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Em 2021, 34 vítimas iniciaram um processo judicial coletivo contra o Pornhub por casos envolvendo vídeos de pedofilia, estupro, imagens não consentidas e tráfico sexual.
Em 2021, 34 vítimas iniciaram um processo judicial coletivo contra o Pornhub por casos envolvendo vídeos de pedofilia, estupro, imagens não consentidas e tráfico sexual.| Foto: Bigstock

Uma mãe do Alabama (EUA) está levando a MindGeek, empresa canadense dona do Pornhub, à justiça. O maior site de conteúdo pornográfico com, segundo a empresa, 4.5 bilhões de visitas por mês em 2020, está sendo acusado por ela de distribuir e lucrar com vídeos de seu filho sedado sendo estuprado diversas vezes por um homem.

Conhecido apenas pelo apelido online de CV1, o menino de 14 anos foi uma das vítimas de Rocky Franklin, 36. Condenado a 40 anos de prisão no início do ano passado por duas acusações de exploração sexual infantil, uma acusação de publicidade de pornografia infantil e duas acusações de distribuição de pornografia infantil, Franklin passou meses praticando, gravando e vendendo vídeos de abusos sexuais de CV1 e outras crianças por 15 a 20 dólares na plataforma de pornografia durante 2019.

Segundo reportagem do veículo Insider, o processo civil inicial afirma que estava claro nos vídeos, um com mais de 125 mil visualizações, de se tratar de uma criança, e que os títulos — como “meu sobrinho favorito” e “segredo do tio” — também indicavam o caráter do conteúdo. Além disso, os autores alegam que o Pornhub forneceu "assistência, plataforma, mandatos de conteúdo e edições” a Franklin para gerar "a quantidade máxima de visualizações e o volume máximo de tráfego para o benefício mútuo dos Réus e seu esquema ilegal".

Em agosto de 2022, Visa e Mastercard desmonetizaram diversos sites pornográficos pertencentes à MindGeek após uma decisão preliminar de um juiz da California manter a primeira como corréu no caso de Serena Fleites. A mulher está movendo um processo contra o Pornhub e a Visa por estes monetizarem com conteúdo de quando ela tinha 13 anos. Publicado no site sem seu consentimento, o vídeo foi disponibilizado na plataforma pelo namorado de Serena na época, algo só descoberto por ela anos depois, quando o vídeo já havia tido 400 mil visualizações.

Ela insistiu ao Pornhub pela remoção do conteúdo, mas como os vídeos podem ser baixados pelos usuários, ele foi repetidamente reenviado para vários sites pornográficos pertencentes à MindGeek. Segundo a autora do processo, um desses reenvios chegou a ter 2.7 milhões de visualizações. A Visa é a principal responsável por processar os pagamentos entre anunciantes e MindGeek, o que significa que a empresa efetivamente lucrou com o vídeo de Serena e as milhões de visualizações que obteve.

Dias depois da decisão da Visa e Mastercard desmonetizarem anúncios em qualquer site da MindGeek pelo andamento do caso de Serena, a plataforma anunciou ter firmado uma parceria com uma empresa especializada para frear a pornografia infantil em seu site.

Ainda em junho, a revista The New Yorker havia publicado uma reportagem dedicada a mostrar que, por anos, conteúdos não consensuais abundam na plataforma e que não há muito interesse em removê-los pela quantidade de tráfego — e lucro — que geram. No mesmo mês, o executivo-chefe da MindGeek, Feras Antoon, e seu diretor de operações, David Tassillo, renunciaram aos cargos, mas negaram que as renúncias estivessem ligadas às alegações criminais.

Pedofilia, estupro e imagens não consentidas

Mas os problemas envolvendo o site já haviam começado antes disso. Em 2021, 34 vítimas iniciaram um processo judicial coletivo contra o Pornhub por casos envolvendo vídeos de pedofilia, estupro, imagens não consentidas e tráfico sexual. Em 2020, a empresa se viu forçada a suspender milhares de vídeos não verificados após a publicação do colunista Nicholas Kristof no The New York Times intitulada “As Crianças do Pornhub” afirmar que a plataforma estava repleta de pornografia infantil e violência sexual. De acordo com uma análise feita pelo site canadense de notícias sobre tecnologia Logic, o tráfego do Pornhub caiu 40% no ano seguinte à publicação da coluna de Kristof.

