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A ‘Utopia’ de Thomas More sugere que, embora seja válida a ênfase da produtividade material na defesa de propriedade, a mesma é inadequada. Ao investigar as razões clássicas a favor e contra a propriedade privada, More vai mais fundo, abordando as necessidades objetivas da alma humana. 

O discurso político contemporâneo frequentemente apresenta uma divisão entre os que favorecem a liberdade econômica e os que favorecem a regulamentação governamental. No entanto, argumentos proeminentes de ambos os lados tendem a supor que os sistemas econômicos visam principalmente à maximização do bem-estar material e à satisfação das preferências pessoais. 

Ao investigar as razões clássicas a favor e contra a propriedade privada, Thomas More vai mais fundo, abordando as necessidades objetivas da alma humana. Desta forma, ele contribui para uma estrutura do pensar sobre questões econômicas em termos de um bem comum que promove o pleno desenvolvimento e florescimento dos seres humanos. 

O caso socrático-cristão de Raphael Hythloday contra a propriedade 

A ‘Utopia’ de Thomas More apresenta um desafio radical à propriedade privada, acompanhado por uma defesa forte, embora sutil, da instituição. Ambos estão enraizados nas tradições socrática e cristã, das quais More era um exemplo teórico e prático. 

A crítica da propriedade em ‘Utopia’ é feita por Raphael Hythloday, um filósofo e viajante fictício cujo nome — “curador-de-Deus, mascate-da-tolice” — é um dos muitos sinais da natureza satírica da obra-prima de More. O próprio More nos diz que Raphael descreveu muitas terras cujos governos “poderiam servir como padrões para corrigir os erros de nossas próprias cidades, nações, povos e reinos”. Infelizmente, essas sociedades modelo “terão que ser apresentadas em outro lugar”, devido à insistência de Raphael em discutir a respeito de uma ilha chamada ‘Utopia’ (“Lugar algum”).

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Enquanto Raphael declara o regime de ‘Utopia’ como o único digno do nome de "comunidade", More acha muitos de seus costumes e leis "absurdos". Entre suas tolices está uma política que Raphael considera a chave para o sucesso da Utopia, mas que More considera como uma aparente fonte de pobreza, violência e ilegalidade: a abolição da propriedade privada. 

Apesar das inúmeras indicações de que Raphael está carente de autoconhecimento e prudência, as verdades que More espera ensinar não são inteiramente às custas de Raphael. Citando a sabedoria de Platão e de Cristo como precedentes, Raphael apresenta uma crítica teórica e prática das primeiras sociedades europeias modernas enraizada em genuínos insights éticos e políticos. 

O cerne do argumento de Raphael é simples: em uma sociedade onde se deve adquirir uma propriedade para sobreviver, o dinheiro se torna a medida de todas as coisas. Juntamente com o orgulho, “o príncipe e pai de todas as pragas”, essa mentalidade centrada no dinheiro leva os poucos que podem a acumular grandes quantidades de riqueza, ignorando ou explorando os muitos que ficam na miséria. Para ilustrar seu argumento, Raphael relata uma conversa em um jantar durante a qual um advogado inglês cantou sobre a “justiça rigorosa” com a qual seu país estava respondendo a uma epidemia de roubos – segundo alguns relatos envolvendo 72 mil enforcamentos sob Henrique VIII. Raphael argumenta enfaticamente que a política inglesa não é justa nem benéfica, uma vez que muitos são levados ao roubo pela pobreza como resultado de ferimentos de guerra, de hábitos ociosos ensinados por mestres falidos e do cercamento de fazendas por nobres e clérigos em busca de lucros. Como consequência, seres humanos destinados pela natureza a compartilhar os benefícios de uma sociedade saudável são mortos para proteger a riqueza ilícita e o status de homens que não são melhores do que aqueles. 

