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Desde sua volta à Casa Branca, Donald Trump vem reforçando a ideia de que os Estados Unidos devem agir de forma mais incisiva na América Latina, especialmente diante do avanço da China e de governos considerados hostis a Washington. Não é exagero dizer que o presidente ressuscitou a Doutrina Monroe — a antiga política externa dos Estados Unidos que defendia a primazia americana sobre o Hemisfério Ocidental.
O retorno a essa política ficou ainda mais claro em fevereiro, quando o secretário de Estado, Marco Rubio, declarou no Panamá que o país deveria “eliminar a influência chinesa sobre o Canal do Panamá ou enfrentar ação dos Estados Unidos”. Dias depois, Trump afirmou em discurso que iria “tomar [o canal] de volta”, ou algo “muito poderoso” iria acontecer. Bravata ou não, a ameaça surtiu efeito. O governo panamenho anunciou que não renovará seu acordo com a iniciativa chinesa Belt and Road (“Nova Rota da Seda”) quando o contrato atual expirar.
Se no Panamá a conversa foi suficiente, na Venezuela a situação é mais preocupante. Mais recentemente, Trump autorizou operações da Agência Central de Inteligência (CIA) na Venezuela, justificadas pelas conexões entre o governo de Nicolás Maduro e o narcotráfico. Houve também ataques a embarcações venezuelanas, classificados como “ações contra o tráfico de drogas”.
Ao que tudo indica, a Doutrina Monroe foi repaginada para a versão século 21. Agora sob o argumento de proteger a segurança nacional e conter a influência chinesa e russa na América Latina.
Origem do termo
A antiga política de “América para os americanos” foi anunciada em 2 de dezembro de 1823, quando o então presidente James Monroe apresentou sua mensagem anual ao Congresso norte-americano.
O texto, redigido em parceria com John Quincy Adams, seu secretário de Estado, estabelecia três princípios centrais: os EUA não se envolveriam em guerras ou assuntos internos da Europa; reconheceriam as colônias europeias já existentes no continente americano; e considerariam qualquer nova tentativa de colonização ou interferência estrangeira como um ato hostil.
“Não interferimos e não interferiremos nas colônias ou dependências existentes de qualquer potência europeia. Mas, em relação aos governos que declararam e mantiveram sua independência, e cuja independência reconhecemos, consideraríamos qualquer interferência de sua parte com vistas a oprimir ou controlar seus destinos como manifestação inamistosa aos Estados Unidos”, diz um trecho do discurso.

Naquele momento, boa parte da América Latina havia acabado de conquistar sua independência da Espanha e de Portugal. Monroe e Adams temiam que as monarquias europeias, reunidas na chamada Santa Aliança, tentassem restaurar os antigos impérios. A política, portanto, visava proteger as novas repúblicas latino-americanas e, ao mesmo tempo, garantir que nenhuma potência rival ameaçasse o território e a influência dos Estados Unidos do lado de cá do Atlântico.
De acordo com o portal oficial do Departamento de Estado americano, a Doutrina Monroe marcou “a primeira grande declaração de política externa” do país e estabeleceu o que seria, por décadas, o eixo central da diplomacia norte-americana: impedir a presença militar europeia no continente americano.
Episódios históricos
Desde o século 19, a Doutrina Monroe serviu de base para diversas ações dos Estados Unidos na América Latina. Um dos casos mais icônicos ocorreu em 1895, na disputa de fronteira entre a Venezuela e a Guiana Britânica.
Diante do impasse com o Reino Unido, a Venezuela pediu a intervenção de Washington, e o governo americano, invocando a doutrina, exigiu que Londres aceitasse uma arbitragem internacional. O episódio elevou a tensão diplomática entre os dois países, mas acabou fortalecendo a autoridade dos Estados Unidos na região e consolidando a Doutrina Monroe como instrumento geopolítico.
Anos depois, em 1904, o presidente Theodore Roosevelt reinterpretou a doutrina ao introduzir o chamado Corolário Roosevelt. Segundo ele, os Estados Unidos tinham o direito de intervir em países latino-americanos que não conseguissem manter “ordem interna” ou honrar dívidas externas, a fim de evitar que potências europeias o fizessem. Essa ampliação levou a ocupações militares em países como República Dominicana, Nicarágua e Haiti nas décadas seguintes.
Já no período da Guerra Fria, a intenção de “proteger o hemisfério” serviu para justificar a política de contenção do comunismo e o apoio dos EUA a governos anticomunistas na América Central, especialmente nos anos 1980.
A pá de cal na Doutrina Monroe
O enfraquecimento da Doutrina Monroe começou nas décadas de 1930 e 1940, com a política da Boa Vizinhança implementada por Franklin D. Roosevelt, que buscava reduzir a imagem intervencionista dos Estados Unidos. A estratégia priorizava relações diplomáticas e comerciais mais equilibradas, abandonando ocupações e intervenções diretas.
Após a Segunda Guerra Mundial, a criação de organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), e a ascensão de um sistema global mais multipolar reduziram ainda mais o peso unilateral da doutrina. A opinião pública latino-americana também passou a reagir com crescente resistência a qualquer forma de ingerência norte-americana.
Finalmente, durante o governo de Barack Obama, o então secretário de Estado John Kerry chegou a declarar que “a era da Doutrina Monroe chegou ao fim”. Isso foi em 2013. De lá para cá, parecia que a política estava enterrada de vez.
Tudo mudou com a volta de Trump
No novo governo, o presidente já deixou claro que “a América Latina precisa escolher lados” e que “a segurança dos Estados Unidos começa ao sul da fronteira”.
Diariamente no noticiário, as falas de Trump contra Maduro e as operações da CIA na Venezuela reacendem a lembrança da Doutrina Monroe. Inclusive, a própria Casa Branca não descarta “operações limitadas em solo venezuelano” caso considere necessário, segundo fontes citadas pela imprensa americana.
Para o Brasil, no entanto, as estratégias não são militares. Pelo menos não até agora. Desde a sanção de Alexandre de Moraes pela Lei Magnitsky, ministros e outros burocratas do alto escalão brasileiro também já perderam seus vistos americanos.
Além disso, Trump critica a aproximação de governos latinos com a China e já ameaçou endurecer barreiras comerciais contra parceiros que “coloquem interesses estrangeiros acima dos americanos”.
No campo da segurança, os EUA ampliaram o patrulhamento no Caribe e em águas internacionais, declarando como “ameaças à segurança nacional” embarcações suspeitas de transportar drogas ou armas vindas da América do Sul. Essas ações de combate ao narcotráfico fazem parte da nova política de “intervenção preventiva”.
De modo geral, o que se observa é uma reinterpretação contemporânea da Doutrina Monroe, agora baseada nos riscos do narcotráfico, da imigração e da competição geopolítica com a China.
Se, no século 19, o objetivo era conter a colonização europeia, hoje o foco de Washington é impedir a expansão de influências rivais no Hemisfério Ocidental.