Todas as acusações foram sistematicamente negadas pela MindGeek e a falta de disposição da gigante do pornô em frear os crimes na sua plataforma parece ter ficado explícita quando, durante o testemunho dos executivos da empresa no processo de Serena, eles não se preparam para responder as perguntas mais elementares.

Conforme relata a reportagem da New Yorker, “Antoon não conseguiu dizer quanto dinheiro a empresa ganhou, quantas reclamações recebeu sobre vídeos não consensuais ou por que não fez nenhuma mudança substancial na política até a Visa e a Mastercard fecharem seus negócios. Quando o procurador público Shannon Stubbs perguntou se a MindGeek "alguma vez monetizou abuso sexual infantil e material não consensual", Antoon se recusou a responder diretamente e afirmou que tal conteúdo era prejudicial à marca da empresa”.

Além do Pornhub e a exploração sexual nas redes 

Em setembro do ano passado, diversas empresas suspenderam ou removeram anúncios do Twitter por estes estarem aparecendo ao lado de tweets relacionados à pornografia infantil. O anúncio veio após uma revisão da Reuters de contas identificadas em uma pesquisa sobre abuso sexual infantil online do grupo de segurança digital Ghost Data.

Diferentemente de sites como Tumblr ou Instagram, o Twitter permite conteúdo sexual explícito e basta afirmar ter mais de 18 anos para distribuí-lo ou acessá-lo livremente. Pornografia e violações sexuais são tão disseminadas na plataforma que os próprios funcionários afirmaram que a empresa não poderia deixar produtores de conteúdo monetizarem pornografia, pois não há mecanismos eficientes para coibir conteúdo ilegal do tipo sendo empregados.

No entanto, não permitir conteúdo explícito não tem sido o suficiente para garantir um ambiente livre de pedofilia ou alguma sorte de violência sexual contra mulheres e crianças. No Instagram, perfis com imagens e vídeos de menores, sobretudo meninas, dançando ou em poses sexualizadas, algumas expondo “descuidadamente” órgãos sexuais, são publicadas em perfis anônimos e acumulam milhares de visualizações e curtidas.

No fim do mês passado, a Olhar Digital publicou uma reportagem sobre as diversas denúncias recebidas pelo hacker brasileiro identificado como Daniel Ghost (@realghosthacker) acerca de duas contas que compartilhavam imagens sexualizadas de crianças e adolescentes, sobretudo de meninas.

O hacker, que ficou conhecido por encontrar uma falha de segurança no site do clube de futebol Bayern de Munique, afirmou ter notado, ao pesquisar as contas com mais atenção, que algumas continham links para sites com mais fotos e vídeos de crianças e adolescentes sexualizadas e uma levava direto para conteúdo explícito. “Antigamente, sites com esse tipo de conteúdo eram encontrados somente na dark web. Mas hoje em dia, são encontrados na Internet comum, também conhecida como ‘surface’. O Telegram, por exemplo, é usado para compartilhar esses tipos de conteúdos também. Todos os dias recebo denúncias nas minhas redes sociais sobre isso”, relatou ele à publicação.

Na rede social da Meta, diversos conteúdos e contas do tipo não são removidos mesmo após repetidas denúncias por não serem imagens explícitas e estarem numa zona cinza - muitas são, inclusive, compartilhadas por mães e pais que nem imaginam a possibilidade do conteúdo ser utilizado dessa forma ou, que, por outro lado tiram algum benefício da “fama” digital da criança.

Nem é preciso navegar muito por elas para se deparar com conteúdo ilegal na plataforma. Normalmente, a busca pelas imagens e vídeos acontece por hashtags que indicam o teor do conteúdo. Por exemplo, no Pornhub, é possível pesquisar por “estupro”. Nenhuma mensagem, alerta ou bloqueio impede a busca. Pelo contrário, o Pornhub prontamente sugere outras hashtags como “estupro brasil”, “abusada”, “sexo forcado”, “mulher sendo estuprada”, “estupro novinha”, “estupro coletivo” e por aí vai.

