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Poucos santos reúnem em torno de si cristãos, muçulmanos e até pessoas sem religião. São Charbel Makhluf (1828-1898) é esse fenômeno. O sacerdote eremita tem atribuídos por sua intercessão cerca de 29 mil milagres, a maior quantidade já catalogada por um santo da Igreja Católica.
Mas não foi só por isso que o Papa Leão XIV fez história ao chegar ao túmulo onde repousa o santo durante sua viagem ao Líbano, no início do mês — ele foi o primeiro pontífice a visitar pessoalmente o túmulo de São Charbel, num gesto simbólico de reconhecimento e esperança.
Para destacar o contraste da vida do santo mais amado da região com a realidade atual, o papa comentou que São Charbel foi moldado para ensinar “a oração aos que vivem sem Deus, o silêncio aos que vivem no barulho, a modéstia aos que vivem para aparecer e a pobreza aos que buscam riquezas”.
Séculos de perseguições
A história do Líbano guarda um precedente interessante sobre a convivência entre cristãos e muçulmanos, tema que hoje acomete toda a Europa.
Segundo a tradição e o livro dos Atos dos Apóstolos da Bíblia, a região da antiga Fenícia — que corresponde em grande parte ao atual território libanês — recebeu a pregação de um dos primeiros discípulos de Jesus Cristo, São Paulo Apóstolo, em suas viagens missionárias.
Esse anúncio do Evangelho fez do Líbano um dos mais antigos berços do cristianismo, com comunidades cristãs que atravessaram séculos de perseguições, impérios e transformações políticas sem perder sua identidade religiosa.
Ao longo da Idade Média e da era moderna, o Líbano se consolidou como um dos países com maior proporção de cristãos no Oriente Médio, especialmente católicos ligados à Igreja Maronita, que está em comunhão com Roma. Por essa razão, o Líbano representa um símbolo de convivência possível do cristianismo em uma região majoritariamente muçulmana.
Apesar de cristãos e muçulmanos compartilharem atualmente o poder político, a convivência nem sempre foi pacífica. Após a criação do Estado de Israel, em 1948, o Líbano recebeu milhares de refugiados palestinos, majoritariamente islâmicos, o que alterou profundamente a demografia e o contexto político do país.
A nova configuração social e religiosa agravou tensões que desembocaram numa longa guerra civil (1975–1990), período em que comunidades cristãs foram particularmente atingidas por violentas perseguições. A consequência foi uma emigração em massa — muitos deles inclusive vieram para o Brasil.
Mesmo sem mencionar explicitamente esse período de horror, o papa trouxe a memória do santo para propor uma reconciliação possível entre cristãos e muçulmanos. Por mais boa vontade que tenha demonstrado em seu discurso, a história não foi tão favorável aos cristãos. Como também não está sendo agora na Europa.
Diálogo e coexistência
A situação atual do Líbano, no entanto, figura como uma exceção no Oriente Médio. O país, que possui entre 30% e 40% de cristãos, mantém um dos modelos políticos mais singulares da região porque distribui as principais funções do Estado entre religiões. O presidente é cristão maronita, o primeiro-ministro é muçulmano sunita e o presidente do Parlamento, muçulmano xiita.
O padre Toufic Madi, vigário da Paróquia São Charbel, de rito maronita, em Brasília, corrobora essa ideia. Como libanês, ele explica sua visão sobre a convivência das diversas crenças que existem no país: "Não existe esse conflito por causa da religião lá no Líbano".
Segundo o sacerdote, as tensões mais graves vêm de interferências externas: "Os americanos, o Irã, sei lá, eles que botam fogo". Ele observa que, apesar da imagem internacional marcada por guerras, o povo libanês é sereno e pacífico.
Segundo o padre Toufic, a presença do santo na vida cotidiana libanesa ajuda a criar um terreno comum entre comunidades diferentes. "Há tolerância", afirma.
Em sua experiência, a devoção ao santo funciona como um ponto de encontro entre grupos religiosos historicamente distintos: "Graças a São Charbel, ou seja, pela intermediação dele, os muçulmanos se unem a nós".
Essa devoção compartilhada por grupos distintos fortalece o esforço da Igreja Católica em promover o diálogo e a coexistência pacífica em um dos países mais diversos do Oriente Médio. "São Charbel une a nação toda no Líbano", resume.

Uma luz intensa
Nascido em 1828, em um vilarejo cristão do interior do Líbano, Youssef Antoun (José Antônio) Makhluf — que mais tarde adotaria o nome religioso Charbel — foi ordenado sacerdote da Igreja Maronita e viveu primeiro no Mosteiro de São Maron, em Annaya, no Líbano.
Anos depois, pediu para se retirar a um eremitério nas montanhas, onde levou uma vida de extrema austeridade, marcada por jejuns rigorosos, longas horas de oração e uma devoção particular à Eucaristia. Morreu em 1898, praticamente desconhecido fora do seu mosteiro.
A fama de taumaturgo (fazedor de milagres) começou logo após sua morte. Vizinhos muçulmanos relataram ter visto uma luz intensa vindo do túmulo de Charbel, o que levou os monges a exumarem o corpo, que foi encontrado intacto. Ao ser levado para análise, o corpo começou a transpirar sangue e água de forma inexplicável, exalando um odor agradável, muito diferente de qualquer outro cadáver.
Ao longo do século XX, multiplicaram-se os relatos de curas atribuídas à sua intercessão. Pessoas afirmavam ter sido libertas de doenças graves depois de invocarem seu patrocínio.
A devoção ultrapassou rapidamente as fronteiras libanesas. Em 1965, Paulo VI o proclamou bem-aventurado e, em 1977, confirmou-o como santo da Igreja Católica, após a investigação canônica de alguns milagres.
Entre eles, a cura completa e inexplicada de uma mulher que padecia de câncer com metástase no estômago, intestinos e garganta; um ferreiro cego que voltou a enxergar; e uma religiosa que sofria há anos com dores abdominais e grave debilitamento. Todas as recuperações se deram depois de rezarem a São Charbel.
Esses casos passaram por comissões médicas e teológicas, segundo os procedimentos habituais do Vaticano. A imensa maioria dos relatos, porém, permanece no âmbito da devoção popular, registrada nos arquivos do mosteiro e em testemunhos particulares.
Fama de recordista
Apesar da quantidade impressionante de relatos, a Igreja Católica não mantém qualquer ranking oficial que compare santos pelo número de milagres atribuídos a cada um. A ideia de que São Charbel seria "o santo com mais milagres" surge principalmente dos responsáveis pelo santuário em Annaya e de grupos de voluntários dedicados à divulgação de sua devoção.
O que de fato torna São Charbel uma figura singular é a dimensão do arquivo mantido pelo Mosteiro de São Maron. Segundo os monges, há cerca de 29 mil milagres e graças consideradas extraordinárias registrados, acumulados ao longo de décadas. Esse volume não é comum na história da devoção católica e chama atenção pela variedade de testemunhos.
Outro aspecto sempre destacado pelos religiosos e divulgadores da devoção é que cerca de 10% das curas relatadas envolvem pessoas não batizadas, incluindo muçulmanos, drusos e até ateus. Por isso, São Charbel acabou se tornando, na prática, uma ponte entre diferentes tradições religiosas — algo raro no Oriente Médio.
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