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J. K. Rowling, Harry Potter, Hogwarts Legacy
J. K. Rowling, escritora britânica que criou a série Harry Potter, superou o cancelamento de ativistas identitários com o sucesso do novo jogo baseado em sua propriedade intelectual, Hogwarts Legacy.| Foto: Flickr/Daniel Ogren; Divulgação/Warner Bros. Games

Hogwarts Legacy, o novo jogo do universo do bruxo Harry Potter, da série de fantasia que começou com sete livros publicados entre 1997 e 2007 pela britânica J. K. Rowling, bateu recorde de vendas desde que foi lançado no último dia 10. Em duas semanas, houve mais de 12 milhões de vendas, declarou a Warner Bros Games, uma das empresas que o produziu, na quinta-feira (23). As vendas equivalem a um faturamento de US$ 850 milhões (R$ 4,4 bilhões). Esse resultado frustra múltiplos chamados de boicote de ativistas identitários, que acusam a escritora de “transfobia” por declarações feitas nos últimos anos, por exemplo contra a inclusão de pessoas trans em presídios femininos.

É um absoluto sucesso de vendas, batendo já na pré-venda títulos populares como Call of Duty e Grand Theft Auto, e ultrapassando a marca de lançamento do muito popular jogo de fantasia Elden Ring; ao ponto de a revista Business Insider atribuir ao jogo a principal causa de as ações da Warner Bros Discovery, empresa-mãe da produtora de jogos, terem ultrapassado em performance este ano as ações de empresas como Tesla, Meta (Facebook) e Amazon, subindo 64% depois de três anos de queda, contra 60% da Tesla, segunda colocada nesta lista. Na plataforma de streaming da Amazon, Twitch, foram registrados mais de um milhão de espectadores simultâneos do jogo. A distribuidora de jogos para computadores pessoais Steam registra centenas de milhares de jogadores simultâneos nesta plataforma diariamente. O jogo também foi lançado nas plataformas PlayStation e Xbox.

Acusações de transfobia

O início do descontentamento de ativistas identitários com a escritora britânica parece ter começado com um mero clique no botão “gostei”. Em 2018, J. K. Rowling curtiu um tweet de uma moça que alegava que, ao ter comparecido pela primeira vez aos 18 anos a uma reunião do Partido Trabalhista, deparou-se com um calendário com fotos de mulheres seminuas. Ao pedir que o objeto fosse removido, homens teriam “gritado” com ela. “Com frequência não me senti apoiada”, concluía o tweet. “Homens de vestido ganham solidariedade socialista que eu nunca tive. Isso é misoginia!” Na visão dos ativistas, a curtida significava endosso de Rowling à caracterização de mulheres trans como “homens de vestido”. Assessores da autora declararam que a curtida foi acidental, “um momento estabanado de pessoa de meia idade”.

Outras supostas transgressões se seguiram. A escritora apoiou no ano seguinte Maya Forstater, uma perita tributária demitida por ter dito que “homens não podem se transformar em mulheres”. Apelando à Justiça, Forstater perdeu em primeira instância, mas ganhou em corte superior. Na defesa, a autora de Harry Potter disse “Vista-se como quiser. Chame-se com o nome que quiser. Durma com qualquer adulto que lhe queira. Viva em paz e segurança. Mas tirar mulheres de seus empregos por afirmarem que o sexo é real?”

Ela continuou as críticas à chamada ideologia de gênero em 2020. Em resposta a um artigo que usava o termo “pessoas que menstruam”, Rowling comentou com sarcasmo “Tenho certeza de que costumava haver uma palavra para essas pessoas. Alguém me ajude. Molher? Malher? Melher?” Após a repercussão, ela acrescentou que “respeito o direito de toda pessoa trans de viver de qualquer forma que seja autêntica e confortável para ela. Marcharia contigo se fosse discriminada por ser trans. Ao menos tempo, a minha vida foi moldada por ser fêmea. Não creio que é ódio eu dizer isso”.