Para além das hashtags, no Instagram e Twitter, os usuários que compartilham esse tipo de conteúdo costumam se seguir mutuamente e por meio de um perfil é possível encontrar centenas de outros perfis com conteúdos similares. Sem mecanismos efetivos para coibir a prática, vídeos e fotos de crianças sexualizadas se multiplicam aos milhares em ambas as plataformas.

Procuradas, Meta e MindGeek não se manifestaram até a publicação desta reportagem.

Implicações legais possíveis aos envolvidos e prevenção

A advogada com ênfase em defesa das mulheres Hyezza Tavares explica que o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014, MCI) confere liberdade de expressão e lucro às empresas, porém dispõe sobre a responsabilidade dos provedores por conteúdos de terceiros.

“No artigo que versa acerca da responsabilidade civil dos provedores, incluindo as redes sociais, e sites de distribuição de conteúdo, há uma previsão de exclusão da responsabilidade dos provedores por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”, detalha, ressaltando, porém, que “esses mesmos provedores poderão ser responsabilizados quando receberem notificação da pessoa que teve sua intimidade violada e, mesmo assim, não excluírem as imagens, vídeos ou outros materiais privados”.

Hyezza ressalta que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), já decidiu, em 2018, que assim que recebida a notificação, o provedor de internet se torna responsável subsidiário pela violação da intimidade decorrente da divulgação do conteúdo não autorizado e não desvinculado. “Portanto, após notificação prévia, caso não excluam o conteúdo ilícito, os servidores podem responder por dano moral, entre outros ilícitos civis, em relação aos crimes como estupro, pornografia e outros relacionados a maiores de idade”, afirma.

Outro ponto é o artigo 218–C no Código Penal, que afirma ser passível de responsabilização criminal quem compartilha cenas de estupro ou faz apologia ao estupro. “Mesmo que o divulgador não tenha concorrido para elaboração ou realização do conteúdo, ele poderá ser incriminado, assim como incorre em ilícito civil”, explica a criminalista.

Nos casos de pornografia infantil, o artigo 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente implica quem oferece, troca, disponibiliza, transmite, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.

“A conduta de quem consome pornografia infantil já é tipificada no art. 241-A do ECA; assim não comete crime apenas a pessoa que produz, expõe e divulga pornografia infantil, mas aquele que adquire ou armazena o conteúdo em qualquer meio (Smartphone, computador, e-mail, Pen drive etc.)”, explica Hyezza.

“O grande hiato do tipo é aquele que apenas observa, assiste, o conteúdo disponibilizado sem armazená-lo ou ter a posse do “produto”; a prática nos conduz a ver que esses são investigados para elucidar se se enquadram em alguma forma do núcleo do art. 241-A do ECA, o que é costumeiro da psique dos envolvidos com esse consumo. O perfil criminoso não satisfaz a mera visualização, mas a “camaradagem” que esse meio possui entre o armazenamento, o compartilhamento uns com os outros, as conversas e o acesso aos corpos infantis ou vulneráveis”, acrescenta ela.

De acordo com informações obtidas com a Diretoria de Operações Integradas e de Inteligência do Ministério da Justiça e Segurança Pública via Lei de Acesso a Informação, foi realizado apoio técnico a operações de repressão a esse tipo delito pelas polícias civis dos estados, com destaque para a Operação Luz na Infância, que desde 2017 já resultou em mais de 500 mandados de prisão. Segundo a divisão, em caso de constatação do crime, a pessoa deve dirigir-se a unidade de polícia mais próxima, a fim de noticiar o fato.

Entre a fantasia e a realidade 

Os casos que chegam às delegacias e tribunais representam apenas uma ínfima parcela da realidade de crimes cometidos contra mulheres e crianças envolvendo pornografia digital.

No Brasil, conforme salienta Hyezza, a pena é baixa com, na maior parte dos casos, a reclusão não excedendo quatro anos, sendo a própria autoridade policial apta a conceder a fiança em determinadas situações. A baixa responsabilização dos indivíduos envolvidos é, sem dúvidas, um fator na equação.

No entanto, parece haver uma linha tênue separando a pornografia consentida e crimes sexuais que dificulta combatê-los, pois a questão está no cerne do lucro da indústria pornográfica.