No centro da queixa de Raphael não estão os sofrimentos materiais dos pobres – por mais cruéis que sejam –, mas as degradações de caráter que afligem tanto os ricos quanto os pobres numa sociedade em que o dinheiro desbanca os bens naturais como o objeto do desejo humano. Segundo seu ponto de vista, tanto os enforcados quanto os enforcadores são ladrões, cada um do seu jeito. Além disso, sua luta mútua arranca tanto dos ricos quanto dos pobres uma consciência suficiente – ou um desejo – das virtudes intelectuais e morais que possibilitam uma vida plena e plenamente humana. Em Utopia, onde todos os cidadãos se engajam na produção e no consumo igualitários de bens materiais, o luxo é desprezado, enquanto o conforto abundante. Os fardos do trabalho são moderados, permitindo que os cidadãos sejam livres para desfrutar daquilo que eles possuem coletivamente e empregá-los para o estudo e a realização da verdadeira felicidade. 

A visão de Rafael é genuinamente, embora imperfeitamente, fundamentada na compreensão clássica da riqueza. Ele entende a riqueza como benéfica apenas quando subordinada à obtenção de fins definidos pela natureza e pela graça. Qualquer um que busque dinheiro por si mesmo, ou pela satisfação de desejos subjetivos mal regulados, não tem o conhecimento ou a disciplina para buscar tais fins, e é provável que obtenha e use mal a riqueza. Nesse sentido, “o desejo do dinheiro é a raiz de todos os males” e “todas as coisas pertencem aos sábios”. Essas reflexões, combinadas com a pobreza voluntária de Sócrates, Cristo e muitos de seus seguidores, dão peso ao relato de Raphael. Ele expõe de forma certeira os danos causados pelo abuso da riqueza, a dificuldade de evitar esse abuso em uma sociedade fundada na propriedade e a necessidade de combater tais abusos com uma educação nas virtudes. 

A defesa da propriedade socrático-cristã de More 

À primeira vista, a réplica de More a Raphael parece estar enraizada em preocupações totalmente materiais. Ele prevê que, “onde tudo está em comum”, a sociedade não terá “abundância de bens”, já que o trabalho que produz tais bens é geralmente “motivado pelo lucro”. A penúria resultante provocará, por sua vez, “derramamento contínuo de sangue”, já que os homens procuram satisfazer suas necessidades através da violência. A lei não impedirá essa “turbulência”, já que os seres humanos não têm respeito pela autoridade quando os cidadãos “estão todos no mesmo nível [econômico]”. 

O materialismo aparente da posição de More permite que Raphael pose como mocinho e descreva a cura de Utopia para a ganância humana. No entanto, More, que argumenta que estadistas com aspirações filosóficas devem trabalhar “indiretamente” dentro do drama indecente da política para tornar as coisas “menos piores”, adota uma abordagem igualmente indireta em sua crítica mais significativa à Utopia. O maior problema com o desafio de Raphael à instituição da propriedade não é sua crítica da avareza e a insistência de que a sociedade seja estruturada de modo a educar os cidadãos nas virtudes, mas sim a sua negligência das condições necessárias para tal educação. 

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A compreensão limitada que Raphael tem da tradição clássica fica evidente, primeiramente, em sua recomendação de que a Inglaterra imite os Polylerites (“Pessoas-de-Muita-Tolice”), cuja política consiste em condenar os ladrões a uma vida de “trabalho duro”, imposta através de mutilação física e de ameaça de morte para prisioneiros desobedientes ou para qualquer pessoa que os ajude.

Raphael considera esse arranjo “humano e vantajoso”, uma vez que busca “eliminar o vício e preservar a pessoa”. Ele está correto em notar que a tradição socrática considera a punição como primariamente medicinal, objetivando (se possível) a reabilitação do criminoso. O método pelo qual isso é alcançado – as autoridades “lidam [com o ladrão] de tal maneira que ele tem de ser bom” – expõe sua ignorância de uma característica fundamental da virtude clássica. 

Aristóteles define as virtudes como hábitos que nos tornam capazes de agir voluntariamente de acordo com a razão correta. Nenhum ato involuntário pode ser virtuoso. Embora seja o objetivo da autoridade legal promover a virtude nos cidadãos, a coerção é incapaz de produzir diretamente a virtude. Como Tomás de Aquino explica, a lei usa punições para guiar os homens indiretamente em direção à virtude por meio da habituação. Como a maioria dos homens “não são perfeitos em virtude”, já que o caminho para a virtude dura a vida toda, e como os contornos precisos da virtude variam de pessoa para pessoa, é impraticável que a lei proíba todos os atos cruéis ou obrigue todos os atos virtuosos. Em vez disso, a lei deve punir as piores ações ou omissões e confiar em admoestações – suas ou de outras autoridades sociais – para guiar os cidadãos em direção a uma virtude mais completa. 

