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Em 21 de outubro de 1982, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, o escritor colombiano Gabriel García Márquez fez um discurso que começa da seguinte forma: “Antonio Pigafetta, navegador florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem em volta do mundo, escreveu, na ocasião de sua passagem pelas terras do sul de nossa América, um relato minuciosamente apurado, mas que na verdade parece mais um delírio fantasioso. Nessa viagem, ele diz que viu porcos com umbigos nas ancas, pássaros sem garras cujas fêmeas botavam os ovos nas costas de seus parceiros, e ainda outros, lembrando pelicanos deslinguados, com bicos feito colheres”.
A citação dá uma ideia da influência de Pigafetta sobre a obra do autor – e, para muito além, aponta o impacto do relato sobre o imaginário dos europeus do século XVI sobre todo o restante do planeta.
Em 20 de setembro de 1519, há exatos 506 anos, 250 homens partiram em cinco navios para uma aventura que só terminaria em 1522 – e retornaria sem seu comandante. O navegador português Fernão de Magalhães morreu em 27 de abril de 1521 na Batalha de Mactan, na atual cidade de Lapu-Lapu, nas Filipinas. Tinha 41 anos. Juan Sebastián Elcano conduziu a missão até o final.
Nascido por volta de 1491, falecido em 1534, Pigafetta era um marinheiro nascido e criado em Vicenza, na Itália. Ele suportou toda a viagem: retornaram com vida apenas 18 homens famintos, em um único navio, o Victoria. Dois anos depois de sua morte, seu relato detalhado e instigador, que dá grande atenção à passagem pelo Brasil, foi publicado e rapidamente se tornou um enorme sucesso. O texto está disponível em português, na íntegra.
Leia trechos traduzidos de cada um dos quatro capítulos da obra
Livro primeiro: Partida de Sevilha até o estreito de Magalhães
Durante os dias calmos, enormes tubarões nadavam próximo de nosso navio. Estes tubarões têm fileiras de dentes terríveis e, se por desgraça encontram um homem no mar, o devoram no ato. Pescamos muitos com anzóis de ferro, porém os grandes não são de todo comestíveis e os pequenos não valem grande coisa.
Depois de passar a linha equinocial, ao aproximarmo-nos do Polo Antártico, perdemos de vista a Estrela Polar. Deixamos o cabo entre o sul e o sudeste e enfiamos a proa para a Terra do Verzino (o Brasil), nos 20º 30’ de latitude meridional. Esta terra é uma continuação daquela em que está o Cabo de Santo Agostinho, aos 8º 30’ da mesma latitude.
Aqui nos provisionamos abundantemente de galinhas, de batatas, de uma espécie de fruto parecido com a pinha, porém extremamente doce e de gosto esquisito, de cana-de-açúcar, de carne de anta – a qual é parecida com a carne da vaca etc. Fizemos também vantajosas trocas. Por um anzol ou por uma faca nos deram cinco a seis galinhas; por um pente, dois gansos; por um espelho ou uma tesoura, o pescado suficiente para comerem dez pessoas; por um guizo ou por um cinto, os indígenas nos traziam um cesto de batatas, nome que dão aos tubérculos que são mais ou menos a figura de nossos nabos e cujo sabor é parecido ao das castanhas. Trocamos inclusive as figuras das cartas de baralho. Por um rei de ouro me deram seis galinhas e ainda acreditavam ter feito um magnífico negócio.
Os brasileiros, homens e mulheres, pintam o corpo, sobretudo o rosto, de um modo estranho e diferente. Eles têm cabelo curto e espesso e não possuem pelo sobre nenhuma parte do corpo, porque se depilam.
Estes povos são extremamente crédulos e bons e seria extremamente fácil convertê-los ao cristianismo. A casualidade fez com que dispensassem a nós veneração e respeito. Há dois meses fazia uma grande seca no país e justo com a nossa chegada o céu se desatou em chuva. Eles atribuíram isto à nossa presença.
