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O cantor Jason Aldean em uma cena do polêmico clipe da música "Try That In a Small Town".
O cantor Jason Aldean em uma cena do polêmico clipe da música “Try That In a Small Town”.| Foto: Reprodução / YouTube

Foi o maior ataque a tiros da história dos Estados Unidos. No dia 1º de outubro de 2017, um homem de 64 anos chamado Stephen Paddock abriu fogo contra uma multidão que acompanhava o show do cantor Jason Aldean durante o festival de música country Route 91 Harvest, em Las Vegas. Da janela de seu quarto de hotel, próximo ao local do evento, Paddock matou 59 pessoas, além de ferir outras 527 – e cometeu suicídio antes de ser encontrado pela polícia.

O massacre teve um impacto profundo no cenário country. Não apenas no tocante às questões de organização e segurança. Associado aos valores de regiões rurais e conservadoras, onde grande parte da população é contrária ao controle rigoroso de armas, o gênero musical virou alvo fácil da patrulha progressista. E foi dado como morto pelos intelectuais “esclarecidos” do país.

Agora, seis anos depois da tragédia em Las Vegas, o estilo passa por um momento de redenção – e, novamente, de muita controvérsia. Pela primeira vez, artistas “sertanejos” ocuparam, simultaneamente, nas últimas semanas, os três primeiros lugares da parada de sucessos Hot 100 da Billboard (o principal ranking dos EUA, que dita tendências para o mundo todo).

A esquerda, é claro, já tratou de classificar o fenômeno como um reflexo do racismo, do machismo e da ignorância política sempre atribuídas às comunidades do interior dos Estados Unidos. Mas o nome de um dos protagonistas desse novo levante musical, justamente o que alcançou o posto mais alto da lista, chama a atenção: Jason Aldean. Sim, o mesmo cantor presente no palco durante o ataque de 2017.

É dele a canção “Try That In a Small Town” (“Tente Isso Numa Cidade Pequena”), um quase-rock sombrio que desafia forasteiros metidos a espertos a roubar carros de senhoras idosas, cuspir em policiais, apontar armas para comerciantes ou pisar na bandeira americana. “Por estas bandas, a gente cuida dos nossos / Se você está procurando briga / Tente isso numa cidade pequena / Cheia de bons e velhos garotos, criados do jeito certo”, diz a letra.

Apesar dos versos provocativos, escritos por quatro compositores conhecidos no meio country, a faixa passou batida pelo público e a imprensa até ganhar um videoclipe altamente polêmico – composto por imagens de vândalos confrontando a polícia e do próprio Aldean se apresentando em frente ao Tribunal do Condado de Maury, em Columbia, no estado do Tennessee.

Detalhe: a edição incluía cenas de um protesto com quebra-quebra promovido pelo movimento Black Lives Matters (“Vidas Negras Importam”), voltado supostamente para a defesa dos direitos das pessoas negras — mas cujos líderes já foram denunciados pelo mau uso dos fundos arrecadados.

E, para piorar, o local onde o artista dubla a música com sua banda ficou marcado na história dos EUA por ser o cenário de um linchamento de um homem negro ocorrido no ano de 1927 e de um dos maiores confrontos raciais do país, em 1946.

Pronto, estava feita a cama para mais uma rodada interminável de discussões sobre os limites da expressão artística.

Censura impulsionou a canção nas paradas de sucesso

Bastou os ativistas “descobrirem” o vídeo de “Try That In a Small Town” e o canal por assinatura Country Music Television (a MTV sertaneja americana) retirou o material do ar. E como esse tipo de censura sempre desperta a curiosidade do público, a busca pelo clipe e pela faixa explodiu na internet. O boicote do CMT também colocou mais gasolina no fogo da guerra cultural, estimulando ataques e defesas de ambos os lados do fronte ideológico.

Para políticos como Justin Jones, deputado estadual democrata do Tennesse, a música “normaliza a violência racista e o nacionalismo branco, glorificando um Sul que estamos tentando superar”. Já a militante desarmamentista Shannon Watts, da entidade Moms Demand Action For Gun Sense In America (“Mães Exigem Ação Pelo Controle de Armas na América”, financiada pelo bilionário Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York) associou a canção ao massacre de Las Vegas em 2017.

Até a articulista conservadora Kathryn Jean Lopez, da revista National Review, deu umas lambadas no cantor. “Espero que o republicano Aldean, em músicas futuras, possa incentivar as pessoas a fazer o bem, em vez de adicionar mais raiva e violência ao nosso tempo”, escreveu, em um texto intitulado “Jason Aldean não está ajudando”.

Do lado da defesa, dois nomes de peso – e que estão de olho nas próximas eleições – deram declarações sobre a controvérsia: Donald Trump e Ron DeSantis. O ex-presidente incentivou seus seguidores a “apoiar Jason o tempo todo”. “Ele é um cara fantástico, que acabou de lançar uma ótima música”, afirmou.

O governador da Flórida, por sua vez, preferiu mirar os meios de comunicação. “Quando a mídia ataca você, é sinal de que você está fazendo certo. Aldean não tem nada pelo que se desculpar”, disse.

Mais isento, o popularíssimo apresentador de podcasts Joe Rogan, conhecido por expressar ideias iconoclastas e convidar entrevistados tanto da direita quando da esquerda, comparou o forte teor de “Try That In a Small Town” com as letras misóginas e violentas dos artistas de hip-hop. “Não estou dizendo que essa é a melhor música do mundo. Mas o nível de indignação das pessoas que estão irritadas com ela é tão estranho se levarmos em conta que há centenas de músicas de rap infinitamente piores”, afirmou.