O regime descrito na República de Platão, embora apresentado como uma “cidade no discurso” e não como um modelo prático, aborda o caráter voluntário da virtude com um diálogo prolongado sobre a educação dos “guardiões” da cidade. No coração dessa educação está uma poética que combina logoi ou descrições racionais do bem com imagens, harmonias e ritmos que ajudam a alma a sentir a bondade daquilo que a razão declara bom. Enquanto essa discussão nos ajuda a compreender a natureza do mais alto potencial do homem, que consiste na integração da razão e da paixão em um caráter produtivo de virtude e felicidade, Sócrates também nos alerta para que não esperemos que tal educação cure todos os possíveis guardiões (muito menos todos os homens) da tentação de buscar bens falsos. Enquanto a educação complementa a lei e vice-versa, a liberdade inerradicável da alma torna qualquer simples cura dos males da humanidade, na melhor das hipóteses, fantástica – e, na pior, uma receita para a tirania. 

A armadilha da tirania 

Como Gerard Wegemer habilmente argumentou, a tirania é precisamente a armadilha na qual Raphael cai. Sua Utopia é uma sociedade na qual os cidadãos são bons porque devem ser bons, tendo sido privados dos meios – propriedade e privacidade – de fazer escolhas insensatas. Embora Raphael descreva a maioria dos cidadãos de Utopia como dispostos a cumprir suas leis, ele também faz alusão a um sistema de vigilância acompanhado por punições arbitrárias e draconianas rapidamente impostas aos infratores. E, enquanto ele insiste que a maioria dos habitantes usa livremente suas horas de lazer para assistir a palestras filosóficas, ler livros sábios e jogar um ou outro jogo educacional, ele omite qualquer referência a uma educação infantil do tipo descrito por Sócrates, que habituasse os cidadãos a desejar a vida austera, embora saudável, que os habitantes de Utopia supostamente adotam. 

Para Raphael, a liberdade só vem no final. Para a tradição socrático-cristã, é fundamental para a nossa humanidade. Alguns estudiosos observaram paralelos entre as práticas de Utopia e as práticas da vida monástica que More considerou adotar quando era jovem. Para More, entretanto, tal disciplina só era proveitosa se livremente empreendida em resposta a um chamado divino. Como o próprio More demonstrou, é necessário e possível que a maioria dos homens cultive as virtudes – incluindo a generosidade e o desapego dos bens materiais – em um mundo estruturado pela propriedade, pela política e pelo status social. Embora esses elementos constituam fontes perpétuas de tentação, as virtudes exigem que aprendamos a usá-los bem. Embora a sociedade política deva nos ajudar a desenvolver essas virtudes, a liderança sábia dos estadistas fará isso ao nos guiar gentilmente no uso livre de nossos talentos e posses pessoais. 

A crítica pretensiosa da propriedade de Raphael nos ajuda a ver a propriedade como uma instância da liberdade no coração de nossa natureza e de qualquer plano realista para melhorar nossas vidas. A propriedade desempenha um papel não apenas na produção e distribuição de bens materiais, mas também na obtenção das muitas virtudes que governam sua aquisição e seu uso. Se a propriedade pode ser um obstáculo à virtude, a virtude é inconcebível sem propriedade.

Trazendo isso à nossa atenção, a Utopia de Thomas More sugere que a ênfase da produtividade material na defesa de propriedade, embora válida, é inadequada. Considerar o papel da propriedade no desenvolvimento das virtudes nos mostra os perigos de um desejo desregulado pelos bens materiais. No entanto, também demonstra que a regulamentação excessiva da propriedade representa um perigo igualmente grave para a felicidade humana. 

L. Joseph Herbert é professor de Ciências Políticas na St. Ambrose University. 

Tradução de Janaína Imthurm

©2019 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.
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