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Uma causa psicológica do sucesso da esquerda
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Por que, depois dos horrores do totalitarismo, é feio ser nazista mas é aceitável ser comunista? A essa pergunta tão difícil podem ser dadas várias respostas complementares. Uma, óbvia, é o fato de a URSS ter saído vitoriosa da II Guerra Mundial, ao contrário do III Reich. Entre os privilégios usuais do vencedor está o de contar a história e fazer propaganda.

Mas não pode ser só isso, uma vez que há uns cinco anos não havia nenhum charme em se dizer liberal, e era até feio se dizer capitalista, muito embora uma forma de capitalismo tenha vencido a economia comunista na própria pátria de Mao.

Minha explicação aqui é que há um fator psicológico importante no sucesso da esquerda: ele dá ao esquerdista uma ilusão prazerosa para tocar a vida. Segundo essa ilusão, os maus são sempre os outros, e a adesão à esquerda faz do partidário alguém automaticamente superior aos não convertidos.

Ilusões necessárias e senso comum 

Todos temos crenças que usamos para tocar a vida, sejam elas relativas a meros fatos ou à moral. Quanto aos meros fatos, acreditamos, por exemplo, que os objetos que estão à nossa volta são como parecem. Ninguém dá uma de Descartes, pra ficar perguntando se o mundo existe mesmo ou se está sendo enganado pelo Gênio Maligno.

Ainda assim, alguns filósofos e cientistas se deram ao trabalho de questionar essas crenças, e fizeram descobertas importantes que às vezes contrariam a aparência das coisas.

O exemplo mais eloquente é o fato de a Terra estar em movimento, e não parada, como ela se mostra aos sentidos. Para tocar a vida quotidiana, dizemos que a Terra está parada: é irrelevante pensar no movimento dela quando corremos atrás do ônibus. Para estudar astronomia, porém, dizemos que está em movimento. Ao cabo, convivemos com mais de uma crença útil, e somos capazes de alternar entre elas.

Não obstante seja verdade que a Terra se move, essa verdade é inteiramente inútil para a esmagadora maioria da humanidade, de modo que pode ser desprezada no dia a dia. Por outro lado, a crença de que a Terra está parada é tão útil, que nem Galileu poderia se desfazer dela. A ilusão de que a Terra está parada e não se move é uma ilusão necessária à vida, e alterar o registro entre as duas crenças é algo que demandou, da humanidade, sofisticação intelectual e coragem. Demandou coragem, porque é assaz desconfortável a ideia de que as coisas são de uma maneira tão diferente de como as vemos.

Existem mais crenças funcionais para a vida. Acreditamos todos que certamente estaremos vivos amanhã, e que não descobriremos este ano algo letal como um câncer silencioso. Essa certeza nossa não tem nenhum fundamento; no entanto, abdicar dela e viver em suspense, pensando na iminência da morte, não é algo minimamente sensato. Hipocondríacos contemplam essa verdade e vivem paranoicos. A maioria das pessoas prefere não questionar essa ilusão. E uma pequena porção da humanidade, com alguma dose de coragem, diz: “É verdade que talvez uma doença letal silenciosa esteja na iminência de aparecer, mas não há muito o que fazer quanto a isso. Bola pra frente.”

No plano da moral, a maioria das pessoas tem um senso comum baseado em parte na religião, e em parte em sentimentos de justiça ou humanidade. A religião das pessoas costuma ser herdada dos pais, e as pessoas vivem com a crença de saber com certeza que existe um Deus em conformidade com as suas ideias, e que os muçulmanos do Estado Islâmico estão errados. Apenas uma minoria tem interesse suficiente por questões doutrinárias a ponto de se preocupar com elas. Essa minoria vira teóloga, filósofa, ateia ou agnóstica.

No entanto, essas investigações não costumam ter grande impacto sobre a vida quotidiana: ninguém passa a chutar cãezinhos por concluir que Deus não deve existir, e ninguém dá tabefe em testemunhas de Jeová (que têm Maria em tão baixa conta) por se converter ao catolicismo (que cultua a Virgem). A crença de que não devemos distribuir tabefes e pontapés é de um senso comum independente de questões teológicas.

A coisa muda de figura, naturalmente, se a pessoa se tornar fundamentalista. Ao que se sabe, pelo caso dos islamistas, o perfil do radical não é o do teólogo; pelo contrário. Existia um perfil do terrorista islâmico razoavelmente definido na Europa dos anos 90: o radical era filho de imigrante (mas não imigrante), de classe média e com ensino superior. Lá, como cá, os radicais tratam sobretudo de política. Um comunista vira ateu em função do comunismo, não de reflexões de natureza filosófica. Outrossim, um islamista vira muçulmano em função de certa ideologia teocrática, não de reflexões de natureza teológica.

O mais razoável, portanto, é pensar que existe alguma pulsão que leva as pessoas ao radicalismo, seja ele político ou religioso.