A manifestação mais premeditada e longa da escritora foi um texto em seu site pessoal publicado em 10 de junho de 2020. Ela diz que sua fundação filantrópica financia causas que são afetadas pelo ativismo trans, como a reabilitação de prisioneiras, ajuda a vítimas de estupro e violência doméstica, e pesquisa com a esclerose múltipla, “uma doença que se comporta de forma muito diferente nos homens e nas mulheres”. “Ficou claro para mim”, explicou Rowling, “que o novo ativismo trans está tendo (ou provavelmente terá, se todas as suas exigências forem atendidas) um impacto importante em muitas das causas que eu apoio, porque ele está fazendo pressão para erodir a definição legal de sexo e substitui-la pelo gênero”.

Ela deu três outros motivos para sua posição crítica ao movimento: o impacto sobre as crianças, com o qual ela se preocupa por ser ex-professora e fundadora de uma ONG voltada para crianças; “como uma autora muito banida, estou interessada na liberdade de expressão, que tenho defendido publicamente até para Donald Trump”; e, finalmente, ela se preocupa (sem usar o termo) com o contágio social de identificação trans entre meninas, que aumentou “4400%” em seu país.

O tempo parece ter dado razão à Joanne Rowling, que vive na Escócia. Este ano, a maior clínica pública de transição de gênero do Reino Unido, a Tavistock, será fechada, sob acusação de aceitar apressadamente o diagnóstico de disforia de gênero e prescrever tratamentos arriscados como o bloqueio da puberdade. Jovens que se arrependeram de fazer a transição hormonal processaram a clínica. Além disso, Nicola Sturgeon, parlamentar líder do governo escocês, deixou o cargo de primeira-ministra este mês após o caso explosivo de Isla Bryson, homem biológico de nome anterior Adam Graham, que estuprara duas mulheres e tentava transferência para um presídio feminino (o pedido foi derrubado pelo governo central do Reino Unido). A própria Sturgeon acusou Bryson de “quase certamente estar forjando” a identidade trans, após a pressão da oposição, mas havia defendido antes a política de inclusão que tem oposição da conterrânea bilionária da literatura, e havia titubeado a respeito de Bryson ser ou não uma mulher. Sturgeon nega que sua abdicação tenha algo a ver com o caso.

Apesar dessas movimentações recentes a seu favor, Rowling passou anos sob ataque dos esquerdistas em geral e do identitarismo em particular. Até mesmo os atores que interpretaram os principais personagens da série nos oito filmes da Warner (2001-2011), Daniel Radcliffe (Harry Potter), Rupert Grint (Ron Weasley) e Emma Watson (Hermione Granger) publicaram notas públicas ou deram entrevistas se posicionando a favor das pessoas trans e “discordando” da escritora. Radcliffe, prevendo que a imprensa descreveria a questão como uma briga, negou que estava brigando com a autora e disse que só queria manifestar apoio a pessoas vulneráveis. Grint, dizendo que a trata como sua tia, disse que não concordava com tudo o que ela diz e que a situação era difícil. Watson, que foi embaixadora da ONU, sem citar Rowling tuitou que “pessoas trans são quem elas dizem que são e merecem viver suas vidas sem ser constantemente questionadas”. Em 2020, ano dessas declarações, Rowling lançou sob o pseudônimo “Robert Galbraith” um romance policial em que um antagonista era um assassino em série que gostava de se travestir de mulher.

Tentativas de boicote

Essas polêmicas foram retomadas com o lançamento de Hogwarts Legacy. O fórum de jogos ResetEra baniu todas as discussões do jogo. Em comunicação, os administradores do site disseram que “Rowling não apenas é uma intolerante, mas está fazendo pressão ativa, na sua posição de pessoa rica e famosa, por legislação que vai ferir as pessoas trans”. Outros sites especializados prometeram que não cobririam HL. Críticos abriram uma campanha de doações para uma ONG que defende transição de gênero para crianças com o mesmo valor do jogo, com a ideia de destino alternativo para o dinheiro, e bateram sua meta de dez mil libras esterlinas (R$ 63 mil).

