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Eduardo Reina com moradores de aldeias próximas ao Araguaia, palco de suas pesquisas
Eduardo Reina com moradores de aldeias próximas ao Araguaia, palco de suas pesquisas.| Foto: Reprodução/ Redes Sociais

Lia Cecília era ainda bebê quando foi levada, em uma viatura policial, até um orfanato de Belém. Dois agentes militares percorreram mais de 700 quilômetros de estrada com ela, saindo da região onde havia sido sequestrada até chegar à capital do Pará. O ano era 1974 e, algum tempo mais tarde, Lia seria adotada por um casal que a registrou como sua filha legítima. Embora soubesse desde muito cedo que eles não eram seus pais biológicos, foi apenas em 2009 que Lia conseguiu uma pista sobre a identidade do pai, posteriormente confirmada por exames de DNA – Lia Cecília era filha de Antônio Teodoro de Castro, codinome Raul, morto na guerrilha do Araguaia.

A descoberta do pai biológico não foi suficiente para ela preencher outras lacunas sobre seu passado: Lia jamais localizou a mãe e tampouco conseguiu descobrir quem foram os militares que fizeram a longa viagem entre a área da guerrilha e Belém. Ainda assim, ela foi mais longe que outros bebês, crianças e adolescentes que tiveram uma história parecida: até pouco tempo atrás, o caso de Lia Cecília da Silva Martins era o único conhecido no Brasil de um sequestro de menor de idade por agentes da ditadura.

Prática comum em outros regimes militares vividos na América do Sul na mesma época, o sequestro de bebês por membros das Forças Armadas era considerado inexistente por aqui.

Em Cativeiro sem fim, livro-reportagem lançado em março, o jornalista Eduardo Reina mostra que a realidade brasileira é muito mais sombria do que se acreditava: sua investigação revelou a existência de pelo menos outros 18 casos como o de Lia e é possível que haja dezenas de crimes similares ainda desconhecidos no Brasil.

“Isso sempre ficou na minha cabeça: como era possível existirem mais de 500 casos na Argentina, existir o mesmo tipo de crime no Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia, e não ter acontecido algo assim aqui”, comenta Reina, que passou pelas redações de O Estado de S. Paulo, Diário de S. Paulo e Diário Popular, entre outros. “Parecia ainda menos provável que isso não tivesse ocorrido no Brasil porque havia uma ação em conjunto entre as forças militares do Cone Sul”, diz.

Tabu

Tema tabu no Brasil, o sequestro de menores de idade pelo Estado virou uma espécie de “segredo dentro do segredo” da ditadura, como define o autor. “Sempre se falou de prisão e desaparecimento, das buscas pelos corpos de desaparecidos políticos. E o que nós temos é o contrário: em vez de se chegar a uma possível solução para esses crimes já conhecidos, quando se investiga o período acabamos descobrindo coisas cada vez mais cruéis”, lamenta Reina.

O jornalista percorreu mais de 20 mil quilômetros em busca de depoimentos e documentos inéditos, grande parte deles mantidos por residentes em regiões remotas da Amazônia. Mais de metade dos casos estavam diretamente relacionados à guerrilha do Araguaia, que se desenrolou em partes do Pará e do então norte de Goiás (atual Tocantins) – bebês, crianças e adolescentes relacionados de alguma forma com membros dos grupos armados de extrema-esquerda que se estabeleceram na região com o objetivo de angariar apoios entre a população camponesa e enfrentar os militares.

Em meio à violência, a população ficou dividida entre apoiar os guerrilheiros ou ajudar na repressão, gerando um trauma que ainda hoje permanece vivo na região. Segundo Reina, levantar a recordação daqueles dias não é uma tarefa fácil, devido ao temor que persiste entre os habitantes que testemunharam a guerrilha. “A população local se sente vigiada e oprimida, porque ainda existe uma ação do Exército muito forte na área”, assinala.

Em outros casos, a busca por informações esbarrou em tentativas veladas de prejudicar o trabalho do repórter. Foi o que ocorreu, por exemplo, quando o autor descobriu a história de Rosângela Serra Paraná, sequestrada e criada por um ex-soldado do Exército que chegou a ser motorista de Ernesto Geisel.

“Cada vez que eu chegava a um ponto e descobria algo, vinha uma contrainformação. Uma pessoa foi atrás da Rosângela e disse que ela não acreditasse em nada do que ‘o Eduardo Reina’ dissesse para ela, porque eu ‘só queria o dinheiro dela’”, conta o autor.

Ao todo, Cativeiro sem fim mapeia 19 casos, 11 deles relacionados à guerrilha do Araguaia, mas também inclui outros ocorridos antes e depois, e até mesmo a captura de cinco crianças indígenas. Seus destinos foram diversos: levadas a orfanatos, adotadas por militares cujas esposas não podiam ter filhos ou apropriadas por outras famílias que podiam ou não ter relação direta com o sequestro.

Os capturados na adolescência tiveram documentos forjados e chegaram a trabalhar em quartéis, sob a fachada de estarem prestando o serviço militar. O grande “crime” desses menores de idade era serem filhos de quem eram: para o regime, havia um risco real de estarem sob a “influência ideológica” de pais que tinham decidido pegar em armas e deviam ser punidas como eles para não virem a ameaçar o governo no futuro.

Reina conseguiu localizar e ouvir seis dessas vítimas, muitas das quais sobreviveram apesar das ordens que vinham de cima. “Na Argentina, existia um manual de procedimento: crianças até 4 a 6 anos de idade ainda podiam ser entregues a famílias de militares para adoção, pois não tinham sido ‘contaminadas’ pelos pais. Acima disso, deveriam ser mortas”, exemplifica. “Essa ordem também existiu no Brasil, mas os soldados que cometeram esses crimes não tiveram coragem de executar essas crianças e as levaram para outros lugares”.

Os 19 casos revelados por Cativeiro sem fim podem ser apenas o começo da descoberta de um crime que talvez tenha sido ainda mais amplo e difundido no Brasil. Desde a investigação que culminou no livro, o autor teve contato com outros casos semelhantes. “Já estão mapeados 20 novos casos que precisam ser investigados. É um longo trabalho de apuração e validação, pois pode ser que nem todas as suspeitas se confirmem, mas elas existem”, aponta Reina.

A descoberta de uma quantidade antes impensada de sequestros também poderia representar uma mudança de paradigma na forma como os crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura são tratados pela Justiça – em países vizinhos, episódios desse tipo foram utilizados para contornar as Leis de Anistia dos anos 70 e punir militares, sob o entendimento de que sequestros permanecem vigentes até hoje, extrapolando o período “perdoado” pela legislação.

“Na Argentina, não foram os outros crimes da ditadura que levaram à prisão de um general-presidente e seus comandados, e sim o sequestro de crianças e bebês”, destaca o autor. “A revelação desses casos pode ser um ponto de partida para algo diferente no Brasil”, espera.

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