"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Algumas sugestões para conter o ativismo judicial no Brasil

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O Brasil passa por um forte período de ativismo por parte dos órgãos judiciais, o que ameaça as boas práticas de governo, a democracia deliberativa e representativa e o conjunto de regras que exigem estabilidade e previsibilidade do ordenamento jurídico, chamadas em conjunto como “Estado de Direito” ou “Império da Lei”. Essa realidade não é só brasileira, mas aqui alcança patamares muito preocupantes.

Da nomeação de pessoas que atendem a todos os requisitos legais para cargos “de livre nomeação”, passando pela venda de estatais, até a criação de tipos penais por analogia, não há nada que não passe pela discricionariedade voluntarista do Judiciário. Magistrados, em larga medida, simplesmente abandonaram a legislação e a razão jurídica, transformando as instâncias judiciárias em uma “terceira casa legislativa”, que julga de modo arbitrário e voluntarioso. Atos de governo hoje não precisam apenas serem legais e constitucionais, é necessário também que burocratas não eleitos nos fóruns e tribunais concordem com eles. Uma inegável “juristocracia elitista”, um governo de toga, apresenta-se sufocando a capacidade de autogestão do povo por meio de suas instâncias representativas.

Da bagunça generalizada, o STF parece ser o órgão mais deteriorado, com decisões monocráticas que não preenchem os requisitos próprios para liminares e inovam a ordem jurídica; julgamentos em órgãos fracionários (turmas) sobre temas da mais alta relevância, como aborto; além de um inquérito ilícito aberto no ano passado para aterrorizar críticos da Corte, invadir domicílios mediante mandados que são expedidos pelo próprio presidente do inquérito sem a análise por um juiz imparcial, e que inclusive já serviu para censurar matérias jornalísticas. Não bastasse, mais recentemente o Presidente do tribunal ainda requisitou dados bancários sigilosos de centenas de milhares de cidadãos. Os exemplo são infindáveis.

Em meio a esse caos, vários juristas têm pensado e escrito no Brasil sobre meios para conter a sanha autoritária das Cortes e restabelecer a normalidade da ordem constitucional: baseada na tripartição dos poderes, e na qual as instâncias de governo são limitadas pela Constituição e pelas leis, não pela preferência de burocratas judiciais.

Nesse sentido, algumas sugestões interessantes podem ser coletadas no artigo recentemente publicado na “Revista de Direito Constitucional e Internacional” (Editora Revista dos Tribunais), de autoria do pesquisador Carlos Roberto Firme Filho, com o título “O Controle de Constitucionalidade no Brasil e na Itália: um estudo comparativo prático e crítico entre os modelos“.

Embora com tom bem menos crítico do que o nosso, o autor não deixa de notar alguns problemas e sugerir soluções relativas à jurisdição constitucional no Brasil.

Inicialmente, após uma análise quantitativa e comparativa dos casos julgados e de ações especificamente constitucionais analisadas pelo STF e pela Corte Constitucional italiana entre 2010 e 2015, o artigo mostra que os números do Brasil são muito superiores. Para se ter uma ideia, em 2015, o Supremo julgou 116.647 processos (pouco mais de 2.500 por meio do Plenário da Casa); enquanto a Corte italiana analisou, no total, 276 casos.

A partir disso, nós concluímos que os números indicam um centralismo e um protagonismo exacerbado do STF: tudo acaba decidido pelos 11 ministros do Tribunal (ou, pior ainda, por um deles monocraticamente).

Mesmo analisando apenas o quantitativo específico das ações de controle concentrado de constitucionalidade (ou seja, excluindo os recursos julgados pelo STF ou demandas não necessariamente atinentes a controle de constitucionalidade, como habeas corpus), no Brasil, no ano de 2015, houve 376 julgados; ao tempo que na Itália algo em torno de três vezes menos: 113.

Além do número excessivo de processos analisados pelo STF, o autor do artigo também diz haver uma banalização na declaração de inconstitucionalidade, inclusive, por órgãos de primeira instância. Confira um trecho do artigo:

“(…) deve-se dar a devida importância à excepcionalidade das decisões de declaração de inconstitucionalidade. Significa dar o verdadeiro valor à legislação vigente, oriunda dos representantes do povo, da vontade popular, ou seja, dos mesmos titulares que investiram o poder constituinte, por meio de uma visão não apenas jurídica, mas especialmente política dos interesses nacionais, respeitando sempre, é claro, o núcleo duro do texto fundamental.”

