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Desastre comercial

Um ano depois da guinada woke, Jaguar paga o preço por tentar ser tudo — menos ela mesma

Campanha da Jaguar lançada em 2024: figuras andróginas desconectadas do público tradicional da marca
Campanha da Jaguar lançada em 2024: figuras andróginas desconectadas do público tradicional da marca (Foto: Divulgação/Jaguar)

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O mundo automotivo foi pego de surpresa (ou talvez nem tanto) nas últimas semanas com a saída repentina de Gerry McGovern da Jaguar Land Rover. Ele era chefe de design da empresa há duas décadas e foi o arquiteto do rebranding (reposicionamento) mais polêmico da marca. Esse episódio lança ainda mais sombra sobre o conturbado 2025 da fabricante de carros.

Depois de um ano de controvérsia estética, queda brusca nas vendas e um comercial que parecia mais desfile de moda conceitual e andrógina do que anúncio de carros, a Jaguar tenta agora reorganizar o que sobrou da sua narrativa.

A empresa apostou em abandonar o vigor tradicional do design britânico em favor de uma identidade “ultra luxo” de tons saturados, poses performáticas e slogans como “Copy Nothing” ("Não Copie Nada") — em outras palavras, abraçou sem vergonha a estética mais woke possível.

A campanha rendeu zombaria nas redes sociais e até o próprio Elon Musk ironizou a marca no X: “Vocês vendem carros?”.

Queda inacreditável

Jason Torchinsky, do site automotivo Autopian, classificou o vídeo como “coisa incrivelmente derivada”, afirmando que, apesar do discurso de ruptura, “a Jaguar está se aconchegando em um molde que foi usado pela primeira vez para lançar uma identidade de marca em 1984”, referindo-se a um famoso anúncio da Apple.

O público também não se encantou. Na Europa, as vendas despencaram 97,5% após o início da campanha, chegando ao inacreditável número de apenas 49 veículos registrados em abril — contra 1.961 no mesmo mês do ano anterior, segundo dados da Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis, divulgados pelo New York Post.

Entre janeiro e abril, a queda acumulada foi de 75,1%. A matéria do Post ainda lembrou que, em 2018, a Jaguar vendeu pouco mais de 180 mil unidades no mundo; no último ano, foram menos de 27 mil.

A Jaguar contestou a associação, afirmando ao New York Post que “comparar as vendas de anos anteriores com as de 2024 é inútil” porque a empresa já estava reduzindo sua produção para a transição ao portfólio totalmente elétrico em 2025. Mas é difícil sustentar que o rebranding não contribuiu para o desgaste.

"Público imaginado"

Internamente, o clima também não parece tranquilo. A saída de McGovern ocorre “pouco mais de um ano depois da repercussão negativa causada pelo reposicionamento” e duas semanas após a chegada do novo CEO global, P.B. Balaji, como registrou o portal Automaistv.

O designer foi responsável por alguns dos maiores sucessos visuais da JLR — duas gerações do Range Rover, o Evoque, o novo Defender — e por toda a filosofia criativa que guiaria a nova Jaguar elétrica. Sua saída repentina cria um vácuo no momento mais arriscado da marca.

Enquanto isso, o discurso oficial segue tentando justificar a guinada. Rawdon Glover, diretor-geral da Jaguar, afirmou ao Automaistv que a empresa está preparada para “perder até 85% de sua atual clientela”. Segundo ele, apenas “15% dos compradores” permanecerão na transição para o elétrico.

E acrescentou: “design e interior são as prioridades desses clientes. Os compradores desse mercado pouco se importam com o tipo de motorização”. A fala revela a aposta num público jovem, rico e disposto a pagar por um luxo mais abstrato. Mas é justamente esse “público imaginado” que especialistas veem como um risco de leitura.

Como as marcas morrem

Jessica Caldwell, da Edmunds (plataforma que oferece análises para compradores de carros), afirmou ao site Meio & Mensagem que “a nova identidade de marca da Jaguar parece um pouco abstrata demais para se conectar com compradores reais”, reforçando que, mesmo num rebranding ousado, as pessoas ainda buscam “substância e valor pelo dinheiro”.

E talvez esteja aí o ponto central: por mais poética que seja a ideia de romper moldes, carros ainda são objetos de desejo concreto. Exigem presença, história, propósito — elementos que não podem ser dissolvidos em saturações de cor e slogans aspiracionais.

Rebranding, afinal, não é maquiagem: é narrativa. E, quando a narrativa perde contato com o produto, gera mais ruído que reinvenção.

A Jaguar tentou “não copiar nada”, mas acabou escorregando para a estética genérica de quem tenta parecer radical sem, de fato, radicalizar. O resultado foi um choque entre intenção e recepção, entre o futuro imaginado no estúdio e a realidade mais áspera do mercado automotivo.

Marcas não morrem por envelhecer; morrem quando tentam ser outra coisa sem saber o que continuam sendo.

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