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Documento histórico

Veja íntegra da Lei dos Sexagenários, que abriu caminho para o fim da escravidão

Pintor francês Jean-Baptiste Debret retratou escravidão no Brasil na primeira metade do século 19.
Pintor francês Jean-Baptiste Debret retratou escravidão no Brasil na primeira metade do século 19. (Foto: Jean-Baptiste Debret/Domínio Público)

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O objetivo da Lei dos Sexagenários fica claro logo na descrição do texto legal, promulgado em 28 de setembro de 1885, há 140 anos: "Regular a extinção gradual do elemento servil."

O texto concedeu a alforria a todos os escravos com mais de 60 anos. Na época, viviam no país aproximadamente 700 mil cativos, de acordo com análises posteriores realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O país tinha então estimados 9,9 milhões de habitantes

Proposta por Manuel Dantas, enquanto ele era presidente do Conselho de Ministros, a lei, em sua primeira versão, previa o fim definitivo da escravidão no Brasil em no máximo 16 anos e permitia a distribuição de terras para ex-cativos, além de estabelecer a alforria automática aos 60 anos. A reação do Legislativo levou à queda de Dantas, substituído por Antônio Saraiva, que ajustou o texto. Saraiva sendo sucedido pelo Barão de Cotegipe, que elaborou a versão final da Lei n.º 3.270/1885, que ficou conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe.

Quando se lê o texto na íntegra, fica clara a preocupação em detalhar as regras e garantir a segurança jurídica para este processo de transição, que pouco tempo depois levaria o Brasil a finalmente banir a escravidão por completo.

Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885 (ortografia atualizada)

D. Pedro II, por Graça de Deus e Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos súditos que a Assembleia Geral Decretou e Nós Queremos a Lei seguinte:

DA MATRÍCULA

Art. 1º Proceder-se-á em todo o Império a nova matrícula dos escravos, com declaração do nome, nacionalidade, sexo, filiação, se for conhecida, ocupação ou serviço em que for empregado, idade e valor, calculado conforme a tabela do § 3º.

§ 1º A inscrição para a nova matrícula far-se-á à vista das relações que serviram de base à matrícula especial ou averbação efetuada em virtude da Lei de 28 de Setembro de 1871, ou à vista das certidões da mesma matrícula, ou da averbação, ou à vista do título do domínio, quando nele estiver exarada a matrícula do escravo.

§ 2º A idade declarada na antiga matrícula se adicionará o tempo decorrido até o dia em que for apresentada na repartição competente a relação para a matrícula ordenada por esta Lei.

A matrícula que for efetuada em contravenção às disposições dos §§ 1º e 2º será nula, e o coletor ou agente fiscal que a efetuar incorrerá em uma multa de cem mil réis a trezentos mil réis, sem prejuízo de outras penas em que possa incorrer.

§ 3º O valor a que se refere o art. 1º será declarado pelo senhor do escravo, não excedendo o máximo regulado pela idade do matriculando, conforme a seguinte tabela:

Escravos menores de 30 anos900$000
de 30 a 40800$000
de 40 a 50600$000
de 50 a 55400$000
de 55 a 60200$000

§ 4º O valor dos indivíduos do sexo feminino se regulará do mesmo modo, fazendo-se, porém, o abatimento de 25% sobre os preços acima estabelecidos.

§ 5º Não serão dados a matrícula os escravos de 60 anos de idade em diante; serão, porém, inscritos em arrolamento especial para os fins dos §§ 10 a 12 do art. 3º.

§ 6º Será de um ano o prazo concedido para a matrícula, devendo ser este anunciado por editais afixados nos logares mais públicos com antecedência de 90 dias, e publicados pela imprensa, onde a houver.

§ 7º Serão considerados libertos os escravos que no prazo marcado não tiverem sido dados a matrícula, e esta cláusula será expressa e integralmente declarada nos editais e nos anúncios pela imprensa.

Serão isentos de prestação de serviços os escravos de 60 a 65 anos que não tiverem sido arrolados.

