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No começo do mês, a bispa Sarah Mullally, de 63 anos, foi eleita a primeira mulher a ocupar o cargo de arcebispa da Cantuária (Canterbury). Isso significa que agora ela é a líder espiritual da Igreja Anglicana, presente em 165 países e com cerca de 95 milhões de fiéis.
O anúncio deve acentuar a divisão na Igreja Anglicana, que já passava por um processo de cisão interna. A liderança anglicana na Nigéria, por exemplo, declarou independência espiritual da Igreja da Inglaterra, rejeitando a nomeação da bispa Sarah Mullally como nova arcebispa de Cantuária. Segundo o comunicado, seu apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e sua ascensão como primeira mulher a ocupar o cargo representam um preocupante declínio moral na liderança da Comunhão Anglicana.
A escolha não surpreende quem acompanha a guinada progressista da denominação, mesmo em pautas que contrariam os ensinamentos evangélicos. A própria postura de Mullally é controversa por si, independentemente de ser ela mulher.
Por exemplo: em janeiro deste ano, após uma votação pelo Parlamento Inglês colocar fim à punição por aborto para a mãe (em qualquer estágio da gestação), a então bispa de Londres se referiu às “mulheres que enfrentam gestações indesejadas” como quem se vê “diante de decisões difíceis” e que, por isso, “não deveriam ser processadas”.
Em vez de defender as leis que preservam a vida do bebê em qualquer estágio de gestação, ela destacou que a emenda aprovada “coloca em risco as salvaguardas e a aplicação dos limites legais existentes”. Segundo Mullally, as mudanças na legislação relacionadas ao aborto não deveriam ser realizadas “por meio de uma emenda a outro projeto de lei”, mas sim por meio de “consulta pública e um processo parlamentar robusto”.
Já em relação à união de pessoas do mesmo sexo, em 2023 ela apoiou a aprovação de bênção para as uniões por parte da Igreja da Inglaterra, embora a Igreja ainda mantenha a proibição de realizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Mullally descreveu essa decisão como "um momento de esperança" para a igreja. Ela também afirmou que a igreja deve refletir sobre sua tradição e escritura para oferecer uma resposta inclusiva.
Enfermeira, casada e mãe de dois filhos
Sarah Mullally é casada com Eamonn Mullally desde 1987. Ele atua como arquiteto de TI e empresário, e o casal tem dois filhos adultos, Liam e Grace. Em 2010, Mullally concedeu uma entrevista à Church Times, na qual fala em primeira pessoa sobre sua trajetória. Ao explicar a decisão de se tornar enfermeira em vez de médica, ela afirmou que buscava oferecer um “cuidado holístico”.
Formada pelo Saint Thomas’s Hospital e graduada no South Bank Polytechnic, Mullally iniciou uma carreira típica na enfermagem, mas rapidamente avançou em posições de liderança. Em 1999, tornou-se enfermeira sênior do governo, assessorando o então primeiro-ministro Tony Blair, ministros e altos funcionários sobre políticas nacionais de saúde. Ao comentar essa conquista, ela lembra que gerou polêmica por ser jovem para o cargo, mas atribui seu sucesso às “mudanças implementadas pelo governo trabalhista”.
Posteriormente, Mullally deixou o serviço público para seguir o sacerdócio. “A decisão de deixar o Departamento de Saúde para ser ordenada foi a maior da minha vida, dificultada pelos comentários negativos que recebi”, declarou.
Disléxica e leitora de “A Cabana”
Embora afirme ser disléxica e que “as palavras parecem escapar das páginas” ao ler, Mullally recomendou livros na entrevista à Church Times. “Recentemente, reli O Elefante e a Pulga, de Charles Handy, sobre liderança: grandes organizações são lentas, poderosas e resistentes; pulgas são ágeis, vulneráveis e irritantes. Vejo-me mais como uma pulga agora”, comentou na ocasião.
O livro, que ela leu pelo menos duas vezes, trata de economia e gestão sob uma abordagem sociológica e comportamental, explorando como indivíduos, pequenas empresas e grandes organizações interagem no contexto econômico moderno.
“Leio muita teologia, que fundamenta minhas ações, e me inspiro em livros de Desmond Tutu e em A Cabana, de William P. Young, que desafiam ideias preconcebidas sobre Deus e a Igreja”, confessou Mullally.
Desmond Tutu (1931–2021), ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1984, foi arcebispo anglicano sul-africano e ativista dos direitos humanos, conhecido mundialmente por sua luta contra o apartheid. Ele também foi um dos primeiros líderes religiosos anglicanos a apoiar abertamente a pauta LGBT, incluindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Já A Cabana é um romance espiritualista que mistura cristianismo e ficção, no qual o personagem principal dialoga com Deus Pai, Jesus Cristo e o Espírito Santo, todos apresentados em formas humanas. Deus Pai, por exemplo, é retratado como uma mulher negra no livro.
Outra pauta de esquerda em discussão na Igreja Anglicana é o uso de linguagem neutra para se referir a Deus. Desde 2023 espera-se uma definição da comissão formada para explorar os termos de gênero usados para se referir a Deus em sua liturgia autorizada. Apesar das mudanças provocarem divisões internas e críticas dos que defendem a preservação da tradição teológica, Mullally ainda não se pronunciou a respeito.
O cisma na Igreja Anglicana
O cisma que divide a Comunhão Anglicana vem se intensificando ao longo das últimas duas décadas. Como consequência, os anglicanos se fragmentaram em blocos teológicos e geográficos. Esses blocos, por sua vez, praticamente não reconhecem mais a autoridade do arcebispo da Cantuária, o que transforma a unidade institucional em algo quase simbólico.
