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Em fevereiro de 2022, Rostislav Lavrov, então com 16 anos, morava com a mãe em uma vila no sudeste da Ucrânia. Ele contou à emissora pública norte-americana NPR que, quando tropas russas invadiram a localidade, sua mãe foi levada para um "centro médico" de onde nunca mais voltou, enquanto ele foi enviado à Crimeia — península ucraniana ocupada por Moscou desde 2014 — para ser "russificado". “Todas as manhãs eu ouvia o hino russo”, relembra. “Disseram-nos que a Ucrânia deixaria de existir. Que não éramos necessários em lugar algum. Que ninguém nos esperava em casa.”
Ele, felizmente, não acreditou. Mas muitas outras crianças e adolescentes ucranianos talvez acreditem, seja por serem mais jovens ou imaturos, seja por virem de contextos familiares instáveis. De fato, entre os mais de 19.500 menores retirados à força de suas casas por militares e autoridades russas, há tanto adolescentes quanto bebês de poucos meses de vida.
Esse número, já alarmante, pode ser subestimado. É o que indica o Laboratório de Pesquisa Humanitária (Humanitarian Research Lab – HRL) da Escola de Saúde Pública da Universidade Yale, nos Estados Unidos. O levantamento baseia-se em dados da iniciativa governamental ucraniana Bring Kids Back (“Tragam as Crianças de Volta”) e da ONG Save Ukraine (Salve a Ucrânia), entre outras fontes.
Segundo relatório do diretor do HRL, Nathaniel Raymond, apenas 1.236 crianças haviam sido resgatadas até 17 de março de 2024 — um número ínfimo diante das 19.500 sequestradas. E o total real seria bem maior. Em fevereiro deste ano, a comissária russa para os Direitos da Criança, Maria Lvova-Belova, admitiu à BBC que 730 mil crianças ucranianas foram transferidas para a Rússia, sem especificar quantas estavam acompanhadas pelos pais — “a maioria”, afirmou — ou quantas foram levadas sem o consentimento deles.
Ainda segundo o HRL, cerca de 8.400 dessas crianças foram transferidas para instituições estatais na Rússia — algumas localizadas no extremo oriente do país —, na vizinha Belarus (antiga Bielorrússia) e em territórios ucranianos ocupados. Muitos desses menores sofreram abusos físicos, passaram fome, foram privados de atendimento médico, impedidos de manter contato com familiares e submetidos a uma longa lista de atos arbitrários.
Os danos dessa política ilegal à estrutura familiar ucraniana são tão graves que o presidente russo Vladimir Putin e sua comissária Maria Lvova-Belova tornaram-se alvo de mandados de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI). Os dois não foram denunciados por bombardeios a estações ferroviárias, como o de Kramatorsk, ou pelas atrocidades cometidas pelas tropas russas em Bucha, mas pela deportação forçada de milhares de menores — um crime de guerra, segundo o artigo 8.2.b.VIII do Estatuto de Roma, que criou o TPI em 1998.
Uma pátria sem berçários
Invadir território inimigo e apreender armas, alimentos, combustível e equipamentos é um comportamento, embora condenável, compreensível em tempos de guerra. Mas sequestrar crianças?
Putin se apresenta como defensor da “família tradicional”, o que lhe rende simpatia em setores conservadores do Ocidente, incomodados com os avanços das pautas progressistas sobre casamento, sexualidade e reprodução.
Mas o interesse do ex-agente da KGB, ex-membro do Partido Comunista e atual líder autoritário da Rússia pode estar longe de qualquer ideal pró-vida.
Ele sabe que o futuro demográfico de seu país é sombrio. A taxa de fecundidade russa, que teve um breve pico em 2015 (1,78 filho por mulher), caiu para 1,42 em 2023, muito abaixo dos 2,2 registrados na antiga União Soviética em 1987. Somente no primeiro semestre de 2024 nasceram 16 mil crianças a menos do que no mesmo período do ano anterior.
O Kremlin não permanece inerte. O Parlamento russo aprovou medidas para tentar reverter o declínio populacional. Entre elas, multas severas para quem fizer "propaganda antinatalista": empresas podem pagar até 40 mil euros; indivíduos, até 3.500 euros (o salário médio no país é de 88.200 rublos, cerca de 937 euros).
O governo também impôs obstáculos ao divórcio. Em 2023, foram registradas 683.700 separações, 5% a mais que antes da guerra. Em resposta, o partido governista Rússia Unida propôs um período obrigatório de três meses de “reflexão”, com apoio psicológico, antes da conclusão do divórcio. As taxas administrativas para o processo subiram de 7 para 53 euros. Um parlamentar chegou a sugerir o envio de divorciados ao front ucraniano para realizar “trabalhos forçados” — proposta que não prosperou.
Nada disso, porém, altera a dura realidade: a população russa está encolhendo — de 147 milhões em 2022 para 146,2 milhões em 2024 —, e o número de mulheres em idade fértil caiu de 35 milhões, em 2020, para 34,3 milhões, em 2023. Assim, não há creche que reverta, no curto prazo, o colapso demográfico.
