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O neurocirurgião e neurocientista Rahul Jandial ficou conhecido por realizar cirurgias cerebrais de alta complexidade para o tratamento de câncer em hospitais do mundo todo. Mas ele também é um importante estudioso de um dos aspectos mais misteriosos da nossa existência: os sonhos.
No livro “Por que sonhamos” (editora Sextante), Jandial explora temas como a relação entre sonhos e criatividade, o papel dos pesadelos, a ocorrência de sonhos eróticos e a possibilidade de sonhos lúcidos, entre outros.
A seguir, selecionamos um recorte da obra em que o médico explica as novas técnicas de "incubação de sonhos", desenvolvidas com recursos de grandes empresas para influenciar o comportamento do consumidor enquanto dorme.
Os anúncios que vemos quando estamos acordados são uma tentativa explícita de influenciar nosso pensamento. E os publicitários estão agora de olho em nossos sonhos.
O que torna a publicidade em sonhos potencialmente bem mais perigosa é o fato de ela acontecer fora da nossa consciência. Quando sonhamos, nosso cérebro racional fica desligado, ou seja, nós nos tornamos menos céticos e ficamos mais vulneráveis a mensagens direcionadas.
Um estudo já determinou que sonhar com um anúncio aumenta nossa probabilidade de comprar o produto. Mesmo com os limites atuais da engenharia de sonhos, as empresas já estão entrando no ramo da incubação de sonhos direcionada. Na visão delas, os sonhos parecem ser o último grande espaço inexplorado disponível para o marketing de seus produtos.
Em 2021, a Molson Coors Beverage Company [um dos cinco maiores grupos cervejeiros do mundo] tentou usar a incubação direcionada de sonhos para se infiltrar na paisagem onírica dos consumidores antes do Super Bowl, a decisão do campeonato nacional de futebol americano nos Estados Unidos.
Como a liga tinha um contrato de exclusividade com um concorrente, a empresa não podia anunciar sua cerveja durante a partida. Um vice-presidente de marketing pensou num jeito de contornar o problema: se a empresa não podia veicular um anúncio durante a partida, será que poderia veiculá-lo no sonho das pessoas?
A Molson Coors procurou Deirdre Barrett, a psicóloga de sonhos de Harvard. Os executivos da empresa queriam saber se seria possível criar uma peça publicitária que tivesse o poder de penetrar nos sonhos.
O objetivo era plantar o anúncio com firmeza no inconsciente das pessoas e fazê-lo ser veiculado em seus sonhos. Barrett lhes respondeu que era possível influenciar o conteúdo dos sonhos, mas só se as próprias pessoas cooperassem.
Cerveja psicodélica
Com a orientação de Barrett, a Molson Coors produziu então um anúncio psicodélico e visualmente intenso de um minuto e meio que batizou de “O comercial da decisão dos seus sonhos”.
Além disso, lançou também uma trilha sonora de oito horas para acompanhar o anúncio. No filme, ao som de uma música de sonho, um avatar translúcido sobrevoa montanhas e um riacho, tudo entremeado a imagens dos produtos da empresa e outras imagens de natureza, personagens de desenho animado e formas e padrões hipnóticos.
O vídeo saturado de cores passa rapidamente de um lugar para outro e muda de imagens surrealistas para formas e objetos abstratos, de modo bem parecido com o que acontece nos sonhos.
Durante testes num laboratório do sono, o anúncio foi exibido várias vezes para os participantes, e eles então eram instruídos a influenciar os próprios sonhos dizendo, no momento em que estivessem pegando no sono, que queriam sonhar com o vídeo. Ao serem acordados durante o sono REM, os participantes relataram ter sonhado com uma cachoeira ou caminhado pela neve, ambas imagens contidas no vídeo.
Uma das participantes, com a voz grogue por ter acabado de acordar, disse que a montanha do seu sonho tinha algo a ver com a cerveja Coors. Na verdade, cinco dos 18 participantes relataram sonhos que incorporavam algum elemento do anúncio.
