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Qual é hoje a força da teoria das janelas quebradas?

Ideia por trás da política de tolerância zero na segurança pública foi celebrada num livro editado duas décadas atrás

Fotografia parte da exposição “Ruínas”,  de Jacob Bensabat (heterônimo de Orlando Azevedo), em cartaz no MuMA até o dia 13 de fevereiro. | Jacob Bensabat (Orlando Azevedo)/Divulgação
Fotografia parte da exposição “Ruínas”, de Jacob Bensabat (heterônimo de Orlando Azevedo), em cartaz no MuMA até o dia 13 de fevereiro. (Foto: Jacob Bensabat (Orlando Azevedo)/Divulgação)

Há exatos 20 anos, a publicação do livro “Fixing Broken Windows: Restoring Order And Reducing Crime In Our Communities” (“Consertar janelas quebradas: restabelecer a ordem e reduzir o crime em nossas comunidades”), dos professores da universidade de Chicago George Kelling e James Q. Wilson, comemorava a implementação da “teoria das janelas quebradas” como o mais eficaz instrumento de segurança pública até então.

A tese tinha um case de sucesso para confirmá-la. Em 1994, o prefeito recém-eleito de Nova York, Rudolph Giuliani, implantou estratégia de policiamento baseada no combate ostensivo de pequenas infrações contra a qualidade de vida – como pichações, embriaguez pública, mendicância e prostituição. Abordagens policiais duras e muitas prisões eram a recomendação.

Essa política pública se fundamentava em artigo de Kelling e Wilson publicado em março de 1982 no periódico “Atlantic Monthly”, sob o título “Broken windows: the police and neighborhood safety” (“Janelas quebradas: a polícia e a segurança do bairro”).

Nele, os autores diziam que, “quando uma janela está quebrada e ninguém conserta, é sinal de que ninguém liga para o local; logo, outras janelas serão quebradas”.

Ou seja, estabelecia uma ligação de causa e efeito entre desordem e crime, num tipo de desenvolvimento sequencial. Pequenos delitos, se tolerados, portanto, podem levar a crimes maiores.

A ideia não é das mais complexas. Com efeito, é difícil negar certa lógica no raciocínio e a sabedoria popular tem várias versões para o tema como “quem rouba um ovo, rouba um boi”.

Digno de discussão é que a proposição tenha se tornado a base da chamada política de “tolerância zero” na segurança pública. E uma das ideias mais fortes ligadas à onda neoconservadora que predominou na política norte-americana no fim do século 20.

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Duas décadas depois de seu suposto triunfo, a validade da teoria sempre volta à mesa dos debates públicos nos Estados Unidos em casos de abusos e violência policial – como na morte de Eric Garner em 2015 por resistir à prisão sob a acusação de vender cigarros soltos.

E, como aconteceu com outros países da Europa e da América Latina, o discurso foi importado para o Brasil por políticos de espectro conservador que devem, em muitos casos, seu sucesso eleitoral à defesa da “tolerância zero” no combate ao crime.

Esse era o lema, por exemplo, da rápida gestão do deputado federal Fernando Francischini (SD), à frente da secretaria estadual de Segurança Pública, entre dezembro de 2014 e maio de 2015.

Mesmo após a saída do ex-secretário, é notável que a Polícia Militar segue aplicando o projeto de “tolerância zero”: abordagens, gerais, prisões públicas e ações violentas com aplausos de considerável parcela da sociedade.

É possível também perceber sinais da teoria das janelas quebradas na proposta, no mês de janeiro, de duas associações de comerciários para a remoção coercitiva de moradores de rua das áreas centrais da cidade.

Assim o momento é apropriado para se analisar a importância e a validade dessas ideias na gestão da segurança pública no contexto do século 21.

Muito cara a políticos conservadores, pela força midiática e pela possibilidade de apresentar resultados visíveis (como o número de prisões ou as imagens de locais degradados recuperados no esquema antes-e-depois), a ideia das janelas quebradas é amplamente criticada por acadêmicos dos campos do Direito Penal, Criminologia e Ciência Social.

As críticas contestam a validade cientifica dos dados de redução da criminalidade, passando pela sanha punitiva que o argumento provoca no Estado e pelos respectivos abusos da ação policial na busca pela ordem – e também pelo direcionamento das ações do Estado contra um determinado estrato social e racial.

Procurado pela reportagem, o professor de Sociologia da Universidade de Berkeley Loïc Waquant – uma das vozes mais altas contra as práticas de “tolerância zero” – disse que se recusava a comentar “esse argumento absurdo que tem sido repetidamente invalidado e nem ao menos é uma teoria científica”.

Em seu livro “Prisões da Miséria” (1999), no entanto, ele reduz a ideia a um “instrumento de legitimação e gestão policial da pobreza”.

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Para ele, a disseminação mundial da ideia deve-se à atuação dos think tanks, institutos privados de consultorias que propõem soluções em áreas militares e políticas e que criaram a moderna doxa punitiva do estado americano difundida a partir da experiência nova-iorquina.

No direito penal brasileiro, um célebre artigo dos professores curitibanos Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho sintetiza a contrariedade da criminologia nacional contemporânea em relação aos argumentos das “janelas quebradas”.

No texto intitulado “E Se a Pedra Vem de Dentro?”, os juristas (famosos, diga-se, pela defesa radical de uma atuação punitiva mínima do Estado) contestam que as políticas de “tolerância zero” sejam a panaceia para a redução da criminalidade e apresentam dados em contrário que mostram que uma complexa ocorrência de fatores foi mais importante.

Mais grave, porém, na visão dos autores, é a ausência de preocupação com a reabilitação dos “desviantes”. A punição pela punição: o homem como objeto de demonstração exemplar. Punindo o desordeiro, se estabeleceria um padrão, uma norma social com o recado do que é certo e do que é errado e de que este último não é aceitável numa sociedade “normal”.

Por fim Coutinho e Carvalho observam que, muitas vezes, é o Estado quem quebra as janelas com atuações criminosas e que há uma parcela especial da sociedade (as elites políticas e econômicas) para a qual o percentual de tolerância é diferente de zero.

Aos 84 anos, o professor Kelling , um dos autores da teoria das janelas quebradas, ainda é consultor do departamento de Segurança de Nova York. 

Em uma entrevista ao jornal “The New York Times” ele avaliou que a tática de abordagem violentas da polícia contraria a ideia central de reprimir os delitos menores.

Kelling disse também que o argumento da “tolerância zero”, muitas vezes escorregou para “fanatismo sem nenhum critério, o oposto do que tentei pregar”.

O autor, contudo, ainda defende as ideias centrais de seu estudo dizendo que além de reduzir a criminalidade, a defesa publica da lei e da ordem produz outro benefício: “Em uma sociedade urbanizada em que não conhecemos as pessoas com quem convivemos, civismo e disciplina são um fim em si mesmo.”

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