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O que une filósofos de Oxford a multimilionários do Vale do Silício? Três correntes: o altruísmo eficaz, o longoprazismo duro e o “pró-natalismo” trans-humanista
O que une filósofos de Oxford a multimilionários do Vale do Silício? Três correntes: o altruísmo eficaz, o longoprazismo duro e o “pró-natalismo” trans-humanista| Foto: Pixabay

O que une filósofos de Oxford a multimilionários do Vale do Silício? As ideias. Em concreto, três correntes que oferecem argumentos para apresentar como prioridades morais os investimentos em inteligência artificial, startups de reprodução assistida ou em viagens espaciais. Não são as únicas teorias que influenciam o Vale, mas algumas das que estão fazendo mais barulho agora: o altruísmo eficaz, o longoprazismo duro e o “pró-natalismo” de cunho trans-humanista.

O altruísmo eficaz (AE) começou a ganhar corpo no fim da década de 2000. Mas não chamou tanta atenção da mídia como há uns meses atrás, quando se descobriu que importantes magnatas do setor tecnológico estão fascinados com aquela que hoje é a doutrina dominante dentro do AE: o longoprazismo.

O AE surge em resposta a uma inquietude muito viva no mundo da filantropia: como ajudar da melhor maneira possível? Inspirados pela obra do filósofo utilitarista Peter Singer, seus ideólogos chegaram ao consenso de que isso significa ao menos três coisas: ajudar de forma que beneficie o maior número de pessoas; com o investimento mais rentável dos recursos; e segundo uma ordem de prioridades que venha marcada não pelos sentimentos, senão "pela evidência e pela razão", como gostam de dizer.

Essa filosofia está ajudando algumas ONGs a gerirem melhor seus recursos. Mas o AE não se limita a aplicar a análise de custo e benefício à caridade. O movimento atua dentro de um marco moral de corte utilitarista, cujas premissas influenciam em alguns debates sociais. Ademais, seguindo esse caminho, acaba colocando no mesmo nível bens de essência distinta. Veremos isso mais adiante.

Pensadores e iniciativas

Atualmente, o rosto mais conhecido do AE é o escocês William MacAskill, de 35 anos, professor de filosofia moral na Universidade de Oxford. Junto a outros colegas como Toby Ord, Hilary Greaves, Nick Beckstead, ou a comunidade racionalista da Área da Baía de São Francisco, foram dando forma a um movimento intelectual que soube pôr os pés no chão com iniciativas concretas.

Em 2009, MacAskill ajudou Ord a pôr em andamento Giving What We Can [Dando o que podemos], uma organização cujos membros se comprometem a doar ao menos 10% de suas rendas a ações benéficas. Em 2011, ambos criaram em Oxford o Centro para o Altruísmo Eficaz, que dá coesão intelectual a iniciativas díspares. Nesse ano, MacAskill também co-fundou 80.000 Horas, que estimula a empreender carreiras profissionais com grande impacto social.

Outras organizações vinculadas ao movimento são: The Life You Can Save [A vida que você pode salvar], fundada pelo próprio Singer; GiveWell [DoeBem] e Open Philanthropy [Filantropia Aberta], co-fundadas por Holden Karnofsky, outra referência no movimento; Animal Charity Evaluators [Avaliadores da caridade animal], que aplica os princípios do AE à defesa do bem-estar animal etc.

Seja bom: pense no futuro

O ponto de inflexão do AE chegou quando MacAskill e companhia, inspirados pelo filósofo trans-humanista Nick Bostrom, puseram no futuro o centro de sua postura ética. A lógica é a seguinte: se devemos fazer o maior bem possível, e se a maioria das vidas está por vir, dado que estamos muito no começo da história — pensam —, então havemos de priorizar as causas a milhares, e também milhões de anos à frente.

Daí as novas prioridades do movimento: junto às "curtoprazistas", como a provisão de insumos médicos em países pobres ou a luta contra a pecuária intensiva, nos últimos anos ganharam peso as "longoprazistas", centradas em prevenir riscos existenciais para a humanidade: uma superinteligência artificial que se volte contra o ser humano, guerras nucleares, armas bioquímicas, pandemias motivadas por patógenos criados em laboratórios… E ainda que também lhes preocupe a mudança climática, não a consideram um risco tão ameaçador como esses.

A produção intelectual dos líderes do movimento reflete bem esta evolução. Ao primeiro livro de MacAskill, 'Doing Good Better' [algo como 'Como fazer o bem de forma mais eficiente', em tradução livre](2015), seguiu-se 'What We Owe The Future' [O que devemos ao futuro] (2022). O primeiro e até agora único livro de Ord sozinho é 'The Precipice: Existential Risk and the Future of Humanity' [ O precipício: O risco existencial e o futuro da humanidade] (2020).

