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Albânia: IA na vanguarda da administração pública

Sonho tecnocrata ou distopia? Por que a Albânia nomeou ferramenta da IA como ministra

Uma captura de tela de Diella, ministra do governo albanês gerada por inteligência artificial, é exibida após o primeiro-ministro nomeá-la como ministra de estado. (Foto: EFE/ ANDREJ CUKIC)

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O primeiro-ministro da Albânia acaba de contratar uma tecnologia baseada em inteligência artificial para ser ministra de estado. Diella, a IA, agora é ministra de Aquisições Públicas. Antes, ela já atuava como assistente virtual na plataforma estatal e-Albania, mas agora atua com licitações governamentais. O objetivo, explicado pelo primeiro-ministro Edi Rama, será tornar a Albânia um país onde as licitações públicas são “100% livres de corrupção”.

A Albânia, que possui apenas 2,77 milhões de habitantes, está realizando o sonho dos defensores da tecnocracia. Por esse ideal, a administração pública deveria ser guiada pela técnica, pela ciência e por dados, e não apenas por decisões políticas sujeitas a interesses e falhas humanas. Mas será que a tecnologia é realmente isenta de riscos?

A tecnocracia e o avô do Elon Musk

O termo tecnocracia tem raízes na língua grega e significa governo pela técnica. Ou seja, uma administração pública gerida por pessoas qualificadas tecnicamente sem envolvimento ideológico ou político.  

O engenheiro William Henry Smyth foi o primeiro a utilizá-lo no início do século XX, em 1919, quando defendia que cientistas e engenheiros devessem assumir papéis centrais na condução de políticas públicas, substituindo a lógica eleitoral por uma lógica de eficiência. 

Na década de 1930, em plena Grande Depressão, a proposta ganhou força nos Estados Unidos e no Canadá. Foi nesse contexto que surgiram organizações como a Technocracy Incorporated.

É aí que entra o avô materno de Elon Musk, o médico Joshua Haldeman (1902–1974). Haldeman foi uma das figuras centrais na defesa da tecnocracia no Canadá durante os anos 1930, chegando a liderar a filial canadense da organização Technocracy Incorporated. Para ele e seus colegas, o conhecimento técnico seria mais capaz de resolver crises econômicas e sociais do que o jogo de interesses da política partidária.  

Talvez o avô tivesse a mesma paciência que o neto com políticos, como ficou evidente no relacionamento de Musk com Trump. Tão logo o presidente dos Estados Unidos venceu as eleições com a ajuda do magnata da tecnologia, já começaram a se bicar.

A experiência tecnocrática brasileira

Durante o regime militar (1964–1985), o Brasil viveu uma fase marcada pela forte presença de tecnocratas na formulação de políticas públicas. Economistas e engenheiros assumiram cargos de gestão, na expectativa que o planejamento técnico pudesse substituir a incompetência política.  

Roberto Campos, ministro do Planejamento de Castelo Branco, foi um dos primeiros a estruturar reformas financeiras e abrir espaço para o capital externo. Antônio Delfim Netto, ministro da Fazenda no governo Médici, conduziu a política econômica baseada em crédito farto, incentivos à indústria pesada e obras de grande porte.

No governo Geisel, João Paulo dos Reis Velloso liderou o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que previa investimentos maciços em energia, siderurgia, telecomunicações e transportes. Mário Henrique Simonsen, à frente da Fazenda, buscou dar racionalidade ao processo, tentando controlar a inflação e equilibrando contas públicas.

A atuação desses tecnocratas deixou o legado de “milagre econômico”, quando foram erguidas hidrelétricas, ampliada a malha rodoviária, fortalecida a Petrobras e criada a Embratel. Tudo levava a crer que os gestores técnicos modernizariam definitivamente o país, sem a necessidade de interferência política. 

No entanto, tão logo as modernizações apareceram, o custo pela inflação decorrente foi alto demais. A emissão descontrolada de moeda diluiu o seu valor. A dependência de empréstimos externos tornou o modelo vulnerável a choques internacionais. A crise do petróleo elevou drasticamente o custo de energia e insumos. Enfim, os planos baseados em projeções de longo prazo revelaram-se excessivamente otimistas e distantes do pragmatismo de um crescimento responsável. 

A tecnocracia brasileira fracassou ao confiar demais na capacidade de técnicos preverem e controlarem variáveis econômicas incontroláveis, como a inflação decorrente da emissão de crédito descontrolado. O que parecia uma engenharia perfeita da economia resultou em inflação galopante, dívida externa insustentável e sucessivas medidas emergenciais que expuseram a fragilidade de um modelo centralizado e pouco adaptável. 

Os críticos à tecnocracia

Embora o movimento da Technocracy Incorporated tenha buscado se apresentar como alternativa à política tradicional, uma série de pensadores dedicou-se a criticar suas bases e consequências.  

O filósofo alemão Jürgen Habermas, em Na Esteira da Tecnocracia, advertiu que a confiança excessiva na racionalidade técnica tende a transformar a política em mera gestão de especialistas, esvaziando a participação cidadã e colocando em risco a democracia.  

Sua visão se alinha com o de Friedrich Hayek, em O Caminho da Servidão. Hayek foi categórico ao afirmar que a centralização da autoridade técnica poderia se converter em autoritarismo, alertando que um regime guiado por especialistas correria o risco de sacrificar liberdades individuais em nome da eficiência. 