E acrescenta a descrição de um fenômeno muito preocupante:

“(…) é comum um juiz de primeiro grau, recém-empossado no cargo, declarar uma lei inconstitucional, a qual passou pelo crivo das duas casas do Congresso Nacional, por meio de anos de discussão e debates, além de ter sido sancionada pelo chefe do Poder Executivo, com fundamentação em conceitos jurídicos indeterminados e princípios constitucionais amplos, sem ter uma real visão macro da causa. Em razão dessa insegurança jurídica, os jurisdicionados nunca saberão até quando e se as leis vigentes terão eficácia jurídica nos casos analisados por aqueles que veriam determinar o cumprimento da lei.”

Embora o ativismo judicial seja um fenômeno crescente em várias jurisdições mundo afora, o autor realça que  “observa-se no direito comparado [ou seja, em outros países,] um maior respeito ao texto legal, ou seja, a lei determina efetivamente qual decisão o magistrado deve tomar diante do caso em concreto“.

E ainda:

“As decisões [que decretam a inconstitucionalidade de normas no Brasil] são lastreadas quase sempre em princípios constitucionais genéricos que produzem uma falsa sensação de justiça ao permitir um juízo de valor inerente ao ser humano do magistrado, sem medir os efeitos políticos e econômicos em perspectivas macro, expurgando um perigoso olhar míope à declaração de inconstitucionalidade.”

O autor do artigo conclui que há um número insuficiente de filtros legais e processuais para órgãos judiciais das várias instâncias decretarem a inconstitucionalidade de normas, o que gera um desprestígio das leis. Afirma, então, que “a cultura de inconstitucionalidade não pode remanescer, devendo-se estabelecer de certo modo o respeito à legislação e não apenas aos princípios constitucionais”.

Após o diagnóstico, o autor indica alterações em duas frentes: 1) reduzir o número de causas que chegam ao STF; 2) aumentar a segurança jurídica, reduzindo o número de atores judiciários capazes de declarar a inconstitucionalidade de normas.

Quanto ao primeiro ponto, a colaboração do autor é muito interessante. Ele defende que só deveriam chegar ao STF casos em que os órgãos inferiores julgaram a norma efetivamente inconstitucional. É que no Brasil, ao contrário disso, caso o Tribunal de instância intermediária julgue a norma tanto constitucional quanto inconstitucional, é possível levar a causa ao STF, alegando violação à Constituição. Isto é, se a parte diz que uma norma é inconstitucional, mas o Tribunal discorda e aplica a regra, a parte pode levar o caso ao STF.

O autor, no entanto, defende de modo acertado que as leis possuem uma presunção de constitucionalidade, em vista de sua aprovação pelos órgãos legislativos. Se essa presunção é mantida pelos tribunais inferiores, inexiste necessidade de que a causa vá ao Supremo. Apenas se a presunção de constitucionalidade é quebrada em razão do reconhecimento da inconstitucionalidade pelo órgão inferior é que se justificaria a atuação do STF.

Quanto ao segundo ponto, a  fim de evitar a desorganização provocada pela possibilidade de qualquer juiz julgar leis inconstitucionais, gerando forte insegurança e divergência na aplicação da justiça em juízos distintos (o que fere a igualdade perante a lei dos cidadãos julgados em órgãos diversos), o autor propõe que os juízes de primeiro grau não possam mais declarar monocraticamente a inconstitucionalidade de normas: “propõe-se (…) que, quando em um caso em concreto o juiz verificasse uma possível inconstitucionalidade, remeteria a questão ao Tribunal ao qual é diretamente vinculado para que o órgão colegiado se manifestasse”. Assim, não poderia qualquer recém-empossado derrubar regras (inclusive emendas constitucionais votadas com quóruns qualificados em ambas as Casas do Congresso). Apenas desembargadores, em geral mais experientes, e de forma colegiada (porquanto a análise da inconstitucionalidade nos tribunais tem de ser feita pelo Plenário da Corte, consoante art. 97 da Constituição) poderiam fazer frente a regras democraticamente instituídas.

Como essa análise pelo Pleno do Tribunal provavelmente demandaria alguma tempo, para preserver o direito da parte em caso de urgência “poderia o juiz utilizar-se do seu poder geral de cautela até que a matéria fosse definitivamente decidida pelo Tribunal”.

Em artigo futuro, apresentaremos algumas outras sugestões, principalmente relativas ao abuso na utilização de liminares monocráticas no STF.

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