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A pretensão agora é por algo sem precedentes: um Estado turbinado com poderes gerais para identificar e punir a “desinformação” onde quer que apareça, como um ilícito em si.
A pretensão agora é por algo sem precedentes: um Estado turbinado com poderes gerais para identificar e punir a “desinformação” onde quer que apareça, como um ilícito em si.| Foto: Pixabay

Tramitam no Congresso Nacional, apensados ao famoso PL das Fake News (Projeto de Lei n° 2630, de 2020), múltiplos projetos com uma mesma e insólita proposta: punir qualquer um que disser, na internet, coisas que não sejam verdadeiras. Em alguns casos, sob pena de prisão.

O PL 2601/2019, por exemplo, apresentado pelo deputado Luís Miranda (DEM/DF), pretende acrescentar ao Código Penal o novo crime de “divulgação de notícia falsa”, prevendo como pena a detenção, de três meses a um ano.

O PL 2.516/2022, do deputado José Nelto (PP/GO), mais ousado, pretende punir com multa até mesmo quem divulgar informação que, mesmo sem ser falsa, seja considerada “prejudicialmente incompleta”.

O PL 2844/2020, subscrito por quase toda a bancada do PT na Câmara, pretende que o Estado brasileiro siga o exemplo de empresas privadas e pratique algo como um boicote nos moldes propostos pela organização Sleeping Giants Brasil (comparação feita no texto do próprio projeto). O objetivo da organização (conforme seu site) é asfixiar veículos de mídia (a exemplo desta Gazeta do Povo, alvo do grupo) que, na sua opinião, sejam expressores de “mentiras e conteúdos odiosos”, dificultando o seu financiamento publicitário. Além de implicar o Estado em postura parecida, o PL 2844/2020 também pretende impor multa aos veículos, equivalente a 5% do faturamento atual, para cada dia em que se constatar veiculação de “notícia falsa”. O projeto não dá qualquer pista sobre a quem caberia definir quais notícias se caracterizariam como “falsas”.

Embora se trate apenas de projeto de lei, convém mencionar que já foram tomadas, na prática, pelo Estado brasileiro, medidas concretas que também se aproximam das propostas do grupo Sleeping Giants. Em agosto de 2021, o ministro do TSE Luis Felipe Salomão determinou que as redes sociais YouTube, Twitch.TV, Twitter, Instagram e Facebook fizessem o que, na prática, equivaleu a um boicote, porém forçado pelo Estado, suspendendo a monetização de dezenas de perfis que, segundo o ministro, “vêm se dedicando a propagar desinformação” (mas sem se indicar qual artigo de lei teria sido violado pelos envolvidos, se é que havia algum, nem qual artigo autorizava a Justiça Eleitoral a tomar a medida, o que seriam premissas necessárias para a repressão pelo Estado). Muitos dos perfis pertenciam a indivíduos que tinham neles sua principal ou única fonte de renda.

A reação dos formadores de opinião a propostas do gênero tem se caracterizado pelo silêncio, quando não aprovação. O comentarista político Joel Pinheiro da Fonseca, por exemplo, aprovou efusivamente medida tomada por Salomão.

Quando Joel foi confrontado com o argumento de que era perigoso atribuir ao Estado o poder de arbitrar coercitivamente a verdade e a mentira, avançando sobre área antes reservada para a livre opinião, negou, respondendo: “O Estado faz isso todo dia.” Listou dois exemplos: quando o Estado declara que determinado candidato saiu vencedor em eleição, reconhecendo-o depois como sendo o presidente da República; e quando diz quem cometeu crime e não cometeu. São juízos de verdade que implicam juízo de inverdade de qualquer afirmação em sentido contrário.

Joel Pinheiro tem razão apenas quando diz que nestes casos, como em outros, é inevitável o papel do Estado como árbitro da verdade. Mas está errado no restante. Sua afirmação de que “O Estado faz isso todo dia” é incorreta e faz falsa equivalência. O que Joel e os que compartilham das mesmas ideias estão propondo, tenham eles consciência disso ou não, é um divisor de águas na forma como o Estado pune. Querem algo novo, que se afasta, e muito, do que o Estado “faz todo dia” hoje.