Discussões contemporâneas sobre tecnocracia 

Em tempos recentes, o debate foi retomado em Por que não sou um tecnocrata, de E. Glen Weyl, que é PhD em Princeton e tem pós-doutorado em Harvard. Nele, Weyl avalia os limites de delegar poder político a técnicos altamente qualificados e levanta, entre outros pontos, o “problema do alinhamento do ditador inteligente”.

“Como podemos garantir, caso haja um ditador inteligente, que ele servirá aos interesses do público em geral?”, questiona. A dúvida pressupõe a aceitação do ditador ou que a ditadura seria desejável. “A maioria dos defensores de sociedades democráticas ou descentralizadas rejeitaria essa premissa; em vez disso, eles argumentariam que a ditadura deve ser inerentemente evitada e que a medida primária para saber se um ditador é amigável ou não é até que ponto ele perde a maior parte de seus poderes para permitir a inteligência descentralizada”, explica. 

Segundo o seu raciocínio, as IAs funcionariam do mesmo modo. Para que a tecnologia possa desempenhar um papel produtivo na sociedade, o objetivo não deve ser alinhá-los com os objetivos de seus criadores ou da comunidade interessada em uma chamada “inteligência artificial amigável ao público”.  

Em vez disso, ele defende a criação de “um conjunto de instituições sociais que garantam que a capacidade de qualquer oligarquia ou pequeno número de inteligências como uma IA ‘boa’ não possa ter um poder extremamente desproporcional”. Weyl acredita que as instituições que provavelmente conseguirão isso são “precisamente os mesmos tipos de instituições necessárias para restringir o capitalismo ou o poder do Estado”. 

Como a internet também oportuniza que anônimos contribuam com o debate, Scott Alexander, um médico psiquiatra residente da Baía de São Francisco e que escreve em um blog sobre filosofia, política e futurismo, enfrentou E. Glen Weyl.  

Alexander foi além. Ele critica a vacinação obrigatória, a dessegregação das escolas, as políticas sobre mudança climática e os lockdowns contra o coronavírus como fracassos ainda maiores e que não foram citados por Weyl como casos tecnocráticos. Para Alexander, somente “comunidades racionalistas e de altruísmo eficiente” teriam capacidade de tomar decisões para suas realidades locais.

Apenas por curiosidade, a cidade de Brasília foi citada como exemplo de fracasso tecnocrático para ambos os debatedores (mesmo eles não sendo brasileiros). Eles enxergam os vazios urbanos e os congestionamentos constantes como uma evidente impossibilidade dos planejadores tecnocráticos em controlar o comportamento humano. 

Vantagens da IA 

Voltando ao caso da Albânia, a novidade inaugura uma discussão: será que a inteligência artificial pode ser o motor capaz de finalmente realizar o sonho tecnocrático? Afinal, a promessa de algoritmos imparciais, capazes de processar dados sem preferências partidárias e de propor soluções objetivas, se encaixa bem no imaginário de engenheiros sociais.

De fato, as potencialidades parecem inegáveis, como agilidade e transparência. Algoritmos deixam registros rastreáveis, permitindo auditorias mais fáceis do que decisões humanas que são pouco documentadas. Tem também a automação de processos que pode reduzir o espaço para a corrupção ao retirar do processo licitatório a subjetividade de gestores humanos.

Captura de tela mostrando Diella, a ministra gerada por IA encarregada, na Albânia, de emitir documentos eletrônicos para cidadãos e empresas, além de conduzir todas as contratações públicas, em uma tentativa do primeiro-ministro, o socialista Edi Rama, de combater a corrupção. (Foto: EFE/ Governo da Albânia)

A eficiência, definitivamente, é um trunfo da tecnocracia, ainda mais usando a inteligência artificial. Sistemas digitais economizam milhões ao substituir processos burocráticos lentos, e ainda garantem decisões baseadas em evidências, com cenários simulados, previsões de impacto e ajustes em tempo real.

Agora, as desvantagens

Entretanto, há riscos e limitações. A ideia de que algoritmos são neutros é ilusória. Eles carregam os vieses de quem os programou e dos dados usados no treinamento. Se a base de dados for injusta, a decisão também será. Além do que, há sempre aquele botãozinho programável que só um ser humano consegue mexer.

Tem ainda o problema da responsabilização. Quem assume os erros de uma decisão automatizada que prejudica os cidadãos? Além disso, governos não são apenas máquinas de eficiência. Eles lidam com valores éticos que não cabem em métricas puramente quantitativas. Outro ponto ainda é questão da legitimidade. Cidadãos querem participar, escolher representantes, debater prioridades, e não apenas receber ordens de uma máquina, por mais eficiente que seja.

A literatura acadêmica está apenas começando a avaliar os impactos da IA como um modelo potencial de tecnocracia. Estudos recentes em cidades espanholas indicam que iniciativas de governo eletrônico, maior transparência e sistemas de reputação pública estão fortemente associadas a melhores indicadores de emprego e qualidade de vida.

No entanto, outras pesquisas ressaltam que a eficácia da IA depende de legislação robusta, supervisão humana constante e mecanismos claros de prestação de contas, evidenciando que tecnologia por si só não garante resultados justos ou eficientes.

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