Izabella Forzani, responsável pela iniciativa Recuse-se a Clicar, cujo ponto central de atuação é lidar com a violência e a objetificação feminina decorrentes da forma inerente da indústria do sexo, alerta que, como mostram os próprios títulos de vídeos expostos acima, “a pornografia atual é composta basicamente de violência contra a mulher”.

Para ela, é importante termos essa conscientização, sobretudo aqueles e aquelas de nós que ainda imaginam que a pornografia atual é de alguma forma parecida com a pornografia antes do advento das redes sociais: “Muitas pessoas sem tanto acesso à internet e que não cresceram dentro do mundo digital não têm a mais vaga ideia do que efetivamente é a pornografia atual. As pessoas ainda tendem a achar que é algo como uma Playboy filmada e isso não poderia estar mais equivocado”, explica.

Ter essa consciência é importante não só para frear o próprio consumo de pornografia como também alertar pais, mães e responsáveis por crianças e adolescentes acerca das consequências da exposição a esse tipo de conteúdo. “Crianças e adolescentes não têm a mesma capacidade de avaliar riscos como pessoas adultas por conta do próprio processo de formação neuro cerebral”, detalha Ana Clara Almeida Silva, psicóloga e supervisora em clínica, mestre em psicologia e doutoranda em teoria e pesquisa do comportamento. “A educação sexual hoje acaba passando pela pornografia, e crianças e adolescentes que consomem pornografia, sobretudo desde muito cedo, têm mais dificuldade de identificar comportamentos abusivos, ainda que de alguma forma sinta que aquilo é errado”, explica.

Ao mesmo tempo, o acesso a qualquer tipo de conteúdo pornográfico é extremamente simples, só precisando de uma rede de internet e um dispositivo como celular ou computador para acessá-la a qualquer momento, de qualquer lugar e de forma gratuita. “A existência dos sites de streaming de pornografia e os smartphones faz com que esse acesso seja ainda mais facilitado. Então, se nós não pararmos o consumo de pornografia para essa geração, nós estamos semeando um futuro ainda mais violento que o nosso para as nossas meninas”, alerta Izabella.

Ela cita pesquisas relativamente recentes, como A Meta-Analysis of Pornography Consumption and Actual Acts of Sexual Aggression in General Population Studies  (Uma meta-análise do consumo de pornografia e atos reais de agressão sexual em estudos populacionais gerais, em tradução livre), de 2016, e The association between exposure to violent pornography and teen dating violence in grade 10 high school students (A associação entre a exposição à pornografia violenta e a violência no namoro adolescente em alunos da 10ª série do ensino médio, em tradução livre), de 2019, que têm buscado entender as relações entre consumo de pornografia e crimes sexuais.

Ana Clara explica que a dessensibilização em torno da pornografia acontece de forma progressiva. De tanto consumir conteúdo explícito, os materiais vão ficando ineficazes para o sujeito se excitar, por exemplo. Não é diferente de qualquer outra coisa ou substância que gera sentimento de recompensa. Então os conteúdos são substituídos progressivamente por vídeos mais violentos e degradantes. “A pessoa vai escalonando, ela começa a consumir conteúdos cada vez mais pesados, mais violentos e são esses conteúdos que vão passar a satisfazê-la. A gente pode entender a dessensibilização por aí também”, detalha.

Em agosto do ano passado, um artigo publicado no British Medical Journal, mostrou as consequências na saúde das mulheres jovens causadas pelo aumento da popularidade do sexo anal entre casais heterossexuais citando problemas como incontinência, doenças sexualmente transmissíveis e fissuras anais. Segundo os pesquisadores, as mulheres não estão sendo devidamente informadas dos riscos, recebendo diagnósticos tardios e tratamentos ineficazes.

O resultado, conforme explica a psicóloga, é uma dessensibilização frente à própria violência infringida ao outro ou a si, não enxergando as implicações físicas, emocionais, psicológicas e sexuais da violência “fetichizada” e dificultando o reconhecimento do abuso. “Os homens são educados na pornografia para tratar as mulheres como seres degradantes, e as mulheres que assistem pornografia aprendem a serem tratadas desse jeito, como se sexo fosse isso e acabou”, afirma Ana Clara. “A exposição frequente à pornografia – bem como a cultura da pornografia na qual estamos inseridos – traz prejuízos tanto para os homens quanto para as mulheres e crianças.”

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