Nem todos os partidários do AE deram esse passo. De fato, um dos sites oficiais do movimento define o longoprazismo como "uma escola de pensamento dentro do AE". Mas está claro que seus principais pensadores hoje consideram o futuro a longo prazo como "uma prioridade moral chave de nosso tempo", nas palavras de MacAskill. Daí sua crescente colaboração com centros como o Instituto do Futuro da Humanidade, fundado por Bostrom, ou o Centro para o Estudo de Risco Existencial.

Um trem rumo a Marte

A jornalista Sigal Samuel emprega uma metáfora feliz para distinguir tipos de longoprazismo. Descreve-o como um trem no qual se sobe e se desce conforme o quão longe se queira chegar. Há uma primeira estação (longoprazismo suave), que é onde se acham confortáveis todos aqueles que reclamam mais atenção para a sorte das gerações futuras em assuntos como as aposentadorias, a dívida pública ou a proteção ao meio ambiente. Alguns defensores mais emblemáticos dessa forma de pensar, como o filósofo Roman Krznaric, discordam das afirmações de MacAskill e seus colegas.

A segunda estação é a do longoprazismo duro, centrado em prevenir os riscos existenciais para a humanidade, que são os que preocupam os filósofos de Oxford. A impressão de Samuel é que esses pensadores minimizam a consequência lógica à qual levam seus argumentos, quando defendem que uma vida existente na atualidade tem a mesma importância que uma hipotética vida de dentro de mil anos: se o futuro é onde se pode fazer mais bem, será preciso tirar recursos do presente.

Não é só um debate teórico. Na prática, a entrada em cena do longoprazismo marcou uma mudança de prioridades no movimento. The Economist ilustra isso com dados extraídos de várias fontes: em 2015, a quase totalidade das doações feitas por organizações vinculadas ao AE foram destinadas a auxiliar o desenvolvimento; em 2022, quase 40% foram para minimizar riscos existenciais.

De modo que não é exagerada a advertência da jornalista: sim, preocupemo-nos com o futuro, mas não nos esqueçamos da "justiça e dos direitos humanos básicos" das pessoas do presente. A réplica dos longoprazistas a este tipo de argumentos é: nós nos preocupamos com as causas desatendidas; nada impede que outros continuem com as causas de sempre. Ao que cabe responder: sim, mas vocês também querem que muitos os imitem.

Samuel distingue uma terceira estação: o longoprazismo galáctico, que vê como um imperativo moral a construção de assentamentos no espaço para garantir a sobrevivência da espécie. Se os de Oxford não parecem interessados chegar tão longe, os entusiastas promotores do caminho para Marte (com Elon Musk e sua empresa SpaceX à frente) andam loucos com a ideia.

Poder e dinheiro

A guinada rumo ao largoprazismo duro supôs um crescimento exponencial para o AE. Em pouco tempo, a ideia ganhou vida própria e superou em influência a corrente mãe. Um dos picos mais altos de sua fama chegou no setembro passado, quando Musk recomendou o último livro de MacAskill, 'What We Owe The Future', que considera "muito próximo" de sua visão de mundo.

Ainda que MacAskill sinta pânico com a identificação do longoprazismo com as ideias do magnata, o certo é que Musk já está metido nele até o talo, e por direito próprio: é um importante doador do Future of Life Institute [Instituto Futuro da Vida] e contribuiu para fundar a OpenAI, uma organização pioneira no desenvolvimento de uma forma avançada de inteligência artificial (AGI) defendida pelo longoprazismo.

Outro episódio recente que deu fama mundial a essa doutrina é a estrondosa queda em desgraça do que até agora havia sido seu principal doador: Sam Bankman-Fried, fundador da plataforma de criptomoedas FTX. Em novembro, a empresa entrou em bancarrota de forma inesperada. E um mês depois o magnata foi detido nas Bahamas a pedido dos Estados Unidos, acusado de praticar fraude contra os investidores e clientes, entre outras acusações das quais ele se declara inocente. Seu luxuoso estilo de vida, agora descoberto, desmente a austeridade de que se gabava.

A notícia desferiu um duro golpe para o prestígio moral do movimento. Não obstante, para fazer justiça ao AE, é preciso recordar que muitos dos seus membros estão há anos doando ao menos 10% do seu salário a obras benéficas, uma porcentagem muito superior ao que dá o doador médio (2%) dos EUA, um país que já é inclinado à filantropia. Os próprios MacAskill e Ord se impuseram desde o princípio um compromisso ainda mais estrito: viver com o justo e doar o resto.