Além de chamar a atenção para a indignação seletiva dos esquerdistas, Rogan não viu intenções racistas por trás dos seis segundos em que manifestantes do Black Lives Matter aparecem no videoclipe (o trecho, inclusive, foi apagado pela equipe de Aldean e não consta mais da versão oficial disponível no YouTube).

Para ele, o BLM é visto como agressivo pelo cidadão comum por causa de “um monte de progressistas brancos que decidiram participar do movimento e saíram quebrando as coisas”.

Por fim, há a posição do próprio Jason Aldean, que definiu as críticas como “sem mérito e perigosas”. “Parece que, em algum momento, o senso de comunidade e respeito se perdeu. Essa música mostra que estamos todos prontos para retomar isso”, disse, sobre a mensagem embutida na composição.

Polêmicas marcam as carreiras de outras estrelas do country atual 

Morgan Wallen e Luke Combs, os outros dois astros country que dividiram o pódio da Billboard com Aldean, também já foram acusados de racismo – mas nada relacionado às suas letras.

Intérprete do hit “Last Night”, Wallen teve músicas retiradas das rádios e foi impedido de concorrer em premiações após o vazamento de um vídeo em que aparece bêbado gritando a palavra nigger (uma maneira altamente ofensiva de se referir aos negros nos EUA). Os fãs, no entanto, nem deram bola. E seguem o consagrando como o maior expoente da corrente denominada bro-country, centrada em sonoridades mais atuais e temáticas ligadas a festas, mulheres e carros (ou melhor, caminhonetes).

Combs, estourado com “Fast Car” (cover de um clássico oitentista da cantora Tracy Chapman), entrou na mira dos progressistas em 2015, ao mostrar em um clipe a bandeira dos Estados Confederados – considerada um “símbolo divisivo” por representar o lado escravocrata da Guerra Civil.

Agora, ele é acusado de apropriação cultural por lucrar em cima da criação de uma compositora negra e lésbica (embora Chapman tenha autorizado a regravação, responsável por apresentá-la ao público jovem e abastecer sua conta bancária com o dinheiro arrecadado via direitos autorais).

E quem vem chegando com força total nesse cenário controverso é um artista amador da Virginia chamado Oliver Anthony. Esse operário, residente na cidade de Farmville, já havia alcançado o primeiro lugar em execuções nas plataformas de streaming, e na terça-feira (22) também chegou ao topo do Hot 100 da Billboard.

Tudo isso graças a “Rich Men North of Richmond” (“Homens Ricos ao Norte de Richmond”), uma canção acústica e emotiva gravada despretensiosamente, de forma caseira – mas que, a exemplo de “Try That In a Small Town”, tornou-se munição para ambos os lados da polarização ideológica.

A letra questiona a insensibilidade dos políticos (a capital do país fica ao “norte de Richmond”), a alta cobrança de impostos (“Seu dólar não vale m* nenhuma, e é taxado até o fim”) e “os obesos mamando na assistência social”, entre outros aspectos da realidade americana.

Apesar de se denominar centrista (e dizer frases como “A internet nos dividiu”), Anthony rapidamente virou o queridinho da direita. Personalidades republicanas como a ex-candidata ao governo do Arizona, Kari Lake, e as deputadas Marjorie Taylor Greene e Lauren Boebert, além de vários colunistas conservadores, já correram para declarar publicamente seu apoio à música – que, para os detratores, aponta o dedo para o inimigo errado, no caso do comentário aos beneficiários de programas sociais. “Você criou o hino de nosso tempo. Parabéns!”, tuitou Boebert.

Sucesso orgânico ou fruto do “ativismo consumidor”? 

Esteticamente falando, a nova onda country é fruto de um processo de atualização e urbanização dos músicos do gênero – em termos de visual, das temáticas abordadas e da sonoridade (faixas como “Last Night”, de Morgan Wallen, trazem timbres e ambiências próximas do pop e do hip-hop). Mas há quem atribua esse boom de popularidade ao chamado “ativismo consumidor”, uma espécie de decisão de compra politizada. Sendo que o consumo, aqui, é o de cultura popular.

O filme ‘O Som da Liberdade’ (sobre o tráfico de crianças), a série ‘Os Escolhidos’ (que narra a vida de Jesus) e, agora, as canções de Jason Aldean e Oliver Anthony são casos de produtos pop recentes apoiados pela comunidade de direita como uma forma de lealdade aos artistas de mesmo viés ideológico. Um expediente, obviamente, também adotado pela esquerda – porém há muito mais tempo.

Um bom exemplo de como os conservadores adotaram com empolgação essa forma de ativismo é a chegada de Donald Trump às paradas de sucesso. Isso mesmo. No último mês de março, ele vendeu surpreendentes 33 mil downloads da faixa “Justice for All”. Trata-se de uma versão do hino nacional americano cantada por um grupo de manifestantes presos durante a invasão ao Capitólio, com a voz sobreposta do ex-presidente recitando o “Juramento de Fidelidade aos Estados Unidos” (verso patriótico de reverência à bandeira do país).

Em apenas uma semana, o lançamento chegou ao topo do ranking de vendas digitais da Billboard, voltado aos arquivos comprados e baixados diretamente para computadores e dispositivos móveis. E, segundo o político, todo o lucro obtido com as vendas será destinado aos réus.

“Estou apoiando financeiramente pessoas que são incríveis e estão muito presentes na minha mente. É uma vergonha o que fizeram com elas”, disse Trump – que, pelo menos no mundo da música, voltou a ser o número 1.

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