O método russo
Diante disso, uma “solução” rápida, tosca e brutalmente soviética foi capturar as crianças do país vizinho — órfãs ou não. O Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês), centro de pesquisa com sede em Washington, identificou documentos russos datados de 18 de fevereiro de 2022 — seis dias antes da invasão — com ordens para ocupar orfanatos no leste da Ucrânia e transferir imediatamente as crianças para a Rússia.
Para menores que viviam com os pais, o pretexto para retirá-los costumava ser o comportamento “problemático” dos adultos. Como explicou Daria Gerasymchuk, comissária presidencial ucraniana para os Direitos da Criança, à emissora alemã Deutsche Welle, se os pais demonstrassem oposição à ocupação, seus direitos eram cassados e os filhos, levados.
Nos chamados “processos de seleção” — detenções e interrogatórios de civis sem acusação formal —, famílias também foram separadas. “Prendem os pais sem nenhuma acusação, e levam as crianças sem qualquer obstáculo”, relatou Gerasymchuk. Ela citou o caso de um pai de três filhos que ficou detido por três meses — tempo suficiente para que seus filhos fossem levados à Rússia. A família foi, por fim, reunida.
Houve também pais assassinados pelas forças de ocupação, com os filhos levados em seguida, e o aliciamento de famílias vulneráveis. Cerca de 90% das crianças que vivem em orfanatos ucranianos têm pais vivos, mas sem condições de criá-las.
Em muitos casos, foram convencidos a autorizar a ida dos filhos para campos de "recreação e reabilitação" na Rússia, onde estariam longe da guerra. Mas esses centros são, na prática, instalações de russificação, com doutrinação ideológica, treinos paramilitares e abusos. Alguns pais autorizaram a viagem; outros, não. Muitos dos que partiram jamais retornaram. “Algumas crianças que conseguimos recuperar passaram mais de um ano nesses campos”, lamenta a comissária.
Há ainda sequestros facilitados por conhecidos em troca de recompensa. O jornal britânico The Guardian relatou o caso de Alina, de 15 anos, levada por uma amiga de sua mãe sob a falsa alegação de que soldados ucranianos iriam atrás dela por ter aceitado alimentos dos ocupantes. A jovem foi entregue a uma família russa, a 1.500 km da fronteira. A mãe biológica conseguiu resgatá-la após longa viagem e juramento perante autoridades russas. Se tivesse demorado mais quatro dias, Alina teria recebido cidadania russa, dificultando qualquer ação legal.
Missões de resgate e reabilitação
Não é fácil, em todo caso, reunir a coragem necessária para, individualmente, entrar no coração do país agressor e exigir, ali, diante daqueles que apoiam um massacre e uma destruição que já duram três anos, o retorno de um filho.
Há quem vá por sua conta e risco, cruzando diversas fronteiras (da Ucrânia para a Polônia, de lá para Belarus e depois para a Rússia, como no caso da mãe de Alina e de outras pessoas que viajaram com ela), e também quem peça ajuda a diversas organizações locais que tentam cauterizar as muitas cabeças dessa hidra de injustiça que é a agressão russa.
Uma dessas ONGs, a Save Ukraine, explica em seu site que, quando toma conhecimento de casos de sequestros na Rússia, eles primeiro os documentam e os comparam com os dados de identificação mantidos pelas autoridades ucranianas. Eles então organizam o que chamam de missões de resgate, que "são complicadas e confidenciais, devido à sua natureza sensível", e envolvem a preparação meticulosa de toda a papelada que dá suporte legal ao guardião, que também recebe amplo apoio psicológico antes de embarcar na jornada.
A dificuldade do processo de resgate se reflete no pequeno número de menores que conseguiram retornar com o apoio desta ONG: 612 desde fevereiro de 2022 até o presente. E, claro, não se trata apenas de trazê-los de volta. São crianças ou adolescentes altamente traumatizados, vítimas de bullying e abuso — muitos dos internados nos "campos recreativos" foram espancados por se recusarem a cantar o hino russo ou prestar homenagem a Putin — e precisam de reabilitação física e psicológica, carinho, calor…
Os Lares de Cura e Esperança, criados pela Save Ukraine, buscam oferecer tudo isso às crianças e suas famílias — incluindo aquelas que não tiveram seus filhos sequestrados, mas suportaram os horrores da guerra nos pontos críticos — com um programa de reintegração de seis meses que fornece moradia e alimentação, educação e assistência médica e jurídica.
Trata-se de um esforço para restaurar um mínimo de normalidade. Um retorno à vida, ainda que parcial, marcado pelas lembranças das explosões, dos gritos nos campos de doutrinação, da canção forçada de um hino estranho — “A Rússia é nossa pátria sagrada; a Rússia é nosso país amado…”
E tudo isso, até que o presidente “pró-família” e “pró-natalidade” desista de sua guerra insana.
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©2025 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: Putin quiere niños rusos… y se los roba a Ucrania