O ponto de ruptura moderno remonta a 2003, quando a Igreja Episcopal dos EUA consagrou Gene Robinson, bispo assumidamente homossexual, provocando reação de províncias conservadoras na África, Ásia e América Latina. Como resposta, surgiu o movimento GAFCON (Global Anglican Future Conference), que busca manter a fidelidade à doutrina bíblica tradicional sobre sexualidade, casamento e autoridade das Escrituras.
Atualmente, a Comunhão Anglicana se organiza como uma federação informal de províncias autônomas, dividida entre o eixo liberal do Norte Global e o eixo mais conservador do Sul Global. Muitas dioceses africanas e latino-americanas, a exemplo da Nigéria, Uganda, Quênia e Ruanda, que se reorganizaram em novas jurisdições, no chamado "Realinhamento Anglicano", originando denominações como a Igreja Anglicana na América do Norte (ACNA) e a Igreja Anglicana no Brasil (IAB).
“Papisa” não é o termo correto
Em quase cinco séculos de história, esta é a primeira vez que uma mulher ocupa o cargo máximo da Igreja da Inglaterra. Desde o anúncio, parte da imprensa passou a chamá-la de “papisa”, em referência à posição central do arcebispo da Cantuária dentro da Comunhão Anglicana. O termo, porém, é impreciso e não corresponde à estrutura teológica nem à organização institucional do anglicanismo.
Na Igreja Católica, o papa é o chefe supremo e visível de toda a Igreja, considerado sucessor de São Pedro e dotado de autoridade universal quando se pronuncia ex cathedra — ou seja, oficialmente — sobre questões de fé, moral e disciplina. Somado a disso, o papa exerce poder direto sobre bispos e dioceses, define doutrinas, nomeia cardeais e governa a Igreja de forma centralizada, a partir do Vaticano.
No caso da Igreja da Inglaterra, a lógica é completamente diferente. O arcebispo da Cantuária é o primaz da província inglesa e o líder espiritual simbólico da Comunhão Anglicana. Sua função é descrita como a de “primeiro entre iguais” (primus inter pares), expressão que indica primazia de honra, e não de autoridade. As províncias anglicanas, espalhadas pelo mundo, são autônomas em doutrina, disciplina e liturgia, e não estão subordinadas ao arcebispo da Cantuária.
Além disso, o cargo é de natureza institucional, não soberana. A escolha do arcebispo envolve um processo de consulta entre bispos e leigos e depende da aprovação formal do monarca britânico, que detém o título simbólico de “governador supremo” da Igreja da Inglaterra. Mullally, portanto, não recebeu autoridade universal sobre o anglicanismo.
A primeira mulher ordenada
Na Bíblia, há a referência a uma carta de São Paulo aos Coríntios em que o apóstolo escreve: “As mulheres estejam caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar, mas devem estar submissas, como também ordena a lei” (1 Coríntios 14,34). Apesar dessa proibição expressa, a ordenação de mulheres na Igreja Anglicana teve início em 1944, quando um bispo de Hong Kong ordenou Florence Li Tim-Oi.
A carência de sacerdotes durante a Segunda Guerra Mundial levou à polêmica ordenação feminina. A reação contrária de líderes anglicanos fez com que ela renunciasse dois anos depois, em 1946. Com o tempo, no entanto, o gesto pioneiro acabou se consolidando: os Estados Unidos reconheceram oficialmente o sacerdócio feminino em 1976, seguidos pela Inglaterra em 1994. Já a consagração de bispas foi permitida apenas em 2015. Entre as beneficiadas está Sarah Mullally, ordenada em 2002 e nomeada bispa de Londres em 2018.
História da Igreja Anglicana
A Igreja na Inglaterra manteve-se unida a Roma durante seus primeiros séculos, mesmo com o isolamento geográfico e as dificuldades de comunicação. A evangelização dos anglos começou com a missão de Santo Agostinho de Cantuária, enviada por São Gregório Magno, que fundou a sé episcopal de Cantuária e consolidou o cristianismo na região. Desde cedo, porém, os reis ingleses tentaram submeter a Igreja ao poder real, o que gerou conflitos e martírios, como os de São Tomás Becket e Santo Anselmo, que defenderam a autonomia e os direitos do Papa frente ao absolutismo monárquico.
Com o enfraquecimento da autoridade papal a partir do século XIV e o crescimento das tensões políticas na Europa, a Inglaterra tornou-se terreno fértil para o cisma. O rompimento definitivo com Roma ocorreu no século XVI, sob o reinado de Henrique VIII. Desejando anular seu casamento com Catarina de Aragão, o rei teve seu pedido negado pelo Papa. Em represália, declarou-se “Chefe Supremo da Igreja na Inglaterra”, fundando uma nova religião nacional — o anglicanismo. O monarca ordenou a execução de opositores como São Tomás Morus e São João Fisher, e iniciou uma violenta perseguição contra os católicos fiéis a Roma.
A filha de Henrique, Maria Tudor, restabeleceu temporariamente a união com a Igreja Católica, mas sua morte levou ao trono sua meia-irmã Isabel I, filha de Ana Bolena. Protestante convicta, Isabel consolidou o cisma, restabeleceu o anglicanismo e perseguiu duramente os católicos, incluindo sua prima Maria Stuart, executada por ordem da rainha. Sob seu governo, a Inglaterra se tornou oficialmente protestante, rompendo de vez com Roma.






