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Leia trechos de “Os Sertões”, 128 anos depois do fim da Guerra de Canudos

Guerra de Canudos, que terminou há 128 anos, foi retratada por Euclides da Cunha em "Os Sertões".
Guerra de Canudos, que terminou há 128 anos, foi retratada por Euclides da Cunha em "Os Sertões". (Foto: Imagem criada usando o Google AI/Gazeta do Povo)

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A guerra desenrolada entre 1896 e 1897 em Canudos (BA), 400 quilômetros ao norte de Salvador (BA), foi decisiva para a trajetória do jornalista fluminense Euclides da Cunha. Também marcou os aproximadamente 12 mil militares que se deslocaram até o interior da Bahia, dos quais aproximadamente 5 mil não retornaram com vida. Para as cerca de 25 mil pessoas que morreram em Canudos, representou o fim de uma das mais importantes comunidades utópicas de base messiânica que surgiram no Brasil nas décadas após o fim da monarquia.

Correspondente do jornal A Província de S. Paulo, futuro jornal O Estado de S.Paulo, entre agosto e outubro de 1897 Euclides acompanhou de perto os acontecimentos do conflito, que demandou quatro diferentes missões militares até ser encerrado. Dali saiu Os Sertões, uma obra influente, que apresentou aos leitores das grandes cidades a geografia, o clima, a rotina – e os dramas – dos sertanejos.

A efeméride que marca os 128 anos do fim oficial da Guerra de Canudos, em 5 de outubro de 1897, representa uma oportunidade valiosa para relembrar o relato de Euclides, que se dedica a descrever, com assombro e o maior rigor científico possível na época, a região, seus moradores, suas crenças e os incidentes que, por fim, levaram ao fim da comunidade instalada pelo líder Antônio Conselheiro.

Confira abaixo trechos selecionados de Os Sertões

A Terra

“Varada a estreita faixa de cerrados, que perlongam aquele último rio, está-se em pleno agreste, no dizer expressivo dos matutos: arbúsculos quase sem pega sobre a terra escassa, enredados de esgalhos de onde irrompem, solitários, cereus rígidos e salientes, dando ao conjunto a aparência de uma margem de desertos. E o fácies daquele sertão inóspito vai-se esboçando, lenta e impressionadoramente...

Galga-se uma ondulação qualquer – e ele se desvenda ou se deixa adivinhar, ao longe, no quadro tristonho de um horizonte monótono em que se esbate, uniforme, sem um traço diversamente colorido, o pardo requeimado das caatingas.”

“Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar, para abranger de um lance o conjunto da terra. – E nada mais divisava recordando-lhe os cenários contemplados. Tinha na frente a antítese do que vira. Ali estavam os mesmos acidentes e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob o indumento áspero dos pedregais e caatingas estonadas... Mas a reunião de tantos traços incorretos e duros – arregoados divagantes de algares, sulcos de despenhadeiros, socavas de bocainas, criava-lhe perspectiva inteiramente nova. E quase compreendia que os matutos crendeiros, de imaginativa ingênua, acreditassem que ‘ali era o céu...’”

O Homem

“De sorte que ao fim de algum tempo a população constituída dos mais díspares elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto, que lá chegava de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, se fez a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas, pela só justaposição mecânica de levas sucessivas, à maneira de um polipeiro humano. É natural que absorvesse, intactas, todas as tendências do homem extraordinário do qual a aparência proteica – de santo exilado na terra, de fetiche de carne e osso, e de bonzo claudicante – estava adrede talhada para reviver os estigmas degenerativos de três raças.”

“Aceitando, às cegas, tudo quanto lhe ensinara aquele; imersa de todo no sonho religioso; vivendo sob a preocupação doentia da outra vida, resumia o mundo na linha de serranias que a cingiam. Não cogitava de instituições garantidoras de um destino na terra. Eram-lhe inúteis. Canudos era o cosmos.”

[Antônio Conselheiro] Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente impressionaram grandemente os recém-vindos.”