A Molson Coors postou o vídeo na internet, convidando os consumidores a assisti-lo e a participar do que a empresa chamou de “talvez o maior experimento de sono já conduzido”. A sugestão era que as pessoas assistissem várias vezes ao vídeo antes de irem dormir e pusessem a trilha sonora para tocar enquanto estivessem dormindo.
Os participantes receberam descontos e foram estimulados a postar seus relatos de sonho nas redes sociais usando hashtags e marcando os produtos Coors Light e Coors Light Seltzer. Segundo a empresa, o anúncio foi um sucesso retumbante, com 1,4 bilhão de visualizações, um aumento de 3 mil% no engajamento social e, talvez o mais importante para a empresa, um incremento de 8% nas vendas.
Pesadelo com queijo
Os sonhos, outrora o território sagrado e inviolável de quem sonhava, são agora um alvo do marketing, e a Molson Coors não é a única grande empresa interessada.
Numa “Pesquisa sobre o Futuro do Marketing” feita pela Associação Norte-Americana de Marketing em 2021, 77% das 400 empresas afirmaram ter planos de fazer experiências com o anúncio em sonhos até o ano de 2025. Ao que parece, estamos em plena corrida do ouro para manipular o fértil terreno de nossa paisagem onírica.
A Burger King tentou um caminho diferente para sequestrar o espaço dos nossos sonhos. Numa promoção de Halloween, a cadeia lançou o sanduíche Nightmare King, “rei do pesadelo”, cujo bordão era: “Alimente seus pesadelos.” O sanduíche era composto por um hambúrguer, um nugget de frango, bacon, queijo e um pão verde-vivo.
Além do valor calórico generoso, a única coisa realmente fora do comum em relação ao sanduíche era o pão de cor viva, mas mesmo assim a empresa alegou que o Nightmare King de alguma forma conseguia induzir pesadelos
Para demonstrar as propriedades do sanduíche, a empresa se juntou a um laboratório do sono e diagnóstico que acompanhou os sonhos de cem participantes ao longo de dez noites. Segundo um release para a imprensa da Burger King, o Nightmare King mais do que triplicou a incidência de pesadelos. É claro que a mera sugestão de que comer determinado alimento pode provocar um pesadelo potencialmente já basta para causar mais pesadelos.
O interessante era que o Nightmare King da Burger King era um cheeseburguer, e por muito tempo alimentou-se a crença (equivocada) de que o queijo causava pesadelos. Em “Um conto de Natal”, de Charles Dickens, Ebenezer Scrooge no início põe num “pedaço de queijo” a culpa pela aparição do fantasma de seu ex-sócio Jacob Marley.
Não existe prova alguma de que o queijo possa causar ou cause pesadelos, mas a crença basta para manter vivo esse mito. Essa consequência negativa autorrealizável é semelhante ao efeito nocebo, o contrário do efeito placebo: se você acreditar que um remédio irá causar determinados efeitos colaterais, a probabilidade de ele de fato causá-los aumenta.
Guarda baixa
Esses esforços iniciais para fazer as pessoas sonharem com cervejas ou sanduíches provavelmente são só o começo. Aproxima-se a noite em que os anunciantes irão se dirigir rotineiramente a seu sono e seus sonhos, tentando influenciar seu comportamento desperto quando sua guarda estiver baixa, ameaçando infectar algo tão vital para o nosso bem-estar. Talvez o refúgio sagrado do sono e dos sonhos em breve esteja sob ataque.
Essa possibilidade deixa a comunidade de pesquisa mais do que um pouco apreensiva. Numa carta aberta escrita em reação ao anúncio da Molson Coors, 38 pesquisadores do mundo inteiro se manifestaram contra deixar os sonhos se tornarem mais um parque de diversões para publicitários corporativos e expressaram seu apoio a leis que proíbam os anunciantes de se dirigir a pessoas adormecidas.
Em reação à campanha da Molson Coors, eles indagaram: “O que foi que nós perdemos ao nos tornarmos tão coletivamente insensíveis às invasões da nossa privacidade e à prática econômica exploratória a ponto de aceitarmos um pack de 12 latinhas em troca de passarem um anúncio de cerveja dentro dos nossos sonhos?”.
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Conteúdo editado por: Omar Godoy