§ 8º As pessoas a quem incumbe a obrigação de dar à matrícula escravos alheios, na forma do art. 3º do Decreto n. 4835 de 1 de Dezembro de 1871, indenizarão aos respectivos senhores o valor do escravo que, por não ter sido matriculado no devido prazo, ficar livre.

Ao credor hipotecário ou pignoratício cabe igualmente dar as matrículas a escravos constituídos em garantia.

Os coletores e mais agentes fiscais serão obrigados a dar recibo dos documentos que lhes forem entregues para a inscrição da nova matrícula, e os que deixarem de efetuá-la no prazo legal incorrerão nas penas do art. 154 do Código Criminal, ficando salvo aos senhores o direito de requerer de novo a matrícula, a qual, para os efeitos legais, vigorará como se tivesse sido efetuada no tempo designado.

§ 9º Pela inscrição ou arrolamento de cada escravo pagar-se-á 1$ de emolumentos, cuja importância será destinada ao fundo de emancipação, depois de satisfeitas as despesas da matrícula.

§ 10. Logo que for anunciado o prazo para a matrícula, ficarão relevadas as multas incorridas por inobservância das disposições da Lei de 28 de Setembro de 1871, relativas à matrícula, declarações prescritas por ela e pelos respectivos regulamentos.

A quem libertar ou tiver libertado, a título gratuito, algum escravo, fica remitida qualquer dívida a Fazenda Pública por impostos referentes ao mesmo escravo.

O Governo no Regulamento que expedir para execução desta Lei, marcará um só e o mesmo prazo para a apuração da matrícula em todo o Império.

Art. 2º O fundo de emancipação será formado:

I. Das taxas e rendas para ele destinadas na legislação vigente.

II. Da taxa de 5% adicionais a todos os impostos gerais, exceto os de exportação.

Esta taxa será cobrada desde já livre de despesas de arrecadação, e anualmente inscrita no orçamento da receita apresentado à Assembleia Geral Legislativa pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda.

III. De títulos da dívida pública emitidos a 5%, com amortização anual de ½ %, sendo os juros e amortização pagos pela referida taxa de 5%.

§ 1º A taxa adicional será arrecadada ainda depois da libertação de todos os escravos e até se extinguir a dívida proveniente da emissão dos títulos autorizados por esta Lei.

§ 2º O fundo de emancipação, de que trata o n. I deste artigo, continuará a ser aplicado de conformidade ao disposto no art. 27 do Regulamento aprovado pelo Decreto n. 5135 de 13 de Novembro de 1872.

§ 3º O produto da taxa adicional será dividido em três partes iguais:

A 1ª parte será aplicada à emancipação dos escravos de maior idade, conforme o que for estabelecido em regulamento do Governo.

A 2ª parte será aplicada à libertação por metade ou menos de metade de seu valor, dos escravos de lavoura e mineração cujos senhores quiserem converter em livres os estabelecimentos mantidos por escravos.

A 3ª parte será destinada a subvencionar a colonização por meio do pagamento de transporte de colonos que forem efetivamente colocados em estabelecimentos agrícolas de qualquer natureza.

§ 4º Para desenvolver os recursos empregados na transformação dos estabelecimentos agrícolas servidos por escravos em estabelecimentos livres e para auxiliar o desenvolvimento da colonização agrícola, poderá o governo emitir os títulos de que trata o n. 3 deste artigo.

Os juros e amortização desses títulos não poderão absorver mais dos dois terços do produto da taxa adicional consignada no n. 2 do mesmo artigo.

DAS ALFORRIAS E DOS LIBERTOS

Art. 3º Os escravos inscritos na matrícula serão libertados mediante indemnização de seu valor pelo fundo de emancipação ou por qualquer outra forma legal.

§ 1º Do valor primitivo com que for matriculado o escravo se deduzirão:

No primeiro ano2%
No segundo3%
No terceiro4%
No quarto5%
No quinto6%
No sexto7%
No sétimo8%
No oitavo9%
No nono10%
No deécimo10%
No undécimo12%
No décimo segundo12%
No décimo terceiro12%

Contar-se-á para esta dedução anual qualquer prazo decorrido, seja feita a libertação pelo fundo de emancipação ou por qualquer outra forma legal.

