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Protestos pró-vida em Washington, capital dos Estados Unidos, em junho de 2022
Protestos pró-vida em Washington, capital dos Estados Unidos, em junho de 2022| Foto: EFE

Também as leis pertencem à história cultural. Uma decisão da Suprema Corte peleja para se conectar a um princípio atemporal. Mas uma decisão sempre se conecta, ainda -- de maneira quase inconsciente, como que falando durante o sono --, ao seu momento particular na vida nacional.

Pensemos na Roe v. Wade (1973) e na Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization (2022) como um exercício da fotografia do lapso temporal. Tais decisões foram, respectivamente, o começo e o fim de um capítulo de 50 anos da História dos EUA no que concerne ao assunto do aborto. Esses 50 anos coincidem de modo preciso com a vida adulta dos membros mais velhos da geração do baby boom, que estavam cursando Direito quando Roe venceu, ou então engatinhando na carreira política (vide Bill e Hillary Clinton). Agora estão se apaziguando na velhice.

A decisão Roe, uma revolução, veio na altura da onda Gloria Steinem do feminismo. O fim dos anos 60 e o começo dos 70 foram a sementeira das guerras culturais dos EUA -- aquelas lutas que começaram logo após a passagem da Lei dos Direitos Civis de 1964 e 1965, quando o conflito migrou do campo de batalha legal para o cultural.

As velhas autoridades falharam. À época de Roe, as elites culturais estavam envoltas numa mentalidade ovina perante a juventude contracultural. Elas, que de modo geral se esquivaram do rascunho da decisão, lambiam as feridas da humilhante derrota na Guerra do Vietnã, do escândalo de Richard Nixon (a decisão pelo aborto se deu em meio ao Watergate, enquanto os fatos condenatórios eram vazados) e do catastrófico governo de Lyndon Johnson. Desprezaram o regime de velhos desacreditados (nada de bom acontecia ao país desde a morte de Jack Kennedy), de modo que imploravam por ações novas e esclarecidas. Bliss was it in that dawn to be alive / But to be young was very heaven! [Era uma bênção estar vivo no alvorecer / Mas estar vivo e jovem era o próprio paraíso!] A fragilidade de Roe (até a Juíza Ruth Bader Ginsburg a achava fraca enquanto assunto de lei constitucional) se tornou mais um aspecto do ardente impacto daquela época. Além disso, Roe aparentava ser uma vitória das jovens elites sobre os Crentes Velhos (Old Believers) — a maioria silenciosa que Spiro Agnew cortejava. Depois, em 1973, Agnew teve de renunciar à vice-presidência. Parece que, em seus dias de governador de Maryland, tivera o hábito de aceitar subornos entregues em sacolas de papel pardo.

O tema geracional era onipresente àqueles dias. A revolução sexual, um fenômeno da juventude, tinha produzido suas consequências naturais, a despeito dos esforços da pílula para prevenir esse tipo de problema. Então Roe foi uma bênção na prática. As elites dominantes (na mídia, nas universidades e nas artes, no governo, nas corporações) tinham sido terrivelmente abaladas pela segunda metade dos anos 60, e por sua própria culpa (o Vietnã é apenas parte da história). Buscaram apaziguar a multidão de boomers, que eram, afinal, os vindouros, e, no fim, os vencedores enquanto o país emergia dos anos 60.

Todos esses elementos foram parte do Zeitgeist que rondava a decisão Roe. Não quero dizer que o autor da decisão, o Juiz Harry Blackmun, um homem do Minnesota enviado à Corte pelo Presidente Nixon em 1970, era um hippie ou um tolo. Ele tinha 65 anos à época e começou seu período na corte como um conservador. Ele acabaria se tornando o juiz mais liberal e (diriam alguns) o mais humano. Mas eu proponho que o raciocínio e a linguagem de Blackmun na decisão Roe (tanto no que ele escreveu quanto no que ele omitiu) foi influenciada pelas energias culturais ambientes daquela época vívida: por aquilo a que chamamos de "clima".

A sabedoria à esquerda adota a ideia de que a decisão da semana passada, por Dobbs, foi essencial e criminosamente política: um ato de brutalidade trumpista. Mas a formulação está de cabeça para baixo. As energias das elites boomers (que remontam aos dias dos direitos civis e ao movimento contra a guerra) sempre foram feroz e teatralmente políticas. Suas vitórias nos anos 60 foram alcançadas sobretudo por performances políticas -- dissidência, desobediência, protesto --, em vez de usarem os instrumentos convencionais de processo constitucional. Os políticos eleitos (Johnson, Nixon) é que eram os seus vilões. As gerações mais novas herdaram dos boomers certas preferências antidemocráticas -- inclusive a fé na teatralidade política, chegando à hipérbole e até à histeria, que agora foram amplificadas de mil maneiras pelas redes sociais. O protesto se tornou uma das formas mais familiares e aceitas do teatro americano. Mulheres vestem fantasias do Conto da Aia e batem às portas da Suprema Corte.

A verdade acerca de Dobbs é -- ou deve ser -- um anticlímax. Anti-teatral também: o que a Corte fez foi ao menos tentar tirar das mãos dos baby boomers e de seus prepostos a difícil e dolorida questão do aborto, e deixar que seja resolvida democraticamente pelas legislaturas dos 50 estados.

© 2022 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês.

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