No domingo, 1º de março, a transexual Suzy fez com que todo mundo se sentisse um pouquinho culpado. Apelando à empatia, solidariedade e peninha mesmo do espectador, ela contou que estava presa e que, renegada pela família por ser trans, não recebia visita havia 8 anos. O médico e estudioso do sistema prisional brasileiro Drauzio Varela chancelou a narrativa com um abraço em Suzy. Naquela noite, todos os que assistiram às cenas e que nutriam um pouco de compaixão se sentiram mal.
O objetivo do depoimento de Suzy e do abraço de Drauzio Varela era claro: revelar um sistema prisional injusto, que encarcera mulheres trans (homens biológicos) em condições degradantes, sujeitando-as a todo tipo de indignidade, é incapaz de ressocializar os internos, seja lá qual for seu crime e, de quebra, esfregar na cara do espectador sua culpa individual por fomentar esse mesmo sistema desumano que, nas palavras que ecoaram ao longo da semana, punem aquelas cujo único crime é ser trans, preta e pobre.
Em resumo, o objetivo era transformar Suzy e as demais presas trans em vítimas e a sociedade em algoz.
Não por acaso, no dia seguinte à exibição do abraço compungido de Drauzio Varela em Suzy, surgiram aqui e ali exaltações ao médico e astro de TV. O sempre muito querido doutor que nos ensina a lavar as mãos depois de irmos ao banheiro de repente virou expressão política antagônica do simplório presidente Jair Bolsonaro por seu espírito caridoso, em contraposição às declarações do tipo bandido-bom-é-bandido-morto que caracterizam não só o hoje chefe do Poder Executivo como também boa parcela de seu eleitorado. As várias postagens humorísticas que pediam Drauzio Varela como presidente não eram tão ingênuas assim.
Requintes de crueldade
O problema é que o médico e os produtores do programa se esqueceram que vivemos numa era em que é difícil criar uma realidade a partir de uma omissão sem ver essa realidade falsa exposta no dia seguinte. Ou na semana seguinte, como é o caso de Suzy. Porque, depois de ter início toda uma mobilização para ajudar a pobre detenta trans renegada pela família e oprimida pela sociedade machista, sexista e transfóbica, descobriu-se que a narrativa passiva-agressiva de Drauzio Varella escondia uma tragédia horrível.
Enquanto escolas faziam campanhas para que crianças (!) enviassem inocentes cartas para Suzy e enquanto pessoas doavam dinheiro para que a detenta não precisasse mais se prostituir na cadeia, juízes criminais, talvez incomodados por terem sido retratados como monstros sem coração que condenam ao inferno pessoas só por serem trans, pretas e pobres resolveram revelar a verdade sobre o crime que puseram Suzy, nascida Rafael Tadeu de Oliveira Santos, atrás das grades. E a verdade é de deixar até mesmo quem defende que se contenha a indignação pública indignado.
De acordo com o processo, Rafael foi condenado primeiramente a 25 anos de prisão pela morte de um menino de 9 anos de idade. Mas a pena foi aumentada porque – e a partir daqui os detalhes podem causar engulhos ao leitor mais sensível – Rafael enganou o menino pedindo que ele o ajudasse a carregar um monitor de computador, “já com a ideia de praticar os crimes”; porque uma tia atestou que Rafael praticava crimes sexuais contra crianças desde a adolescência; porque depois de abusar do menino ele o matou com requintes de crueldade, isto é, por asfixia; porque escondeu o corpo o quanto pôde (isto é, até o corpo começar a entrar em decomposição); e porque com seu gesto destruiu uma família.
Graças a duas circunstâncias atenuantes, isto é, o fato de ele ter confessado o crime e sua idade, a pena foi fixada em 26 anos e 8 meses. Soma-se a isso a pena de 13 anos por estupro de vulnerável, faz-se mais uns cálculos jurídicos ininteligíveis e se chega à pena final de 36 anos e 8 meses – dos quais Rafael/Suzy já cumpriu 8 anos sem nunca receber a visita de uma só pessoa e certamente não da tia que testemunhou contra ele.
Porque a sociedade é cruel, machista, sexista, transfóbica e só encarcera negros e pobres que não têm o que comer e por isso precisam recorrer ao crime – de acordo com a narrativa que tentam nos fazer engolir. Ou porque ele não é exatamente uma pessoa agradável, de acordo com os autos do processo.
Compaixão
A ideologia de gênero (algo que o próprio Drauzio Varella negou existir em artigo recente) não quer apenas que você acredite que o sexo é uma construção social. Ela quer que você veja os transgêneros de hoje como mártires visionários incompreendidos pela sociedade retrógrada. Eles não devem ser apenas protegidos por sua condição humana nem tratados por sua disforia de gênero, e sim exaltados como símbolos de uma utopia para a qual o homem deve caminhar a passos largos. Daí o abraço todo carregado de sentido político de Drauzio Varella em Suzy/Rafael.
A fim de criar essa nova categoria de pessoas superiores (e elas são superiores porque não se sujeitam ao sexo biológico), a ideologia de gênero precisa que você se sinta mal, culpado mesmo, um simplório ignorante que teima em usar pronomes masculinos e femininos e em total descompasso com o que os ativistas trans julgam ser o ápice do progresso.
Compaixão é bom e eu gosto. Você gosta. Todo mundo gosta. E até Rafael/Suzy, em outro contexto, isto é, num contexto de busca pelo perdão (divino ou terreno) e pela redenção é digno de compaixão. Mas será que posar de vítima da “maldade” imaterial dessa invencionice chamada transfobia é o melhor jeito de buscar a redenção pelo crime de ter estuprado e matado uma criança? Será que omitir o crime abjeto de Rafael/Suzy é a forma mais honesta de propor que a sociedade encare o antigo problema dos transexuais nas cadeias sob outro ângulo qualquer?
E, meu Deus, será que incentivar crianças (!) a mandarem cartas de apoio a um pedófilo não é extrapolar um pouquinho os limites do moralmente aceitável nesse caso todo (em que se pese a boa fé de quem desconhecia o passado violento de Suzy, claro)?
Muito mais humanista (já que o termo está tão em voga) seria expressar a mesma compaixão, a mesma solidariedade, o mesmo abraço compungido e o mesmo amor epistolar pela família da criança que morreu nas mãos de Suzy/Rafael, pelo pai e mãe que jamais verão o filho crescer e que provavelmente fracassam em dormir à noite, se perguntando o que poderiam ter feito, e não fizeram, para proteger a criança do predador.
E que foram obrigados a ver o perpetrador de um ato bárbaro elevado à condição de ícone da causa trans, vítima da “onda conservadora”, do machismo, dessa mentalidade “tacanha” do homem comum que só quer viver em paz, na companhia de seus entes queridos, de preferência protegidos de pedófilos assassinos.
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