§ 2º Não será libertado pelo fundo de emancipação o escravo inválido, considerado incapaz de qualquer serviço pela Junta classificadora, com recurso voluntário para o Juiz de Direito.

O escravo assim considerado permanecerá na companhia de seu senhor.

§ 3º Os escravos empregados nos estabelecimentos agrícolas serão libertados pelo fundo de emancipação indicado no art. 2º, § 4º, segunda parte, se seus senhores se propuseram a substituir nos mesmos estabelecimentos o trabalho escravo pelo trabalho livre, observadas as seguintes disposições:

a) Libertação de todos os escravos existentes nos mesmos estabelecimentos e obrigação de não admitir outros, sob pena de serem estes declarados libertos;

b) Indenização pelo Estado de metade do valor dos escravos assim libertados, em títulos de 5%, preferidos os senhores que reduzirem mais a indemnização;

c) Usufruição dos serviços dos libertos por tempo de cinco anos.

§ 4º Os libertos obrigados a serviço nos termos do parágrafo anterior, serão alimentados, vestidos e tratados pelos seus ex-senhores, e gozarão de uma gratificação pecuniária por dia de serviço, que será arbitrada pelo ex-senhor com aprovação do Juiz de Órfãos.

§ 5º Esta gratificação, que constituirá pecúlio do liberto, será dividida em duas partes, sendo uma disponível desde logo, e outra recolhida a uma Caixa Econômica ou Coletoria, para lhe ser entregue, terminado o prazo da prestação dos serviços a que se refere o § 3º, última parte.

§ 6º As libertações pelo pecúlio serão concedidas em vista das certidões do valor do escravo, apurado na forma do art. 3º, § 1º, e da certidão do depósito desse valor nas estações fiscais designadas pelo Governo.

Essas certidões serão passadas gratuitamente.

§ 7º Enquanto se não encerrar a nova matrícula, continuará em vigor o processo atual de avaliação dos escravos, para os diversos meios de libertação, com o limite fixado no art. 1º, § 3º.

§ 8º São válidas as alforrias concedidas, ainda que o seu valor exceda ao da terça do outorgante e sejam ou não necessários os herdeiros que porventura tiver.

§ 9º É permitida a liberalidade direta de terceiro para a alforria do escravo, uma vez que se exiba preço deste.

§ 10. São libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta Lei; ficando, porém, obrigados, a título de indemnização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos.

§ 11. Os que forem maiores de 60 e menores de 65 anos, logo que completarem esta idade, não serão sujeitos aos aludidos serviços, qualquer que seja o tempo que os tenham prestado com relação ao prazo acima declarado.

§ 12. É permitida a remissão dos mesmos serviços, mediante o valor não excedente à metade do valor arbitrado para os escravos da classe de 55 a 60 anos de idade.

§ 13. Todos os libertos maiores de 60 anos, preenchido o tempo de serviço de que trata o § 10, continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimentá-los, vesti-los, e tratá-los em suas moléstias, usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles, salvo se preferirem obter em outra parte os meios de subsistência, e os Juízes de Órfãos os julgarem capazes de o fazer.

§ 14. É domicílio obrigado por tempo de cinco anos, contados da data da libertação do liberto pelo fundo de emancipação, o município onde tiver sido alforriado, exceto o dos capitães.

§ 15. O que se ausentar de seu domicílio será considerado vagabundo e apreendido pela Polícia para ser empregado em trabalhos públicos ou colônias agrícolas.

§ 16. O Juiz de Órfãos poderá permitir a mudança do liberto no caso de moléstia ou por outro motivo atendível, se o mesmo liberto tiver bom procedimento e declarar o logar para onde pretende transferir seu domicílio.

§ 17. Qualquer liberto encontrado sem ocupação será obrigado a empregar-se ou a contratar seus serviços no prazo que lhe for marcado pela Polícia.