Livro segundo: Desde a saída do estreito até a morte de Magalhães
Na quarta-feira, dia 28 de novembro de 1520, saímos do estreito para entrar no grande mar, ao qual em seguida chamamos de Pacífico, e onde navegamos durante três meses e vinte dias sem provar nenhum alimento fresco.
Já não tínhamos mais nem pão para comer, mas apenas polvo impregnado de morcegos, que tinham lhe devorado toda a substância, e que tinha um fedor insuportável por estar empapado em urina de rato. A água que nos víamos forçados a tomar era igualmente pútrida e fedorenta. Para não morrer de fome, chegamos ao ponto crítico de comer pedaços do couro com que se havia coberto o mastro maior, para impedir que a madeira roçasse as cordas. Este couro, sempre exposto ao sol, à água e ao vento, estava tão duro que tínhamos que deixá-lo de molho no mar durante quatro ou cinco dias para amolecer um pouco. Em seguida nós o cozíamos e comíamos.
Frequentemente nossa alimentação ficou reduzida a serragem de madeira como única comida, posto que até os ratos, tão repugnantes ao homem, chegaram a ser um manjar tão caro, que se pagava meio ducado por cada um.
Chamamos este mar de Pacífico, porque, durante estes três meses e vinte dias que gastamos na travessia de cerca de quatro mil léguas, não houve a menor tempestade.
Na segunda-feira santa, 25 de março, corri um grande perigo. Estávamos prestes a levantar as velas e eu queria pescar. Tendo descansado o pé sobre uma verga molhada pela chuva, escorreguei e caí no mar sem que ninguém me visse. Afortunadamente apareceu ante meus olhos a corda de uma vela, que pendia sobre a água. Agarrei-me a ela e gritei com tanta força que me ouviram e me salvaram com o esquife. O fato não deve ser atribuído aos meus merecimentos, mas exclusivamente à misericordiosa proteção da Santíssima Virgem.
Os nativos perceberam que seus golpes na cabeça ou no corpo não nos atingiam por causa das nossas armaduras, porém, que as pernas estavam indefesas. E para elas concentraram suas flechas, lanças e pedras, de maneira tão intensa que não pudemos resistir. Então, nos retiramos lentamente, mas combatendo sempre. Além disto, as bombardas que levávamos nas chalupas se tornaram inúteis por causa dos arrecifes.
À medida que nos retirávamos pela água, os nativos iam apanhando as lanças que já haviam atirado contra nós e voltavam a arremessá-las, fazendo isto por outras cinco ou seis vezes. Como conheciam bem nosso capitão, ele se tornou seu alvo preferido. Por duas vezes o derrubaram, mas ele se manteve firme enquanto combatíamos ao seu redor.
O combate desigual durou quase uma hora. Um ilhéu conseguiu, em dado momento, colocar a ponta de sua lança na frente do capitão, mas este, furioso, conseguiu ser mais rápido, cravando a sua lança no inimigo, onde ficou presa. Tentou então sacar a espada, mas não pôde por estar gravemente ferido no braço direito. Dando-se conta disto, um dos nativos avançou com um sabre, acertando a perna esquerda, fazendo-o cair de cara na água e arrojando-se por fim contra ele. Assim morreu nosso guia, nossa luz e nosso sustentáculo.
Livro terceiro: Desde a partida de Cebu até a saída das Ilhas Molucas
Vendo que as tripulações, diminuídas por tantas perdas, não eram suficientes para os três navios, decidimos queimar um deles (Concepción), depois de transportar para os outros tudo o que poderia nos ser útil.
Encontrei na ilha (de Bohol, nas Filipinas) arroz, gengibre, porcos, cabras e tudo mais que havia nas outras. Porém, o que sem dúvida havia em maior quantidade era o ouro. Mostraram-me uns pequenos vales, fazendo-me entender que neles haviam mais ouro do que cabelos em nossas cabeças, mas que, não tendo ferro, era necessário um grande trabalho para explorá-lo.