A este respeito, o apresentador Monark causou polêmica em 2021 ao tuitar que “mentir é um direito humano”. A julgar pelas fortes reações contrárias, provavelmente pareceria surpreendente a muita gente saber que, juridicamente, Monark tinha razão: não existe, hoje, norma que proíba mentir. E, como tudo o que não é proibido é permitido, mentir é um direito do cidadão.

Algumas pessoas certamente são capazes de pensar em crimes que parecem consistir em mentir: calúnia, denunciação caluniosa, estelionato. Mas em nenhum desses crimes a conduta é “mentir”, simplesmente: há sempre elementos adicionais, que revelam que a verdadeira preocupação é com um dano a ser causado pela mentira. No caso do estelionato, por exemplo, especifica-se que a mentira deve trazer “vantagem ilícita em prejuízo alheio”, e o dano é sentido no bolso; no caso da calúnia, o dano é à honra de uma pessoa específica diante da comunidade.

Até hoje, o caso no qual se foi mais longe em dar poderes ao Estado para punir a mentira, com o mínimo de ressalvas, foi o da propaganda enganosa. Mesmo nesse caso, ainda são discerníveis os danos potenciais ao consumidor que se queriam evitar, assim como o nexo causal que poderia levar a eles.

Bem diferente é o que Joel Pinheiro e outros estão defendendo, e bem diferente é o caso dos projetos de lei contra a desinformação que foram exemplificados acima. Não há mais a necessidade de vítima; não há necessidade de dano. A pretensão agora é por algo sem precedentes: um Estado turbinado com poderes gerais para identificar e punir a “desinformação” onde quer que apareça, como um ilícito em si. Uma tendência que também se manifesta no Judiciário e, desde o primeiro dia do governo Lula — quando foi criada por decreto a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, vulgo Ministério da Verdade —, também no Poder Executivo. Agora os três poderes se unem pela repressão da “desinformação”.

Os problemas disso são evidentes. Mesmo que a verdade seja uma só, sempre haverá diferentes visões de qual seja, por mais malucas que sejam. Assim, proibir desinformação é necessariamente proibir a divergência. Isso será sempre verdade, até para os casos mais consensuais, como a difamação. A única diferença é que, nesses casos, não temos alternativa que não aceitar o imperfeito arbítrio estatal da verdade, porque uma certeza já temos nas mãos para lidar, que é o dano imposto a um indivíduo pela mentira. Mas querer impor a sua própria verdade aos concidadãos, sem demonstrar o dano — ou afirmando dano potencial por triplo salto carpado lógico de causalidade, baseado em teorias ideológicas da moda que são, elas próprias, "verdades" particulares e questionáveis — é tirania.

E seria apenas uma tirania, se o Estado sempre soubesse mais que os cidadãos e acertasse sempre. Mas, como o Estado erra, pode ser, além disso, também uma tirania que é danosa até nos próprios termos, porque, ao censurar por engano a verdade e adotar uma mentira, se torna ela própria uma... difusora de desinformação.

Neste sentido, a pandemia de Covid-19, que trouxe à atenção do público os vaivéns que sempre caracterizaram a opinião científica, também deveria ter abalado toda expectativa implícita de infalibilidade de algum árbitro da verdade. Para citar apenas um exemplo, a rede social Facebook, baseando-se em opinião majoritária à época, chegou a censurar como “desinformação” alegações no sentido de que o vírus causador da doença tivesse origem em laboratório. Tempos depois, houve virada na opinião majoritária, como resultado de longo debate — que se deu, diga-se, apesar de esforços como os da empresa —, a ponto que se sentiu obrigada a reverter a proibição, e a opinião antes considerada “desinformação” depois viria a se tornar a verdade oficial para órgãos de Estado americanos.

A lição da pandemia deveria ter sido a de humildade epistêmica — e aquele que sabe que é capaz de errar não sai querendo censurar os outros.

Hugo Freitas é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais

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