§ 18. Terminado o prazo, sem que o liberto mostre ter cumprido a determinação da Polícia, será por esta enviado ao Juiz de Órfãos, que o constrangerá a celebrar contrato de locação de serviços, sob pena de 15 dias de prisão com trabalho e de ser enviado para alguma colônia agrícola no caso de reincidência.

§ 19. O domicílio do escravo é intransferível para Província diversa da em que estiver matriculado ao tempo da promulgação desta Lei.

A mudança importará aquisição da liberdade, exceto nos seguintes casos:

1º Transferência do escravo de um para outro estabelecimento do mesmo senhor.

2º Se o escravo tiver sido obtido por herança ou por adjudicação forçada em outra Província.

3º Mudança de domicílio do senhor.

4º Evasão do escravo.

§ 20. O escravo evadido da casa do senhor ou d'onde estiver empregado não poderá, enquanto estiver ausente, ser alforriado pelo fundo de emancipação.

§ 21. A obrigação de prestação de serviços de escravos, de que trata o § 3º deste artigo, ou como condição de liberdade, não vigorará por tempo maior do que aquele em que a escravidão for considerada extinta.

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 4º Nos regulamentos que expedir para execução desta Lei o Governo determinará:

1º Os direitos e obrigações dos libertos a que se refere o § 3º do art. 3º para com os seus ex-senhores e vice-versa.

2º Os direitos e obrigações dos demais libertos sujeitos à prestação de serviços e daqueles a quem esses serviços devam ser prestados.

3º A intervenção dos Curadores gerais por parte do escravo, quando este for obrigado à prestação de serviços, e as atribuições dos Juízes de Direito, Juízes Municipais e de Órfãos e Juízes de Paz nos casos de que trata a presente Lei.

§ 1º A infração das obrigações a que se referem os ns. 1 e 2 deste artigo será punida conforme a sua gravidade, com multa de 200$ ou prisão com trabalho até 30 dias.

§ 2º São competentes para a imposição dessas penas os Juízes de Paz dos respectivos distritos, sendo o processo o do Decreto n. 4824 de 29 de Novembro de 1871, art. 45 e seus parágrafos.

§ 3º O acoutamento de escravos será capitulado no art. 260 do Código Criminal.

§ 4º O direito dos senhores de escravos à prestação de serviços dos ingênuos ou à indenização em títulos de renda, na forma do art. 1º, § 1º, da Lei de 28 de Setembro de 1871, cessará com a extinção da escravidão.

§ 5º O Governo estabelecerá em diversos pontos do Império ou nas Províncias fronteiras colônias agrícolas, regidas com disciplina militar, para as quais serão enviados os libertos sem ocupação.

§ 6º A ocupação efetiva nos trabalhos da lavoura constituirá legitima isenção do serviço militar.

§ 7º Nenhuma Provincia, nem mesmo as que gozarem de tarifa especial, ficará isenta do pagamento do imposto adicional de que trata o art. 2º.

§ 8º Os regulamentos que forem expedidos pelo Governo serão logo postos em execução e sujeitos à aprovação do Poder Legislativo, consolidadas todas as disposições relativas ao elemento servil constantes da Lei de 28 de Setembro de 1871 e respectivos Regulamentos que não forem revogados.

Art. 5º Ficam revogadas as disposições em contrário.

Mandamos, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente, como nela se contém. O Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas a faça imprimir, publicar e correr. 

Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos 28 de Setembro de 1885, 64º da Independência e do Império.

IMPERADOR com rubrica e guarda.

Antonio da Silva Prado.

Carta de lei, pela qual Vossa Majestade Imperial Manda executar o Decreto da Assembleia Geral, que Houve por bem Sancionar, regulando a extinção gradual do elemento servil, como nele se declara.

Para Vossa Majestade Imperial Ver.

João Capistrano do Amaral a fez.

Chancelaria-mor do Império. - Joaquim Delfino Ribeiro da Luz.

Transitou em 30 de Setembro de 1885. - Antonio José Victorino de Barros. - Registrada.

Publicada na Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas em 1 de Outubro de 1885. - Amarilio Olinda de Vasconcellos

Fonte: Palácio do Planalto.

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