Em uma série de podcasts chamada “O julgamentos de bruxa de J. K. Rowling”, da publicação The Free Press, a escritora diz que foi mal compreendida pelos ativistas e reconta sua história: o primeiro livro foi escrito no começo dos anos 1990. Um ex-marido abusivo português chegou a fazer o manuscrito de refém, tentando evitar que ela o deixasse — mais tarde, quando ela fez sucesso, ele foi até o Reino Unido e invadiu sua casa. De fato, como ela fez alusão, houve tentativas de banimento das obras por alguns cristãos que acreditavam que eram malignas e demoníacas, especialmente nos EUA, em que tentaram bani-las de bibliotecas escolares, perdendo na justiça. Em mais de um quarto de século desde o primeiro lançamento, a autora foi alvo de forças censórias à direita e à esquerda.

Os jogos eletrônicos, que faz um bom tempo que já são um mercado maior que os filmes de Hollywood, viraram arenas de guerras culturais há anos, especialmente desde 2014, com a polêmica conhecida como “Gamergate”. De um lado, identitários acusavam os jogadores de formarem uma subcultura misógina, homofóbica e racista — no grupo dos acusadores estavam incluídos jornalistas, que combinaram pauta de diferentes publicações para fazer as acusações (prática jornalística incomum, se não antiética). De outro, os aficionados acusavam os ativistas do identitarismo e seus simpatizantes na imprensa de tentar cooptar seu hobby para causas políticas por causa do tamanho de sua influência econômica e cultural. Ao menos na imprensa especializada em jogos e na Wikipédia, que trancou o artigo contra edições que concordassem com o segundo ponto de vista, os gamers perderam a batalha. A derrota dos identitários no fracasso das tentativas de boicotar HL, portanto, tem aparência de virada.

Enredo do jogo

Apesar de não ter tido contribuição direta de Joanne Rowling, Hogwarts Legacy, cuja história se passa um século antes dos eventos dos livros,respeita detalhes do cânone estabelecido pela autora. Por exemplo, o jogo segue as linhagens de diferentes famílias de bruxos: o diretor da escola de bruxaria de Hogwarts, Phineas Nigellus Black, é ancestral de Sirius Black, padrinho de Harry Potter. Outros sobrenomes familiares para os leitores aparecem, como Weasley, além dos fantasmas Pirraça, Nick Quase Sem Cabeça e o Professor Binns, de História da Magia, que deu aula para Harry já no primeiro livro.

O personagem controlado pelos jogadores não tem um histórico, nome ou personalidade definidos. Em inglês, os outros personagens se referem a ele pelo pronome “they”, normalmente a terceira pessoa do plural (“eles”), mas tratado hoje como um pronome neutro para pessoas singulares — um desenvolvimento estimulado pelo identitarismo e a proliferação recente de pessoas que alegam ser “não-binárias” (nem mulheres nem homens), mas cujo uso dessa forma no singular alternativo a “he” (“ele”) e “she” (“ela”), não necessariamente focado em neutralizar o gênero, é encontrado em Shakespeare.

Na hora de escolher a aparência do personagem, o jogo oferece duas vozes que podem ter timbre modificado. Em vez de dizer “voz masculina” e “voz feminina”, são rotuladas de “voz 1” e “voz 2”. É possível fazer personagens cuja voz é surpreendente para sua aparência quanto ao sexo. Há uma personagem transexual, a dona do bar “Três Vassouras”, na cidade deHogsmeade, em que se serve “cerveja amanteigada”, produto que foi reproduzido no mundo real e é vendido nos parques temáticos de Harry Potter nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Como nos livros, o personagem é selecionado por um chapéu mágico para ocupar uma de quatro “casas” da escola-castelo, cada uma fundada séculos antes por um bruxo ou bruxa notória com virtudes distintas como coragem, sabedoria, diligência e ambição. Diferentemente dos livros, no entanto, o personagem só entra na escola aos 15 anos, em vez de aos 11 como Harry Potter — provavelmente uma estratégia do jogo para atrair diferentes faixas etárias entre os fãs. Houve outros jogos neste universo antes, que acompanhavam os livros, mas Legacy é o primeiro jogo em que o personagem pode explorar um mundo aberto, escolhendo em qual aventura deseja embarcar de cada vez, mas seguindo uma trama central que trata de uma habilidade especial do protagonista de perceber “magia antiga”.

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