“Reanima-os, contudo, recepção quase cordial. De encontro ao que previam, o Conselheiro parece aprazer-se da visita. Quebra a habitual reserva e o obstinado mutismo. Informa-os do andamento dos trabalhos; convida-os a visitá-los; e presta-se de boa feição a servir-lhes de guia pelos repartimentos do edifício. E lá seguem todos, vagarosos, guiados pelo velho solitário que orçava nesse tempo dos sessenta anos, e cujo corpo franzino, arcado sobre o bordão, avançava em andar remorado, sacudido de instante a instante por súbitos acessos de tosse...”

A Luta

“Foi um mal. Sob a sugestão de um aparato bélico, de parada, os habitantes preestabeleceram o triunfo; invadida pelo contágio desta crença espontânea, a tropa, por sua vez, compartiu-lhes as esperanças. Firmara-se, de antemão, a derrota dos fanáticos.”

“Ora, nos sucessos guerreiros entra, como elemento paradoxal embora, a preocupação da derrota. Está nela o melhor estímulo dos que vencem. A história militar é toda feita de contrastes singulares. Além disto a guerra é uma coisa monstruosa e ilógica em tudo. Na sua maneira atual é uma organização técnica superior. Mas inquinam-na todos os estigmas do banditismo original.”

“As armas dos jagunços eram ridículas. Como despojo os soldados encontraram uma espingarda pica-pau, leve e de cano finíssimo, sobre a barranca. Estava carregada. O Coronel César, mesmo a cavalo, disparou-a para o ar. Um tiro insignificante, de matar passarinho.

– ‘Esta gente está desarmada...’ disse tranquilamente.

E reatou-se a marcha, mais rápida agora, a passos estugados, ficando em Pitombas os médicos e feridos, sob a proteção do contingente policial e resto da cavalaria. O grosso dos combatentes perdeu-se logo adiante, em avançada célere. Quebrara-se, de vez, o encanto do inimigo. Os atiradores e flanqueadores, na vanguarda, batiam o caminho e embrenhavam-se nas caatingas, rastreando os espias que acaso por ali houvesse, desinçando-as das tocaias prováveis, ou procurando alcançar os fugitivos que endireitavam para Canudos.”

“O recontro fora um choque galvânico. A tropa, a marche-marche, prosseguia, agora, sob a atração irreprimível da luta nessa ebriez mental perigosíssima, que estonteia o soldado duplamente fortalecido pela certeza da própria força e a licença absoluta para as brutalidades máximas.”

“Porque num exército que persegue há o mesmo automatismo impulsivo dos exércitos que fogem. O pânico e a bravura doida, o extremo pavor e audácia extrema, confundem-se no mesmo aspecto. O mesmo estonteamento e o mesmo tropear precipitado entre os maiores obstáculos, e a mesma vertigem, e a mesma nevrose torturante abalando as fileiras, e a mesma ansiedade dolorosa, estimulam e alucinam com idêntico vigor o homem que foge à morte e o homem que quer matar. É que um exército é, antes de tudo, uma multidão”. 

“Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidas as armas e munições de guerra, os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas...”

“A caatinga, mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando numa florescência extravagantemente colorida no vermelho forte das divisas, no azul desmaiado dos dólmãs e nos brilhos vivos das chapas dos talins e estribos oscilantes... Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel: a uma banda avultada, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do Coronel Tamarindo.

Era assombroso... Como um manequim terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado, braços e pernas pendidos, oscilando à feição do vento no galho flexível e vergado, aparecia nos ermos feito uma visão demoníaca. Ali permaneceu longo tempo...” 

“Quando, três meses mais tarde, novos expedicionários seguiam para Canudos, depararam ainda o mesmo cenário: renques de caveiras branqueando nas orlas do caminho, rodeadas de velhos trapos, esgarçados nos ramos dos arbustos e, de uma banda – mudo protagonista de um drama formidável –, o espectro do velho comandante...”

Fonte: Os Sertões.

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