Outros multimilionários interessados no AE são: Dustin Moskowitz, que co-fundou o Facebook e investiu fortes somas em sua Open Philanthropy [Filantropia Aberta], uma entidade abertamente longoprazista; Jaan Tallinn, um dos engenheiros que desenvolveu o Skype e que contribuiu para fundar o Centro para o Estudo do Risco Existencial e o Future of Life Institute [Instituto Futuro da Vida]; Peter Thiel, co-fundador do PayPal junto com Musk e investidor da OpenIA…

Tenha filhos e veja bem com quem

Aparentada do longoprazismo, há outra corrente em alta entre alguns empresários do Vale do Silício: o "pró-natalismo", um rótulo que se presta a equívocos. Desde sempre, os pró-natalistas são os defensores dos valores familiares, que veem em cada filho um bem em si mesmo. Mas o fenômeno documentado pela jornalista Julia Black em uma grande reportagem publicada no Business Insider vai por outro lado: aqui o objetivo é ter muitos filhos "geneticamente superiores" para "salvar o mundo", o que os aproxima mais à "ficção científica distópica".

Salvá-lo de quê? Black remete aos longoprazistas de Oxford. Quanto a MacAskill, esclarece que, embora "nunca tenha apoiado explicitamente o pró-natalismo", dedica um dos capítulos de What We Owe The Future a explicar como o declínio demográfico pode conduzir à "estagnação tecnológica", na qual vê um potencial risco existencial. Para preveni-lo, MacAskill sugere duas opções: clonar cientistas "com habilidades de investigação no nível de Einstein", ou modificar geneticamente os seres humanos para que tenham "maiores habilidades cognitivas". Também Nick Bostrom lamenta que a natalidade tenha caído entre "os indivíduos com talento intelectual".

Black menciona Musk — pai de dez filhos de três mulheres — como exemplo de tecnomilionário preocupado com a queda da natalidade entre as elites ricas, mas não consegue relacioná-lo de forma convincente com essa corrente.

Seleção de embriões

Para a sua reportagem, Black falou com Simone e Malcolm Collins, um casamento que se comprometeu a ter entre sete e 13 filhos com ajuda da reprodução assistida. Sua defesa de um tipo de crivo genético lhes valeu a acusação de "eugenistas hipsters". E se converteram no rosto visível dessa corrente com o lançamento da plataforma Pronatalist.org.

Por ora, têm três filhos. Para o último nascimento, recorreram a um teste genético pré-implantatório que, segundo a empresa que o comercializa, permite calcular quais embriões produzidos em um ciclo de fecundação in vitro têm menos risco de sofrer enfermidades poligênicas como o câncer, a diabetes ou a esquizofrenia. Mas os Collins não pararam aí: queriam saber mais sobre a possível "saúde mental e rendimento" dos seus embriões, como explica a própria Simone a outra jornalista. Assim, levaram essa informação a outra empresa que analisa o DNA de adultos e seguiram obtendo dados, até que se decidiram pelo melhor dos embriões.

Para seus futuros filhos, contam com uma ampla reserva de embriões. Escreve Black: “Devido a seu começo relativamente tardio e aos problemas de fertilidade de Simone, sabiam que teriam que congelar seus embriões para utilizá-los mais adiante. Em 2018, ao qual agora se referem como 'o ano da colheita', dedicaram-se a produzir e congelar tantos embriões viáveis quanto possível".

Os Collins estão convencidos de que se avizinha uma "extinção cultural massiva", na qual perecerão 90% das culturas existentes por falta de substituição geracional, segundo arriscam no site de sua plataforma. Por isso, incitam a se unir ao seu Projeto Arca, uma rede de famílias decididas a ter montões de filhos, não importando o tipo de lar e os meios (congelamento de esperma, óvulos e embriões, úteros artificiais…).

Não dão muitos detalhes sobre o plano, mas esclarecem que, como espécie dotada de inteligência, os humanos temos a obrigação de "buscar indivíduos que melhorem nossas deficiências genéticas". Uma ideia que inclui a ambição trans-humanista de "melhorar e transformar a condição humana com tecnologia", nas palavras dos Collins.

"Avalanche de startups"

A história desse casamento é o nervo da reportagem, mas Black menciona "uma avalanche de startups de tecnologia de reprodução assistida [que] está atraindo" magnatas do setor tecnológico como Sam Altman, co-fundador da OpenAI, ou os já mencionados Tallinn e Thiel. Altman é um dos destacados investidores de uma empresa que aspira a criar óvulos humanos viáveis a partir de células mãe, o que, entre outras cosas, permitiria a reprodução entre dois homens.

Por trás dessa febre investidora pode ser que haja ambições menos altruístas que a de salvar a humanidade. Talvez tudo seja mais simples e tenha a ver com o desejo dos casais ricos de "realizar seus objetivos reprodutivos", como diz Black. Ou talvez com a busca, por outros meios, do louco sonho trans-humanista da imortalidade, como sugere Simone Collins na matéria.

O que está claro é que esse natalismo sui generis já é uma das correntes que está configurando a ideologia e a prática do Vale do Silício.

©2023 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.
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