Saindo desta ilha e seguindo sempre o mesmo rumo Oeste-Sudoeste, chegamos a outra maior, que encontramos bem provida de toda a classe de víveres, o que foi uma fortuna para nós, porque estávamos tão famintos e tão mal provisionados que estivemos muitas vezes a ponto de abandonar os navios e nos estabelecer em qualquer terra para terminar ali os nossos dias.
(Na ilha de Palaoán, também nas Filipinas) criam uns galos grandes que não comem por superstição, mas os treinam para disputas, onde são feitas apostas, cabendo prêmios aos proprietários dos vencedores.
Ao chegar à cidade, tivemos que esperar duas horas na piroga até que chegassem dois elefantes cobertos com mantos de seda e doze homens com vasos de porcelana, cobertos de seda, para colocar os presentes. Montamos nos elefantes e, precedidos pelos doze homens portadores dos vasos com presentes, chegamos à casa do governador. Ali nos foi oferecida uma ceia de muitos pratos.
Livro quarto: Regresso à Espanha desde as Ilhas Molucas
Nos disseram que é costume em Java queimar o corpo das personalidades que morrem e que a sua mulher favorita é queimada viva na mesma fogueira. Primeiro a adornam com grinaldas de flores e depois a colocam em uma cadeira de mão que é conduzida pela cidade por quatro homens. Com aspecto tranquilo, sorrindo, anima seus parentes que choram o seu próximo fim, dizendo-lhes: ‘Esta noite vou cear com meu marido e depois me deitarei com ele’. Junto à fogueira, volta a consolar os parentes com frases parecidas e se joga nas chamas, que a devoram.
Navegamos em seguida para Noroeste, durante dois meses inteiros, sem descanso, e neste intervalo perdemos 22 homens, entre cristãos e índios. Fizemos uma observação curiosa ao atirá-los ao mar: os cadáveres dos cristãos caíam sempre de rosto para o céu e os dos índios de boca para baixo, de rosto para o mar.
Chegamos com dezoito homens a Sanlúcar – Graças à providência, entramos no sábado, 6 de setembro, na baía de Sanlúcar, e de sessenta homens que compunham a tripulação quando saímos das Ilhas Molucas, não restávamos mais que dezoito, a maior parte doente. Os demais, uns escaparam na Ilha de Timor, outros foram condenados à morte por crimes que cometeram e outros, enfim, morreram de fome. Desde nossa saída da baía de Sanlúcar até o regresso, calculamos que percorremos mais de 14.460 léguas, dando a volta completa ao mundo, navegando sempre do Leste para o Oeste.
Na segunda-feira, 8 de setembro, ancoramos junto aos molhes de Sevilha e disparamos toda a artilharia. Na terça-feira, saltamos todos a terra, em camisa e descalços, com uma vela na mão e fomos à igreja de Nossa Senhora da Vitória e à de Santa Maria de Antigua, como havíamos prometido nos momentos de angústia. De Sevilha fui a Valladolid, onde presenteei à sacra majestade de D. Carlos V, nem ouro nem prata, mas algo bem mais grato a seus olhos.
Ofereci-lhe, entre outras coisas, um livro escrito de minha mão em que, dia por dia, assinalei tudo o que aconteceu em nossa viagem. Deixei Valladolid o mais rápido possível e cheguei a Portugal para relatar ao rei D. João o que havia visto. Voltei à Espanha e passei em seguida para a França, onde presenteei com coisas do outro hemisfério a regente, mãe do cristianíssimo Francisco I. Regressei por fim à Itália, onde me consagrei para sempre ao excelentíssimo e ilustríssimo senhor Felipe de Villers L’Isle-Adam, grão-mestre de Rodes, a quem igualmente entreguei o relato de minha viagem.
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