita-se o foco no real evidente diante dos olhos e das mãos. Divaga-se para questões de saúde pública, direitos a serem conquistados e, quando os argumentos acabam, há um escape final para convicções pessoais construídas sob influência religiosa ou de tradições ultrapassadas”, afirma.

Ela ressalta que, forçado pela direção do hospital ou iludido de que o aborto seria a única maneira de ajudar a mulher, consciente ou inconscientemente, o profissional de saúde sempre trará um conflito de valores. “Seja o argumento que se use, a realidade permanece: a pessoa humana não depende de interpretações legais para lá estar e, mesmo se portadora de malformação, merece a morte natural, rodeada de carinho. Existem sim os que se dispõem a ajudar de outra forma, no acolhimento integral da mãe e de seu filho. É impossível não reconhecer que no ‘pequeno feto’ está, também, aquele que só conta com suas mãos para ser cuidado”, acrescenta.

A presidente do Movimento Brasil Sem Aborto, Lenise Garcia, classifica a pesquisa como uma reflexão necessária sobre a percepção dos profissionais de saúde e sobre sua saúde mental. “A humanidade do pequeno feto é algo inegável, não por acaso os defensores da liberação do aborto ficam tão incomodados com as réplicas que mostramos. Imagino como deva ser observar os reais mortos por suas mãos. Alguns se justificam pelo ‘serviço prestado à mulher’. Deveria haver também um estudo de longo prazo em relação a elas, para constatar que o aborto nunca é solução, e que elas muitas vezes sofrem bastante em virtude do aborto realizado”, opina.

Balanço 

Em maio de 2018, a República da Irlanda mudou seu entendimento de quase 160 anos do direito à vida, que criminalizava o aborto sob quaisquer circunstâncias, e liberou o procedimento nas fases precoces da gestação até o máximo de 12 semanas. Houve um referendo e 66,4% dos irlandeses votaram a favor da descriminalização.

Após o período máximo, ainda é possível realizar abortos se for avaliado que a gestação representa risco físico ou mental para a saúde da gestante, em situações “de emergência” ou quando algum problema de desenvolvimento torna improvável que o bebê viva 28 dias após o parto. Até março deste ano, 11 de 19 maternidades irlandesas ofereciam o procedimento e 400 clínicos gerais (11,4% dos médicos do país) estavam qualificados.

Os treinados recebem as gestantes em duas reuniões. Na primeira, discutem com elas suas opções e fazem aconselhamento. Se quiserem continuar, as gestantes devem esperar três dias até fazer uma segunda reunião em que podem assinar um formulário de consentimento informado e partir para interromper a vida do feto. O período de espera pode ser encurtado com as mesmas condições de exceção para o período das 12 semanas. Nos primeiros três anos do serviço, quase 18 mil abortos foram realizados, 98% dentro do período máximo.

Colaborou para a reportagem Bruna Komarchesqui.

Conteúdo editado por:Bruna Komarchesqui
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