Nossa autoapreciação moral 

Todos temos crenças acerca da nossa própria pessoa, sejam elas factuais ou morais. Não é nada ousado dizer que, para tocar a vida, precisamos crer que temos alguma dignidade, e não somos o cocô do cavalo do bandido. Não obstante, algumas pessoas de fato são o cocô do cavalo do bandido — e daí se segue que essas pessoas têm que criar uma ilusão acerca de si mesmas para tocar a vida. Há filhos incapazes de enxergar defeitos nos pais; há gente ruim incapaz de enxergar os defeitos em si mesmas, pois de outro jeito não suportaria a vida.

Aqui, quero voltar a João Santana no Roda Viva. O único momento em que ele se enfurece é quando o ex-amigo o acusa, irrefutavelmente, de mentiroso cara de pau. Ele poderia se evadir de questões morais do mesmo jeito que fez em toda a entrevista, e alegar que sua mentira foi uma decisão “técnica”, o melhor jeito de se preservar ou coisa que o valha. E estaria certo, de um ponto de vista “técnico”. Como um lutador hábil, ele sabe levar o adversário para a área que lhe é mais confortável, e isso, em seu caso, consiste em se evadir da moral.

Mas o ex-amigo feriu sua autoapreciação de homem de valor, apresentando-o como um canalha comum. A partir daí, seu empenho é em defender o valor de sua própria pessoa. Primeiro baixa o nível da moral da humanidade, apelando à natureza necessariamente humana da mentira. (Diz ele que a mentira é privilégio humano, o que é verdade, pois cachorro não mente.) Mas do fato de todo mentiroso ser humano não se segue que todo humano seja mentiroso: no lodaçal moral em que talvez se afunde a humanidade, é inegável que há umas cabecinhas para fora da lama. Assim, João Santana a tenta apresentar a prova da própria virtude, gabando-se de ser sido ele o responsável por uma lei de transparência, num gesto bondoso que tornou seu ex-amigo (que queria a lei) bom por intermédio dele.

Ele apreciou a virtude do ex-amigo, e em seguida roubou algo dela para si. Fez isso furioso, porque não quer que ninguém destrua a ilusão acerca do próprio caráter que ele criou para tocar a vida.

Por que ser de esquerda é vantajoso 

Acuado, e querendo dizer que tem caráter, João Santana se colocou como de esquerda. Vi coisa parecida num evento de esquerdistas velhos e honrados, sem nenhuma ligação com eventos policiais. São verdadeiramente contrários às ditaduras, condenam Cuba e a URSS, e seguem Bobbio. (Bobbio define esquerda e direita sem maniqueísmo. Diz que a diferença entre esquerda e direita é somente a primeira guiar-se pela igualdade; mas ser democrático ou ditatorial é algo possível tanto na esquerda quanto na direita.) Ainda assim, nenhuma crítica interna à esquerda poderia ser feita sem frisar que a “direita populista” é pior do que qualquer esquerda, até a identitária.

Ora, qualquer brasileiro com uma moral de senso comum considerará o racismo uma coisa abominável. Sem dúvida, esses esquerdista velhos participam do senso comum nisso. No entanto, por mais objeções que se possam fazer à “direita populista” brasileira (isto é, aos bolsonaristas), não se pode negar que o racismo hoje é sobretudo de esquerda. São os esquerdistas que julgam as pessoas em função de sua cor da pele, e fazem isso de maneira desavergonhada, recorrente e obsessiva. Se há esquerdistas dispostos a reconhecer que identitários são horríveis, por que não há esquerdistas dispostos a reconhecer que talvez a “direita populista” não seja a pior coisa que há?

O prêmio que eles ganham com essa postura é o de não serem as piores pessoas jamais. Esquerdismo é um salvo-conduto de virtude. Identifique alguém como pior vilão do mundo por razões estritamente conceituais, desvinculadas da ação, e você, como consequência poderá fazer o que quiser sem jamais ser um vilão.

Comparativo com o cristianismo 

Milênios de cristianismo legaram ao senso comum ocidental a noção de que ninguém é isento de chagas morais; que todos somos pecadores, ainda que uns sejam mais pecadores que outros. Isso é uma coisa muito sensata, e uma crença muito salutar para o convívio social.

Desde tempos imemoriais, a maldade pura era atributo dos demônios. Se um homem comete um ato de maldade espantosa, o impulso irracional é o de mitigar a culpa do homem e explicar o ato a partir de uma possessão demoníaca.

Somos criados, há gerações, para achar que ninguém é anjo nem demônio; que o homem é precioso e falho ao mesmo tempo. Como não somos anjos, temos que nos esmerar para melhorar sempre, e nossa autoavaliação sempre conviverá com a possibilidade de sermos o cocô do cavalo do bandido.

O ateísmo, em si mesmo, é moralmente neutro. (Note-se que a soberba dos ateus em geral consiste em se achar muito mais inteligente e sabido do que os religiosos, mas não em se achar mais bondoso ou virtuoso.) Existe um ateísmo instrumental, da esquerda, que consiste em queimar todo o aparato moral legado de senso comum pelo cristianismo e instituir um universo onde não é preciso fazer nada para ser bom, pois basta declarar-se “de esquerda”. É virtude grátis.

Mostrar e deplorar a abominação genocida do comunismo implica acabar com essa ilusão tão confortável. Quem quiser virtude grátis tem que desviar o olhar.

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